Demolir? Em maior parte dos casos, o necessário é contextualizar para educar, Luís G. Rodrigues

Texto de Luís G. Rodrigues. Revisão de João N. S. Almeida.

Após ter votado em sentido contrário da sua bancada política no que dizia respeito ao voto de pesar, no Parlamento, pela morte do tenente-coronel Marcelino da Mata, Ascenso Simões, deputado do Partido Socialista, não tardou – demorou, aliás, apenas um dia – a escrever um artigo (disponível, gratuitamente, no Jornal Público[i]) intitulado O salazarismo não morreu, onde, entre críticas ideológicas e políticas em torno de certas decisões/movimentos (como, evidentemente, a aprovação do voto de pesar de Marcelino da Mata ou, por exemplo, a existência da petição da Nova Portugalidade[ii] contra a remoção dos brasões florais do Jardim da Praça do Império) e constatações auferidas através da análise do debate público ainda circunscrito pelo que o próprio aponta como resquícios do Estado Novo, define o Padrão dos Descobrimentos como “mamarracho” que “não tem qualquer sentido no tempo de hoje por não serem [ refere-se também aos florões] elemento arquitetónico relevante, por não caberem na construção de uma cidade que se quer inovadora e aberta a todas as sociedades e origens”[iii].

Bem, contrariamente ao que escreve o deputado Ascenso Simões, a relevância destes monumentos – em particular o Padrão dos Descobrimentos – parece-me cada vez mais crescente, na medida em que existe neles uma oportunidade de reinstrumentalizar, de forma pedagógica e construtiva, desta vez com correção histórica e honestidade intelectual, o que antes foi manipulado para exacerbar – e, repare-se, não inventar, porque o Estado Novo nada inventou, apenas manuseou e “esculpiu” um conteúdo histórico de modo a caber na sua narrativa ditatorial, imbuída de um espírito nacionalista típico de regimes de partido único. Assim, a própria existência dos monumentos desta índole nos tempos de hoje não fazem de Portugal um país racista; poderá argumentar-se que Portugal é sim um país racista mas antes pela forma como lida com a sua História na atualidade: neste sentido, o monumento poderia ser demolido amanhã e Portugal continuaria a ser um país racista devido às desigualdades sociais, culturais, económicas e financeiras que é incapaz de mitigar, estruturalmente, entre brancos e comunidades minoritárias de outras etnias.

Mas, afinal, o que é, em termos conceptuais, “racismo”? O Professor Dr. Ion Diaconu, atualmente a lecionar na Universidade de Spiru Haret (Bucareste) e com extenso trabalho na área dos Direitos Humanos define racismo como “any distinction, exclusion, restriction or preference based on race, colour, descent, or national or ethnic origin which has the purpose or effect to nullify or to impair the recognition, enjoyment or exercise, on an equal footing, of human rights and fundamental freedoms in the political, economic, social, cultural or any other field of public life”[iv] e é, partindo desta definição, que este texto se propõe a tratar o termo.

Frantz Fanon escreveu no volume Em Defesa da Revolução Africana: “Se a cultura é o conjunto dos comportamentos motrizes e mentais nascido ao encontro do homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o racismo é sem sombra de dúvida um elemento cultural. Assim, há culturas com racismo e culturas sem racismo”[v].

Claro que, nas entrelinhas desta afirmação, está a ideia de que um país com características racistas é racista, ou seja, nega-se a ideia de que é possível existir um meio-termo entre “mais ou menos racista”, algo que se aplica bem ao nosso país, onde, por vezes, o racismo já se tornou algo “inconsciente”, isto é, existe racismo sem que se pense que é racismo (“O mesmo é dizer que um grupo social, um país, uma civilização, não podem ser racistas inconscientemente”[vi]). Este racismo entranhado na sociedade portuguesa pode ser parcialmente sustentado pelo mais recente estudo do European Social Survey que constatou que 62% dos portugueses manifestam racismo[vii]. Vejamos, mais ao detalhe, algumas estatísticas deste inquérito:

Os dados apresentados, são de facto, preocupantes. Se por um lado é verdade que a maioria discorda que existam grupos étnicos ou raciais por natureza mais inteligentes – ainda que aqueles 27,9% sejam assustadores –, por outro, mais de metade da população portuguesa acredita que há grupos étnicos ou raciais que, por natureza, são mais trabalhadores que outros.

