Trump, as eleições e a América, JOÃO FREITAS MENDES e João N. S. Almeida

Textos de João Freitas Mendes e João N.S. Almeida. Revisão de Tomás Ferreira. Imagem: Poster de 1955 do filme Richard III, realizado e protagonizado por Laurence Olivier.

Marx supôs que o capitalismo se desenvolveria até ao seu próprio ponto de ruptura, situado objectivamente no acirramento natural e crescente da massa una do proletariado face à acumulação – também natural e crescente – de riqueza pela outra classe. A grande maioria revoltar-se-ia contra os seus exploradores e escolheria – como não? – o caminho da revolução, na sociedade burguesa. Provavelmente, isto exprime uma abdução psicológica, ao julgar que os proletários agiriam sempre salvaguardando os próprios interesses. Existe uma frase marxista particularmente irreal quando lida hoje: “ o proletariado apenas exprime o segredo da sua própria existência, pois ele é a dissolução de facto dessa ordem.” Dir-se-ia: aqui está o retrato da classe revolucionária segundo Marx, logo aqui não está um mundo de tecnocracias, micro-interesses e de marginalidades sociais.

Seja como for, ao olharmos para a ascensão de Trump e dos novos autoritarismos, parece uma teoria económica boa ou muito boa, porque ordena historicamente, através de um sentido particular, uma série de relações de poder, que podemos mais ou menos identificar de forma esquemática. Neste sentido, socorremo-nos das ideias marxistas como quem cita Fradique Mendes. Isto parece-me adequado, por mais do que uma razãoque não irei comentar aqui. 

Evidentemente, não seria de prever (para aquele desamigado de Proudhon) que as revoluções progressistas da segunda metade do século passado propusessem sociedades abertas, caminhos relativamente plurais. Hoje, um proletário – um precário, um estagiário, um funcionário – tem um núcleo de interesses menos homogéneo. Talvez, no entanto, não seja bom exagerar neste aspecto, porque de facto a deterioração actual das condições de vida tende a compor um cabaz idêntico de reivindicações – “a paz, o pão, habitação, sauuúde, educação.” Este reagrupamento dos eleitores poderia, em tese,escolher entre formas diferenciadas de radicalismo, à esquerda e à direita, com figuras de cartaz diferentes. Mas não pode: a extrema-direita ocupa agora o campo das revoluções igualitárias.

É verdade que as notícias da primeira república propiciaram que Salazar se declarasse o oposto: seja como for, notai por favor que só o fez quando já era governante, constituinte e, dizem relatos avisados, companheiro dilecto da cadeira do arquitecto. Hoje, há pessoas mais velhas que recordam (e recordam a outras mais novas) o tempo do salazarismo. Por isso, não creio que a entronização popular possa acontecer com o programa verdadeiro (o que também não é novo).

O paralelo com o que ocorreu há cem anos é demasiado fácil, mas deixem-me continuá-lo. Como então, os interesses conservadores têm ideólogos, meios de comunicação, empresários, universitários, etc. Nada de original, portanto. O único problema real que temos é ser-nos dito que não é tempo de escolher (ou que não há tempo para isso), que não há opções a tomar. É curioso que alguns dos críticos do materialismo histórico sejam agora apologistas do miserabilismo histórico. Trocam uma profecia por outra. Mas eu não pretendo discutir com pessoas que professam coisas, não vá o diabo tecê-las. (Da mesma forma, há quem assegure que a China é uma forma peculiar de democraciaa Coreia do Norte a democracia menos democrática de todase os EUA a “democracia modelo”).

Para continuar, a esquerda da questão actual não matou o rei, nem o príncipe-herdeiro. A esquerda portuguesa sente-se curadora da democracia e por isso não a critica, torna-se conservadora, o que já foi observado noutros lugares. Devemos assumir as nossas insatisfações com a democracia. A partir daí, teremos campo para respostas. É claro que a democracia falhou. A derrota eleitoral parece consistir numa falha democrática “original”. Para Aristóteles, a democracia é o regime que serve o interesse dos pobres(v. Política, Livro III). Ora, hoje temos disto o seu inverso. Só através da denúncia da oligarquia (o regime que serve o interesse dos ricos) haverá chão para desenvolver o progressismo. A oligarquia adaptou-se, decerto: passou de familiar, nacionalista, tradicional, a globalista, tecnológica. O desfalecimento do real chutou fora as pessoas e, logo, os limites morais, que parecem emperrar a técnica. Já nem vale o grão na engrenagem. Os “mundos novos” de todo o género, de todos os géneros, que começaram no séc. XV combinaram a ousadia de dar a conhecer o seu lugar verdadeirode crueldade nestes tempos médios, entre a segu6nda guerra e o apocalipse, em que os avanços grupais ressoam a conquistas básicas de humanidade, e a legitimação do “princípio do retrocesso social” parece um fetiche dos senhores, que põem e dispõem da vida do servo, a que agora chamamos às vezes economistas.

