Texto de Beatriz Canas Mendes. Revisão de Lourenço Duarte.
Vénus pousa em frente dum espelho circular, que lhe devolve o seu reflexo. Esse é o reflexo de uma mulher ruiva e pálida, com o cabelo preso numa coroa de flores. O seu vestido é branco, largo mas cintado, e uma das mangas deve ter-se soltado, revelando um seio. A deusa está descalça e parcialmente desnuda no meio da natureza, bela e outonal, não necessariamente triste, mas sem dúvida nostálgica. Há plantas em redor e um arco-íris ao fundo. No entanto, não nos esqueçamos de uma outra personagem, o deus Hermes, que segura o espelho; não parecendo importante, é central para a reflexão que se segue.
Em primeiro lugar, referia-me à pintura pré-rafaelita “Hermes and Venus (Aphrodite) gazing into a mirror”, de Walter Crane (1885), que escolhi a título de exemplo inicial. Na verdade, o tema da mulher perante o espelho é recorrente na arte. Podemos começar por destacar o Espelho enquanto motivo isolado. Na arte cristã, «the spotless mirror came to represent the eternal purity and justice of the Virgin Mary» (Ramirez 2020, 45), além de ser ligado à vaidade, ao narcisismo e ao orgulho. Assim, devemos igualmente destacar as pinturas da Virgem Maria, mas também de Maria Madalena e Vénus/Afrodite, que se posicionam em frente de espelhos que reflectem a sua imagem duplicada, dupla.
“Hermes and Venus (Aphrodite) gazing into a mirror”, Walter Crane (1885).
Apesar dos significados normalmente atribuídos ao espelho, o motivo do Duplo cruzado com o tema da mulher em frente do espelho ganha uma dimensão especial. O espelho não só «reflecte e confirma beleza», como também pode ser entendido como a auto- consciência da mulher a partir do século XIX – «a consciousness not of themselves in themselves, but of the reflecion of themselves in others» (ibid., citando Eliza Linton). De facto, relembremos: Afrodite não está só nesta pintura. Hermes também a observa, enquanto ela se observa no espelho. O que lhe estará ele a dizer? O que dirá a sua expressão facial?
Entretanto, falemos também do trabalho fotográfico de Lady Clementina Hawarden. Esta mulher, fotógrafa pioneira do século XIX, deixou um trabalho único de retrato. Com intenções de representação que levantam questões semelhantes às enunciadas, muitas das suas fotografias são de mulheres (principalmente das suas filhas) e muitas delas em frente de espelhos (usados para melhor reflectir a luz, na época pré-flash, mas também porque a obra de Lady Hawarden pretende representar o Duplo feminino). No entanto, não é fácil encontrar muitas fotografias em que as mulheres se estejam a observar directamente, apesar de o “espectador” conseguir ver a senhora original e a sua “dupla”, ou gémea.

Clementina Maude, photograph by Lady Clementina Hawarden, about 1862 – 63, England. Museum no. 457:230-1968. © Victoria and Albert Museum, London
Nesta fotografia, uma das suas filhas pousa pensativa junto do espelho. Clementina Maude tem a possibilidade de se olhar ao espelho, mas porque não o faz? Podemo-nos perguntar se esta escolha artística para a pose da retratada não estará relacionada com uma certa recusa em se olhar a si mesma, uma possível recusa de vaidade ou orgulho pelos olhos da própria, mesmo que outros possam apreciar a sua imagem e ela tenha consciência disso. Provavelmente, ela sabe-se objecto de desejo e do olhar alheio, reflectindo-se para que outros a possam ver.
Recordemos ainda a madrasta má da Branca de Neve, que pergunta ao espelho quem é a mais bela – não aos seus próprios olhos, mas aos olhos de outros; e a ominipresença de espelhos, no filme Black Swan. Diz este texto1: «Holding up a mirror is an effective way to portray duality, whether revealing someone’s true face or showing an image depicting what the rest of the world sees»” A bailarina Nina, protagonista do filme, consome-se entre visões, sonhos, impressões de perseguição, de ataque e de sabotagem, resultado da preocupação com a sua performance e imagem.
É curioso indagar acerca destas diferenças entre a relação do sujeito feminino e da sua Dupla e, por outro lado, a relação do sujeito masculino com o seu Duplo. Sobre este último, lembremos Dorian Gray e o seu retrato, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Tertuliano Máximo Afonso e António Claro, e tantos outros casos. Enquanto os homens e os seus duplos se enfrentam, se olham e dominam a existência um do outro, negociando a(s) sua(s) identidade(s), as mulheres parecem saber-se, ambas, vítimas dum (e principalmente preocupadas com o) olhar externo, vivendo-o, talvez, de forma submissa, recatada, contida. Por exemplo, já na pintura Two Fridas (por Frida Kahlo, 1939), nenhuma das duplas se olha directamente, apesar das mãos dadas, antes enfrentando o olhar de quem as olha.
Claro que a arte imita a vida, e claro que é impossível a vida não acabar por imitar a arte. A mulher do século XXI ainda vive num mundo onde prevalece o olhar masculino, exterior e que não lhe permite olhar para o seu reflexo como se este lhe pertencesse exclusivamente. Até as mulheres icónicas da cultura pop das últimas décadas, como Britney Spears e Taylor Swift, continuam a lutar para se libertarem das amarras de homens que tentam impor-lhes as suas regras e ditar os seus destinos. Mas não interessa se somos mais famosas ou meras anónimas: os padrões, expectativas e pressão existem para todas. Padrões de beleza, de inteligência, de maternidade, de sexualidade, de conjugalidade, de envelhecimento; a pressão e as expectativas sobre a forma como desempenhamos a nossa profissão, a forma como aparecemos na vida pública, a forma como aparecemos nas redes sociais.
Continuamos a olhar-nos ao espelho e, como que por cima do ombro, outros olhos percorrem-nos o corpo, a mente, a alma. Ainda ouvimos vozes alheias, reais e imaginadas, que nos tentam ditar o que ser e como estar, e que comentam sem que nada lhes tenha sido pedido ou questionado. E, muitas vezes, essas vozes pertencem não só a homens, como também a outras mulheres. Olhamos para nós por olhos que não os nossos. Por vezes, nem nos reconhecemos no nosso próprio reflexo.
Quem é esta estranha?, perguntamos. Quem é esta estranha que se deixou observar e moldar por uma audiência que apenas segura o espelho, mas que ao mesmo tempo lhe tolhe os movimentos?
Cabe-nos a nós reivindicar o nosso reflexo, duplicarmo-nos de igual para igual, olharmo-nos nos olhos com propriedade e sem hesitação, segurarmos o espelho em que nos reflectimos. Quem sou eu, se mais ninguém estiver a olhar para mim?
1 https://www.syfy.com/syfywire/black-swan-rivalry-and-the-horror-of-aging
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Referência:
O. J. Ramirez, “Doubles, Doppelgangers and Desire”, em Doppelgangers, alter egos and mirror images in Western art, 1840-2010: Critical essays (Jefferson, NC: McFarland & Company, 2020), 45.