Paralelamente, e aqui a resposta dada pelos portugueses encaixa perfeitamente na citação citerior aqui transcrita de Fanon, 67,1% acredita que existem culturas por natureza mais civilizadas que outras. Convém, antes de mais, sublinhar o “por natureza” (que sugere uma certa inevitabilidade “predestinada” imutável que nasce, à partida, com certo indivíduo ou povo), já que, por natureza, nenhuma cultura nem nenhum povo é mais inteligente, ou mais trabalhador ou mais civilizado que outro. O que estes 67,1% fazem ao responder desta forma é, precisamente, ao invés ignorarem ou menosprezarem a totalidade das consequências nefastas do colonialismo português como, em princípio, pensarão que fazem, acabam por reiterar o que Fanon disse sobre este fenómeno de continuação da  objetificação (isto é, de controlo, embora agora tácito) da cultura e das populações autóctones por parte dos países com passado colonizador: “Frases como: «eu conheço-os», «eles são assim», traduzem esta objectivação levada ao máximo. Assim, conheço os gestos, os pensamentos, que definem estes homens…”[viii]. É daqui que advém alguma confusão por parte dos cidadãos portugueses. “Eles” – sempre uma generalização errónea qualquer que seja o tema – não são assim, “eles” não se comportam de uma certa maneira, etc.

A imagética que o cidadão do país anteriormente colonizador possui é a de que, efetivamente, e por vias da propaganda Luso-Tropicalista, Portugal tinha um papel civilizador. Já que foi mencionada a denominada “quase-teoria” de Gilberto Freyre, é curioso ler o que escreveu, em tom crítico em relação a Freyre, o Doutor João Medina, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na Revista USP: “Para Freyre, na Casa Grande e Senzala (1933), dois séculos de presença colonizadora lusa no Brasil teriam sido um sucesso baseado na especial aptidão lusa para se adaptar aos trópicos, alicerçando-se o saber luso na mobilidade, na miscibilidade e na facilidade com que o português se aclimatara ao mundo tropical, de modo que esse processo, no seu conjunto, podia ser descrito como um equilíbrio entre antagonismos: antagonismos de civilização e de economia, entre homem europeu e homem africano, entre o africano e o indígena, além de tantos outros pares antagónicos cujas tensões dialécticas se logrou superar”[ix]. Este pseudo-sucesso que Freyre encontra na adaptabilidade do colonizador português é contrariado pelo que Paulo Freire, filósofo brasileiro, relata em Educação como Prática de Liberdade: “Faltou aos colonos que para cá se dirigiram ânimo fundamental, que teria dado, possivelmente, outro sentido ao desenvolvimento de nossa colonização. Faltou-lhes integração com a colônia. Com a terra nova. Sua intenção preponderante era realmente a de explorá-la. A de ficar “sobre” ela. Não a de ficar nela e com ela. Integrados. Daí dificilmente virem animosos de trabalhá-la. De cultivá-la.”[x]

Isto para dizer que, em função do que que nos é apresentado, o problema do racismo em Portugal reside na sua própria cultura e como esta foi influenciada por interpretações falseadas com o objetivo de dar a entender uma realidade que era distinta da verdadeira e na consequente perpetuação deste fenómeno durante gerações – nomeadamente através das linhas em que está inserido o ensino da História no ensino básico e secundário, que tende a instruir os alunos numa perspetiva da grandiosidade do passado sem análise crítica das consequências efetivadas pelo domínio sobre outros povos; esse racismo, dizíamos, é perpetuado mais por esses pressupostos culturais do que propriamente pela existência de estátuas ou monumentos. Sendo assim, de que serviria demolir estas estátuas se as desigualdades, os preconceitos, a vida material e concreta das minorias visadas em nada mudassem? Há que, primeiramente, insistir em e expor os verdadeiros problemas – tal como as soluções – mais prementes da nossa sociedade e só depois avaliar através de debate e discussão pública plural e democrática o que fazer com os símbolos herdeiros do Estado Novo.

Tendo em conta este propósito de perceber os problemas relacionados com a desigualdade étnico-racial, foi publicado pela Assembleia da República, mais propriamente pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e Subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação, o Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-racial em Portugal[xi] (disponível online com acesso livre) cuja deputada relatora foi Catarina Marcelino (PS), embora este trabalho tenha reunido deputados de alguns (PS, PSD, CDS-PP, BE e PCP, sendo que em falta estão o PEV e PAN) dos partidos com assento parlamentar à época (Julho de 2019) bem como Associações representativas das comunidades em causa, Professores, Investigadores, Ativistas e Agentes Policiais, entre outros. O relatório tem várias conclusões que parecem do maior interesse; porém, aqui serão focadas as áreas do Ensino, Emprego e Habitação.

