Um olhar atento: O determinismo e o sinistro no cinema, Anabela P. Dias

Texto de Anabela P. Dias. Revisão de Miguel Ribeiro. Imagem: The Code, Akiane Kramaric.

Introdução

Passamos a vida a consumir arte. Vemos um filme para escaparmos um pouco da nossa vida; queremos que algo nos faça rir ou chorar. E por vezes admiramo-nos por gostar de uma determinada obra de um determinado género.

Contudo, existem vários factores que nos levam a gostar de filmes bastante distintos. Só que, por vezes, não detectamos esses elementos nas obras que consumimos. Tal se deve ao facto de o nosso olhar não estar treinado para ver esses elementos e eles passarem-nos despercebidos.

Este ensaio visa denunciar dois conceitos filosóficos na sétima arte: o determinismo e o sinistro (a beleza por detrás do sinistro). Irei expor algumas obras em que estes conceitos se aplicam e o porquê de terem um papel significativo nos filmes que consumimos.     

Determinismo

Seremos realmente livres para agirmos da maneira como agimos ou será que, sem termos noção, todas as acções já estão pré-determinadas? Pensamos que temos livre-arbítrio e por vezes dizemos coisas como: “Eu fiz isto porque eu queria” ou “Eu faço o que quero”. Contudo, seremos realmente livres? Ou estaremos condicionados por algo maior que nós? 

Gostamos de acreditar que somos agentes livres pois isto permite-nos fazer planos para a nossa vida e sentir que os nossos atos possuem valor. Se não pudéssemos controlar as nossas vidas então estas perderiam o valor que acreditamos que possuem.

Contudo, ao mesmo tempo acreditamos que cada causa possui um efeito. E assim o é, então parece existir de facto determinismo: os nossos comportamentos são efeitos de determinadas causas. Ora, se rejeitarmos o livre-arbítrio em prol do determinismo estamos a defender o determinismo radical que afirma o seguinte: Temos de nos habituar à ideia de que ninguém é realmente responsável por seja o que for. A crença na liberdade e na responsabilidade moral foi um luxo (…) [i]

Ora, se não é possível que as nossas acções sejam todas livres (liberalismo), mas também não formos capazes de acreditar que todas as causas produzem um efeito em concreto (determinismo radical) então, podemos aceitar o determinismo moderado. Este defenda a ideia de que podemos manter ao mesmo tempo o conceito de liberdade e de determinismo.   

No fim de tudo queremos acreditar que somos livres, queremos achar que de certa maneira estamos no controlo da nossa vida. Que não estamos simplesmente a seguir o caminho que algo ou alguém traçou para nós. Se assim fosse, todas as vezes que ponderamos sobre algo, que acreditamos ter feito o que era melhor, não passaria uma ilusão. Se o liberalismo fosse irreal a vida continuaria a ser do mesmo jeito que sempre foi até agora, mas preferimos pensar que de alguma maneira influenciamos o meio ambiente e que temos controlo sobre nós mesmos.

O determinismo na sétima arte

Ora, muitos indivíduos parecem aceitar que a arte tem tendência a imitar a vida. Por esse mesmo motivo, podemos deduzir que em diversos filmes as questões que atormentam o nosso dia-a-dia também se encontram presentes.

 Nos filmes muitas vezes vemos declarações de liberalismo. As personagens sentem que possuem uma certa liberdade, que agiram de uma determinada forma mas podiam muito bem ter agido de outra maneira. Mas será que tal seria mesmo possível? Quer dizer, todos estamos familiarizados com as típicas comédias românticas, os intitulados clichés. Sabemos que aquelas duas personagens irão acabar juntas no final, e mesmo assim sofremos com eles. Sofremos em cada imprevisto e em cada reviravolta. E contudo, o fim é sempre o mesmo: depois de uma declaração amorosa, depois das lágrimas, tudo se resolver e os protagonistas ficam juntos. Será que nesses casos poderíamos ter outro desfecho que não o óbvio?

