Filosofar em tempos de pandemia, Andreas Gonçalves Lind, SJ

Texto do Pe. Andreas Gonçalves Lind, SJ. Revisão de Miguel Ribeiro. Imagem: Gratis PNG.

Diz Karl Popper que uma teoria tem de ser falsificável para que possa ser apelidada de científica. Talvez por esta razão, os filósofos não são considerados cientistas, dado que, com frequência, mostram habilidade para interpretar tudo o que vai acontecendo neste mundo como uma confirmação das suas teses. Neste tempo de pandemia, filósofos da nossa praça, como Slavoj Žižek, Giorgio Agamben, Bernard-Henri Lévy, Jean-Luc Nancy, por exemplo, têm procurado refletir a partir do novo contexto em que nos encontramos. As suas reflexões procuram encontrar possíveis explicações para as origens da pandemia, bem como tudo do que dela possamos aprender. 

Para autores de inspiração marxista, é natural ver a pandemia como o declínio do sistema capitalista – alguns hiperbolizam a realidade adotando o termo “hipercapitalista”. Dizem que, se não é o resultado de um sistema perverso, a pandemia põe, pelo menos, a descoberto as debilidades do nosso sistema técnico-capitalista em toda a sua fraqueza e incoerência; um sistema que está inevitavelmente destinado a perecer no fim da História. E isto porque os mecanismos de mercado nem foram capazes de prever e de se precaver para o que aí vinha – isto quando, cientificamente, a pandemia era previsível –, nem se mostram agora eficazes na mitigação dos seus efeitos nocivos. Enquanto, por um lado, se vê na pandemia a incapacidade ou incoerência de um sistema que não resolve os problemas reais e aumenta as desigualdades, por outro, há quem nos alerte para o perigo de um estado de exceção que impõe uma nova tirania, capaz de nos retirar as liberdades mais fundamentais. Nesse caso, não é apenas o capitalismo, mas mais concretamente o “delírio higiénico” que instaura o medo capaz de nos desumanizar, afastando-nos uns dos outros, a partir do tirânico poder de um “despotismo técnico-medical”.

A meu ver, o problema de se ser demasiado ideológico revela-se quando as análises espelham apenas um dos lados de uma realidade que, por essência, é poliédrica. Dessa forma, somos levados a não olhar para outros aspetos da mesma realidade, ao ponto de nos deixarmos fechar numa bolha ideológica que não nos abre o horizonte para vias alternativas. A meu ver, os filósofos de pendor marxista acabam, parece-me, por não perceber e integrar nas suas análises três dados relevantes. Em primeiro lugar, convém ter em conta que, sobretudo em situações de pandemia, nenhum sistema humano poderá oferecer o Céu. Por outras palavras, independentemente dos sistemas e paradigmas que vigorarem, sempre haverá dor em situações de pandemia. Em segundo lugar, é importante usar, sobretudo em tempos de pandemia, os ditos mecanismos de mercado de forma a subsidiar, contraindo dívida, quem deve ficar confinado por um longo período de tempo. Mesmo sem contar com a capacidade de tais mecanismos na produção e na distribuição de bens essenciais, não esqueçamos que são os países ditos capitalistas ou liberais, sobretudo os ditos “países frugais” com finanças públicas equilibradas, que mais capacidade têm para confinar e ao mesmo tempo ajudar as nações em maior dificuldade. Em terceiro lugar, as restrições à liberdade em tempos de pandemia devem ser compreendidas como uma exceção, em resposta a uma emergência de saúde pública e, por isso, a um valor maior.

Apesar das limitações que toda a análise ideológica revela, e não obstante o legítimo desacordo em relação aos filósofos que têm estado a refletir sobre a pandemia, creio que temos muito a aprender com o que dizem. Refiro-me, sobretudo, a Jean-Luc Nancy, no seu mais recente livro Un trop humain virus (Paris: Bayard, 2020). 

Começo por sublinhar a redescoberta, suscitada pela pandemia, do “princípio” de adaptação a uma realidade que se nos impõe, contrariando os nossos prazeres e a nossa vontade. O vírus põe, assim, em causa a ideia de um sujeito criador.  Desfaz-se, portanto, a teimosa certeza do progresso científico-tecnológico, a partir do qual poderíamos vir a conquistar e dominar o mundo. Tem razão Jean-Luc Nancy quando nos diz que o vírus desconstrói o paradigma da civilização racionalista e tecnológica. Pois, a experiência de incerteza, de incapacidade de prever e de planear, desvela os limites do nosso paradigma científico, tecnológico, económico e político, pondo a descoberto as suas contradições.

Nesse sentido, é evidente que a pandemia nos tem levado a redescobrir a fragilidade que caracteriza a nossa condição humana neste mundo. Qual incapacidade de controlar e de dominar o mundo a bel prazer, vivida e experienciada na nossa carne, essa fragilidade pode levar-nos a encontrar um novo estilo de vida cujo motor deixará de ser a vontade de domínio, de forma a nos abrir a objetivos bem distintos da mera conquista material do mundo através do conhecimento e da tecnologia. A este respeito, é interessante notar como a pandemia não traz apenas a angústia e as tensões que sentimos em tempos de confinamento: a precariedade económica e a incerteza também têm oferecido ocasiões para que a solidariedade se torne, em gestos e ações, num lugar e num processo de crescente humanização. 

Assim, e por mais paradoxal que possa parecer, a necessidade de usarmos máscaras, de nos distanciarmos uns dos outros, por forma a minorar a propagação do vírus, comprova o facto de sermos um corpo unido. Na medida em que estamos intrinsecamente interconectados uns com os outros, não faz sentido continuar a defender uma radical liberdade de autodeterminação de cada indivíduo. A interdependência que agora experimentamos contrasta com as ilusões de autossuficiência e confirma que não somos ilhas isoladas. Por isso, não me escandaliza que filósofos como Jean-Luc Nancy falem de uma forma emergente de comunismo, dado que o vírus de algum modo nos “comuniza”. E, apesar das liberdades que, pelo menos temporariamente, perdemos durante este processo de “comunização”, o vírus traz-nos uma questão absolutamente central: a de saber o que nos une enquanto homens e mulheres que habitam um mesmo mundo, numa mesma sociedade; trata-se de saber se há um projeto capaz de nos congregar e de nos conduzir a uma vida em comum.