No que diz respeito ao Ensino, verificou-se que “as taxas de reprovação e de retenção são superiores para os afrodescendentes (…). No 1º ciclo, é de 16%, contra 5% para os portugueses; no 2º ciclo é de 28%, contra 11% para os portugueses; no 3º ciclo é de 32%, contra 15% para os portugueses; e, no ensino secundário, é de 50%, contra 20% para os portugueses.

No emprego, denota-se que o preconceito começa logo mesmo antes das comuns “entrevistas de emprego”, já que as “situações de discriminação começam, muitas vezes, no próprio processo de seleção, quando as pessoas de etnia cigana são convocadas para as entrevistas. Durante a entrevista, os entrevistadores, por conhecimento, às vezes, por viverem em meios mais pequenos, sabem que a pessoa é de etnia cigana e é logo colocada de lado, não valorizando as competências e as capacidades da pessoa em questão”[xii].

Já na área da Habitação, a realidade geral é conhecida e não será novidade para ninguém saber que “há um número elevado de famílias das comunidades ciganas a viver em habitação social e em habitação não clássica, a que no caso das comunidades ciganas é dado o nome de “acampamento” quando se tratam de bairros de barracas que do ponto de vista territorial estão disseminados por todo o país, com especial incidência no interior(…)[xiii], no caso da comunidade cigana, e no caso da comunidade afrodescedente, apesar de não haver dados oficias disponíveis para estudo, sabe-se que  “há bairros sociais e de génese ilegal na Área Metropolitana de Lisboa que são maioritariamente habitados por pessoas negras. Estes aglomerados habitacionais, habitação social, habitação não clássica e bairros de génese ilegal, onde vivem afrodescendentes e/ou comunidades ciganas, são muitas vezes locais que têm associados fatores como a pobreza, a exclusão e a segregação étnico-racial ”[xiv]; esta segregação pode explicar-se tanto por factores de mercado como devido ao planeamento urbano e camarário.

Após ter apresentado estas constatações, apraz-me continuar afirmando e tendo como tese principal o que está descrito no título deste texto: contextualizar para educar. Michel Foucault, ao considerar se algum projeto arquitetónico podia representar, taxativamente e unicamente, algo repressivo ou liberativo, chega à conclusão de que não, que nada dessa ordem pode ser descrito como opressivo ou liberativo, fazendo até uso de um exemplo extremo: um campo de concentração. Até nesta situação, diz o filósofo francês, resta a possibilidade de resistência, desobediência e grupos de oposição[xv]. É deste ponto de partida que me parece essencial começar por ver o prisma em que estas “demolições de estátuas e monumentos” estão inseridas e como devemos manifestar esta resistência e oposição de que Foucault fala.

Neste contexto, a oposição ao Padrão dos Descobrimentos deve incidir sobre o que este  representa, ou seja, sobre o combate às consequências materiais, económicas e culturais que as minorias atingidas sofrem porque é aí que está a verdadeira opressão – no sistema – e  não num monumento; o monumento não passa de uma construção em que um certo significado foi embutido e outro posterior, se assim quisermos, através da contextualização pedagógica, poderá também ser.

Reivindicar a demolição de estátuas, num momento como o que vivemos – crise pandémica – é até, de alguma forma e em certos casos, uma distração que tendencialmente a esquerda política, de forma infeliz, criou, quando a sua atenção devia estar, a meu ver, no combate às desigualdades aqui já explanadas, dando assim, em vez disso, uma clara oportunidade à direita de aparecer em praça pública como detentora da posição clarividente e consciente.

Uma das soluções possivelmente mais céleres a concretizar – já que mudar estruturalmente a vida das minorias demoraria tempo – seria contextualizar estes monumentos, muito à luz do que foi feito, a título de exemplo, numa rua em Bordéus[xvi], onde a cidade colocou, em ruas com nomes de comerciantes de escravos, tabuletas explicativas do passado daquelas figuras esclavagistas e de suas ações abjetas para que, de um ponto de vista pedagógico, o passado seja entendido e não esquecido, dado que é através do conhecimento da História que se pode prevenir uma repetição do que não é pretendido. Ou, se quisermos retornar ao exemplo do campo de concentração, que melhor ilustração existe de uma re-instrumentalização simbólica de um ponto de vista educacional e histórico que o Museu Auschwitz-Birkenau, que fez de uma construção concebida para assassinar milhões de Seres Humanos um espaço de reflexão e aprendizagem de todos os procedimentos inóspitos, desumanos, genocidas e condenados que ali se fizeram? Sem estar, de modo algum, a comparar nazismo com colonialismo em termos ideológicos, visto que estes casos devem ser analisados singularmente, não poderia algo semelhante ser feito com o Padrão dos Descobrimentos? Não é mais prolífero aprender com o passado não o apagando? Porque, a bem ver, a História continuará a existir após qualquer derrube de monumentos/construções – o foco tem de estar em lidar com essas construções e no que elas representam concretamente no quotidiano dos povos.