Talvez sim ou talvez não. O facto é que queremos ser livres, mas vemos esses filmes porque sabemos como eles vão acabar. Procuramos fugir dos nossos problemas e dos nossos desastres amorosos. É por isso que esses filmes só podiam acabar dessa forma. Sentimo-nos enganados se o desfecho for diferente pois queremos acreditar que, apesar da nossa vida em determinado momento se assemelhar a uma tragédia, tal irá passar e também obteremos um final feliz. 

É por esse motivo que, apesar de sermos todos seres distintos, a maior parte de nós aprecia filmes da Disney. Porque apesar de todos os percalços que surgem no caminho (madrastas más, bruxas e feitiços), sabemos que os filmes acabam sempre com a mesma mensagem: “e viveram felizes para sempre”. É como Nietzsche afirmou numa determinada altura da sua vida: «We have art in order not to die of the truth,»

Contudo, a questão do determinismo não está apenas presente nos filmes românticos ou de contos de fada, mas também nos géneros mais obscuros. Último destino[ii] é um bom exemplo de um filme que aborda a questão da liberdade. 

O foco do determinismo neste filme parece estar resumido a um pequeno monólogo obscuro que um agente funerário faz. Onde discorre sobre a impossibilidade de fugir da morte:

Na morte não há acidentes. Nem coincidências, nem casos fortuitos. E não há fugas (…) Cada movimento nosso, do mais mundano ao mais monumental… O semáforo vermelho em que paramos ou avançamos, as pessoas com quem temos sexo, ou não, os aviões em que entramos ou saímos… faz tudo parte do sádico desígnio da morte, que nos conduz à sepultura.[iii]

Este filme foca-se num grupo de adolescentes que tentam escapar à morte que os persegue desde o momento em que eles conseguiram fugir de um acidente que supostamente os deveria matar. Esta citação demostra um exemplo claro de determinismo radical, onde cada acção nossa nos leva a um determinado destino. Destino este ao qual não podemos escapar, pelo menos não durante muito tempo. 

A beleza no sinistro

Quantas e quantas vezes sentimos prazer a ver algo que num primeiro momento poderíamos descrever como angustiante ou sinistro? Trías, na sua obra O belo e o sinistro[iv]explica-nos que o sinistro é uma condição e um limite do belo. Este representa um limite em relação ao máximo que podemos suportar de algo horroroso sem isso nos causar repulsa. 

Por vezes, quando observamos um filme consideramos que este possui a sua beleza, mesmo que possua um carácter sinistro. Tal sensação parte de um véu ilusório que cobre as cenas em questão e não deixa que ultrapassemos o limite do belo. 

Por vezes não entendemos o motivo pelo qual começa a tocar uma determinada música, numa certa cena de um filme que estávamos a ver. Contudo, esta surge para criar uma atmosfera, um determinado ambiente. Muitas vezes, quando estamos a ver um filme de terror e o assassino vai aparecer a qualquer momento, começa a tocar um acorde que nos quase automaticamente que o momento de impacto está iminente. Tal aviso não quebra o suspense do momento, muito pelo contrário: intensifica-o. Ficamos a questionar se será ou não neste preciso momento e quando tal sucede, assustamo-nos à mesma. 

Ora, é impossível debatermos este tópico sem pensarmos no filme de 1960, Psycho. É um filme realizado com o intuito de chegar apenas a uma sinistra cena específica de suspense. Cena esta que se concentra no grito de uma determinada personagem, com a intenção de despertar emoções ao espectadores. O próprio director da obra admitiu que a melhor parte do filme não é a sua história, mas sim as emoções que o filme provoca aos espectadores:

Não me interessa o tema; não me interessa a atuação; mas interessa-me a película e a fotografia e a banda sonora e todos aqueles ingredientes técnicos que fizeram a audiência gritar. (…) Não foi uma mensagem que agitou as audiências, nem foi uma grande atuação ou o prazer retirado da história. A audiência foi abalada pelo puro filme.[v]

Voltemos agora a analisar uma parte do filme Último Destino. A história que dá origem ao filme inteiro gira em torno de um acidente de avião. Ora, grande parte da população já andou de avião, e são várias as pessoas que temem esse momento. Ao vermos a premonição de que o avião vai explodir em pleno ar sentimos uma certa empatia relacionada com o medo que tal nos pudesse acontecer. Sentimos um certo prazer relacionado com esse medo. Sentimos que somos pequenos e limitados. Contudo, apesar da experiência negativa, ela suscita-nos um sentimento superior. E tal sensação só é possível porque a contemplo de fora, porque não estou em perigo. É uma experiência sublime e ao mesmo tempo sinistra.

