Texto de Márcia Marto. Revisão de Lourenço Duarte. Imagem: Novas Cartas Portuguesas, 40 anos depois – NOVAS CARTAS PORTUGUESAS | 40 ANOS DEPOIS (novascartasnovas.com)
O amor da transgressão integrável,
essa é a verdade desta história e artes.1
Durante séculos, as mulheres permaneceram ausentes ou com um papel secundário na História, afastadas do mundo intelectual e do prazer sexual, conformadas com a função que a sociedade lhes atribuíra.
A obra Novas Cartas Portuguesas é um livro que pretende acabar com a submissão das mulheres, dar-lhes voz, contar as suas histórias e contribuir para a sua representação, não só na literatura portuguesa, mas também internacional.A obra é fruto de uma escrita a três, algo nunca feito até então na literatura portuguesa. Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa – conhecidas como “as três Marias” – num processo de escrita cúmplice, inovador e subversivo, criam uma nova forma de fazer literatura. O livro é composto por diversos textos de múltiplos géneros literários, tais como, poesia, ensaio, carta e textos que fogem a qualquer classificação devido à sua hibridez.
Publicada em 1972, a obra é recolhida e destruída pela censura três dias depois de chegar ao mercado. São acusadas de escrever um livro de conteúdo imoral e pornográfico, dando início a um processo judicial que apenas terminará com a absolvição das escritoras em Maio de 1974. No entanto, e tal como o advogado Duarte Vidal pretende demonstrar ao longo do julgamento, esta acusação resulta do facto de as escritoras serem do sexo feminino, e das críticas feitas ao regime ditatorial ao longo da obra2. Para além de tratarem a condição da mulher (focando as desigualdades e violência nas relações amorosas e sexuais entre homem e mulher), muitos textos abordam a guerra colonial, a imigração, a falta de liberdade, colocando um desafio à noção de identidade sexual e dos papéis sexuais3 .

As escritoras tinham a plena noção da transgressão que cometiam ao publicar uma obra cujos temas e linguagem não eram considerados adequados para uma mulher tratar. Estavam preparadas para as críticas: “Comuna de mulheres ou sufragistas já nos dizem, com riso gelado pela insegurança de nos verem juntas: barreira intransponível.” (Novas Cartas Portuguesas, p.100) Em Novas Cartas Portuguesas, a mulher tem prazer com o próprio corpo e o seu objectivo não é a fecundação; é, simplesmente, ter prazer. As três Marias demonstram-nos que não basta a mulher revoltar-se a nível político. Ela tem também de se reinventar no seio familiar e na sua intimidade, porque a mudança tem de começar dentro de si com a (re)descoberta e aceitação da sua sexualidade. Para transmitir esta ideia, as escritoras transgridem certas convenções sociais, utilizam palavras proibidas, tecem fortes críticas sociais e políticas, invertem os papéis feminino/ masculino, colocando a mulher como sujeito activo nas relações sexuais, reivindicando para a mesma o direito a ter prazer.
O género híbrido, a nova forma de narrar (apesar de serem três vozes distintas, há uma multiplicidade de pontos de vista que retrata milhares de mulheres), a escrita sem regras e a intertextualidade são muitos dos elementos que fazem deste livro uma ode à liberdade e ao prazer do corpo e da leitura. Tudo isto levou a que se gerasse uma enorme polémica em torno da obra que se fez ouvir internacionalmente, levando mulheres como Simone de Beauvoir a apoiar a causa das três Marias.