Recorrendo a Foucault mais uma vez, e com vista a consolidar o que foi dito no parágrafo citerior, é essencial sublinhar que o autor defende que as mudanças materiais por si só não podem – nem conseguem – explicar as mudanças na subjetividade, isto é, e trazendo o exemplo que temos em cima da mesa, a demolição do Padrão não serviria de nada se o que está à sua volta em termos societais não for alterado também.

Em síntese, simplificando o argumento exposto ao longo do texto, a posição aqui defendida é clara: na maior parte dos casos a solução é contextualizar, educar, não esconder o passado e não entrar em tentativas de solucionar problemas profundos com medidas superficiais. Rui Tavares escreveu, acerca de toda esta celeuma acerca das estátuas, acertadamente, numa das suas crónicas no Jornal Público: A solução passa, por muito que isso possa desapontar, por várias soluções. Não recusar o debate, não o fechar à partida, iniciar diálogos abertos e atempados que impeçam que se torne regra a ´justiça por próprias mãos’ — seja para remover estátuas ou para as manter no lugar”.[xvii] Dialoguemos, assim, uns com os outros e com a História do nosso país.


[i] Simões, Ascenso. «O salazarismo não morreu». PÚBLICO. Acedido 21 de Março de 2021. https://www.publico.pt/2021/02/19/opiniao/noticia/salazarismo-nao-morreu-1951297.

[ii] Pincha, João Pedro. «Nova petição junta autarcas e ex-ministros contra fim dos brasões na Praça do Império». PÚBLICO. Acedido 21 de Março de 2021. https://www.publico.pt/2021/02/03/local/noticia/nova-peticao-junta-exautarcas-exministros-fim-brasoes-praca-imperio-1949147.

[iii] Simões, Ascenso. «O salazarismo não morreu». PÚBLICO. Acedido 21 de Março de 2021. https://www.publico.pt/2021/02/19/opiniao/noticia/salazarismo-nao-morreu-1951297

[iv] Dr. Ion Diaconu. «Racial discrimination-Definition, approaches and trends». United Nations Human Rights – COMMITTEE ON THE ELIMINATION OF RACIAL DISCRIMINATION.

[v] Frantz Fanon. Em Defesa da Revolução Africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980

[vi] Id, Ibid.

[vii] Henriques, Joana Gorjão. «European Social Survey: 62% dos portugueses manifestam racismo». PÚBLICO. Acedido 21 de Março de 2021. https://www.publico.pt/2020/06/27/sociedade/noticia/european-social-survey-62-portugueses-manifesta-racismo-1921713.

[viii] Frantz Fanon. Em Defesa da Revolução Africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980

[ix] João Medina. «Freyre contestado: o lusotropicalismo criticado nas colónias portuguesas como alibi colonial do salazarismo». Revista USP, Maio de 2020.

[x] Paulo Freire. Educação como Prática de Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

[xi] Deputada Relatora – Catarina Marcelino. «Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-racial em Portugal». Lisboa: ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA – COMISSÃO DE ASSUNTOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS SUBCOMISSÃO PARA A IGUALDADE E NÃO DISCRIMINAÇÃO, Julho de 2019.

[xii] Id, Ibid.

[xiii] Id, Ibid.

[xiv] Id, Ibid.

[xv]Paul Rabinow (Editor) e Michel Foucault. The Foucault Reader. 1a. New York: Pantheon Books, 1984.

[xvi] RFI. «Cidade francesa de Bordeaux expõe passado esclavagista em placas de rua», 12 de Junho de 2020. https://www.rfi.fr/br/fran%C3%A7a/20200612-cidades-francesa-de-bordeaux-exp%C3%B5e-passado-escravagista-em-placas-de-rua

[xvii] Tavares, Rui. «Não tenham medo de olhar a história de frente». PÚBLICO. Acedido 21 de Março de 2021. https://www.publico.pt/2020/06/12/opiniao/noticia/nao-medo-olhar-historia-frente-1920281