Ou seja, só nos podemos sentir tranquilos perante esta cena porque estamos seguros a visionação do filme não é uma questão de vida ou de morte para o espectador. Se tal situação estivesse de facto a acontecer connosco seria impossível repararmos esteticamente a beleza das chamas que envolvem o avião

É impossível que os telespectadores não apreciem os pequenos detalhes macabros e as músicas que tocam nas cenas mais horripilantes, uma vez que todos esses factores possuem um propósito. – o de causar um juízo de gosto e/ ou, uma apreciação estética do sinistro. Mesmo que quem esteja a ver o filme não esteja consciente de tal feito. 

Podemos apreciar certas cenas que estão no limiar do estético e do horripilante. A contemplação da arte não requer que estejamos conscientes da sua presença para acontecer. É algo externo ao sujeito. Mesmo que ninguém visse o filme,  o seu valor artístico continuaria lá. E é normal que por vezes não sejamos capazes de entender porque é que gostamos de um certo filme. 

Conclusão

Podemos concluir que a filosofia está presente em todo o lado, até na arte. Basta olharmos de forma atenta para o que nos rodeia, que a encontraremos. 

São as pequenas coisas que nos prendem a atenção e fazem-nos gostar de algo. Por vezes não sabemos o motivo que nos leva a apreciar determinadas coisas, mas há uma explicação para isso. 

Se a arte imita a vida ou a vida imita a arte, ainda não sei bem. Talvez de certa maneira elas dependam uma da outra. Talvez não exista uma resposta para tal, se houvesse, provavelmente não teríamos a cadeira de filosofia da arte. Contudo, mesmo que nunca encontremos tal resposta, o mais importante é parar um pouco e apreciar a vida e a arte. 


Bibliografia

Earl Conee e Theodore Sider, Enigmas da Existência, Tradução de Vítor Guerreiro, Editorial Bizâncio, Lisboa (2010).

Searle, John, Minds, brains and science, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, (2003).

Trías, Eugenio, O belo e o sinistro, Tradução de Miguel Serras Pereira, Fim de século (2005)

Final Destination, direcção de James Wong, produzido por Warren Zide, Craig Perry, Glen Morgan, roteiro de Glen Morgan, James Wong, Jeffrey Reddick, história de Jeffrey Reddick, baseado em Flight 180 de Jeffrey Reddick, edição de James Coblentz, New Line Cinema (17 de Março de 2000).

Alfred Hitchcock in: François Truffaut. Hitchcock: A Definitive Study of Alfred Hitchcock. New York: Simon & Schuster. 1986, 282-283.


[i] Earl Conee e Theodore Sider, Enigmas da Existência, Tradução de Vítor Guerreiro, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2010, página 152. 

[ii] Final Destination, direcção de James Wong, produzido por Warren Zide, Craig Perry, Glen Morgan, roteiro de Glen Morgan, James Wong, Jeffrey Reddick, história de Jeffrey Reddick, baseado em Flight 180 de Jeffrey Reddick, edição de James Coblentz, New Line Cinema (17 de Março de 2000)

[iii] Final Destination, direcção de James Wong, produzido por Warren Zide, Craig Perry, Glen Morgan, roteiro de Glen Morgan, James Wong, Jeffrey Reddick, história de Jeffrey Reddick, baseado em Flight 180 de Jeffrey Reddick, edição de James Coblentz, New Line Cinema (17 de Março de 2000), minutos 40 e 41.

[iv] Trías, Eugenio, O belo e o sinistro, Tradução de Miguel Serras Pereira, Fim de século (2005)

[v] Alfred Hitchcock in: François Truffaut. Hitchcock: A Definitive Study of Alfred Hitchcock. New York: Simon & Schuster. 1986, 282-283.