Numa entrevista publicada no site Esquerda4, Maria Teresa Horta confidencia: “Enquanto preparávamos os montinhos perguntei quanto tempo tínhamos demorado a escrever as Novas Cartas Portuguesas. Chegámos então a essa conclusão: foram nove meses, o tempo de uma gestação. É impossível ser um acaso.” Desta junção de três mulheres nasce uma nova escrita, um livro que surge para renovar o panorama literário português, questionar o papel da mulher e reclamar para a mesma uma identidade e um lugar na sociedade. Escrever deve ser, segundo Maria Teresa Horta, um acto de amor e de transgressão: “Pois quem escreve não pode deixar de transgredir. Não pode evitar o risco. Já que a arte de escrever é, em si mesma, um acto de criação em movimento constante: de renovação, de entrega, de conturbação e desassombro.”5
É este desejo de afrontar as regras e de chocar mentalidades, com o intuito de as mudar, que encontramos nas três escritoras. Para estas, as palavras têm esse poder, apesar de se questionarem: “Mas o que pode a literatura? Ou antes: o que podem as palavras?”. Hoje, a resposta é mais óbvia. A literatura levou à descredibilização e enfraquecimento de um regime ditatorial, e as três Marias foram agentes cruciais neste processo. É esta inconformação com as regras e leis estabelecidas que origina o erotismo. Segundo as escritoras, será através dele que o sexo feminino se conseguirá libertar da opressão. Ao tomarem como mote a obra atribuída à freira Mariana Alcoforado, intitulada Cartas Portuguesas6, reconfiguram as relações entre homem e mulher e criam, para o sexo feminino, uma nova identidade:
… castigo sofro por me ter entregue: amante de homem por prazer;
Embora… de prazer me dei e conquistei, desafiando de aparência o mundo e a mim mesma nesse desafio de coragem, inconsciência ou grande tentação de fuga, a única que desde sempre se me deparou.” (Novas Cartas Portuguesas, p.52)
Um desafio de coragem sintetiza muito bem aquilo que é esta obra. As três Marias tiveram a coragem de usar livremente as palavras e não se deixaram oprimir pelo governo ditatorial nem pela sociedade profundamente machista e patriarcal em que habitavam. A literatura surgia, então, como um meio de luta e resistência. Durante o julgamento, as escritoras mantiveram uma atitude alegre e descontraída, mostrando que não tinham medo. O julgamento foi mesmo marcado por alguns momentos de riso:
Apesar de toda a violência de que fomos alvo, de facto, nunca deixámos transparecer intimidação. E muito do que nos rodeava chegava a ser cómico: desde a assistente que transcrevia tudo o que era dito, porque nada era gravado, e interrompia constantemente para perguntar se sutura se escrevia com s ou ç, até ao procurador que parecia ter encenado as intervenções antes de ir para tribunal… Tudo isso nos fazia rir. [risos] Não me lembro de ter tido medo uma única vez. Nem quando saí de casa para ir para o tribunal julgando que o juiz iria ler a sentença.3

O riso, aliado à paródia, é também um elemento importante e inovador na obra, visto simbolizar a resistência, subversão e libertação dos grilhões do Estado Novo. Com todas estas armas – a transgressão, o erotismo, o prazer, o riso – se muniram três mulheres e criaram uma das mais belas obras da literatura portuguesa contemporânea.
Mais do que um manifesto feminista, trata-se de uma obra de género híbrido que apela à liberdade criativa, à liberdade textual e, acima de tudo, à liberdade do ser humano em todos os seus níveis.
“A liberdade hoje, manas, é a persistência do riso de quem aguentá-lo pode sem esgar.” (Novas Cartas Portuguesas, p.273)
1 Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas – Edição Anotada, D.Quixote, 2010, p.273.
2 Duarte Vidal conclui que “a pornografia e as ofensas à moral pública foram um mero pretexto para esconder o verdadeiro motivo desta acusação que é de carácter político” (p.62). No entanto, também refere que o facto de as três autoras serem do sexo feminino foi um factor decisivo: “concluo que há uma discriminação porquanto os escritores portugueses, homens, que nos seus livros têm descrições mais realistas do que as que constam de «Novas Cartas Portuguesas» não foram incriminados.” (p.70) Duarte Vidal, O Processo das Três Marias: Defesa de Maria Isabel Barreno, Editorial Futura, Lisboa, 1974.
3 Como, por exemplo, o texto “O Corpo”, onde se descreve um corpo cujos símbolos corporais remetem para uma descrição estereotipada do corpo de uma mulher. No entanto, no final do texto percebemos que o corpo descrito é o de um homem observado pelos olhos da mulher.
4Maria Teresa Horta e Mariana Carneiro, «Escrever as Novas Cartas Portuguesas foi uma das coisas mais importantes da minha vida», Esquerda, 24/01/2021, “Escrever as Novas Cartas Portuguesas foi uma das coisas mais importantes da minha vida” | Esquerda
5Maria Teresa Horta, Escrita e Transgressão, Matraga, Rio de Janeiro, v.16, n.25, jul./dez. 2009. Escrita e transgressão | Horta | Matraga – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ
6Freira enclausurada no convento de Beja que teve por amante um oficial francês, Noël Bouton de Chamilly, ao qual terá escrito cartas de amor publicadas em 1669 por Claude Barbin. Até hoje existem dúvidas acerca do verdadeiro autor ou autora das mesmas.
*Todas as imagens foram retiradas da página Novas Cartas Portuguesas, 40 anos depois – NOVAS CARTAS PORTUGUESAS | 40 ANOS DEPOIS (novascartasnovas.com) e da página Esquerda – “Escrever as Novas Cartas Portuguesas foi uma das coisas mais importantes da minha vida” | Esquerda.