Entre as polaridades – a que “livremente” somos chamados – existem os observadores. É gente que, perante o hipotético afundamento da nau Catrineta, permanece equidistante, arbitral: não estão de acordo com o meu lado que diz que a culpa é do barqueiro nem com os do lado direito da proa, que culpam a tripulação. A história política tem apaixonado os dois lados – mas há vantagem táctica para o árbitro, “funcionário zeloso”. Pelo menos, esta é a tese maioritária dentro da larga minoria que pode dedicar-se a estes alvedrios. 

Perante o despiste ilhéu da proposta de esquerda e o alegado desaparecimento da grelha de análise do companheiro de Engels, que a burocracia soviética embolsou longamentecomo meio de sobrevivência, e o seu registo nacional faz superviver, a única coisa que a gente próxima do meu entendimento está a fazer é tentar ficar bem na fotografia. “Nós bem avisámos”. Não há acção. O reflexo disso é o debate orçamental entre as várias propostas social-democratas, que afinal poderá, quando muito melhorada, ser uma. A terceira via é afinal a única disponível, porque a primeira e a segunda não puderam comparecer. 

À semelhança dos eternos rivais da segunda circular, a saúde do lado esquerdo inferniza o lado direito, e vice-versa – como acontece agora. A direita portuguesa, encaixotada no curso internacional que a transcende – tal como em 1928 – está buliçosa. Encolhe a barriga, estica o peito, ajeita o nó da gravata. A revolução conservadora em curso precisa de amigos.

Fazer de conta que a análise jurídica de um partido anti-sistema pode ser, em algum sentido, o preenchimento de articulados e a leitura da papelada estatutária ofende a inteligência. Ao que parece, não se trata de um pedido à direcção da escola secundária para homologar uma lista de maus alunos para a associação de estudantes. Então os juízes da rua temporal conseguem ressalvar inconstitucionalidades constitucionais por meio de domínios alemães e da quinta-essência das artes políticas e económicas (é tudo ciência e savoir-faire), e para elaborar a análise de um pretenso partido, sem assinaturas válidas, a cargo de um populista, vão fazê-lo sem recorrer às artes do ofício? Imaginam qual seria o papel de qualquer tribunal que procurasse activamente esquecer tudo o que pode saber?

Siga o baile. Siga a rusga. Siga o “silêncio das formigas nesta oficina caseira”. Talvez o único problema seja a duração dos tempos lectivos na minha escola: os semestres são demasiado curtos para trocarmos ideias sobre o século XX.

João Freitas Mendes


Passadas várias semanas sobre a eleição para presidente dos Estados Unidos de 2020, é credível poder adiantar o seguinte: foi um acontecimento simultaneamente tanto anticlimático como, paradoxalmente, correspondente à aparente vontade de uma grande e sonora parte da população americana e mundial que desejava ardentemente uma mudança na liderança desse país. Apesar disto, o anti-clímax a que nos referimos está ligado à aparente manutenção das divisões profundas, que não foram criadas mas foram postas a nu pela eleição de 2016. O curioso disto é que o resultado final de 2020 — mesmo contando com o domínio democrata do congresso e do senado — não importa tanto como as percentagens de representatividade de cada uma dessas partes da população, a progressista e a conservadora.

Teria sido tão bom que, neste artigo, tivéssemos podido salientar os pontos positivos de Trump vistos por alguém que não gosta dele à partida, e os pontos negativos de Trump descritos por alguém que o aprecia. Tal não foi possível: estamos em fevereiro de 2021, a circunstância política dos Estados Unidos evoluiu e continua a evoluir imprevisivelmente, e as contingências relacionadas com a pandemia presente tolhem-nos, a todos, planos pré-estabelecidos. A ideia, de qualquer modo, seria clarificar ou desmistificar alguns dos lugares-comuns sobre a personagem, nomeadamente estes: que é racista, que é totalitário, que despreza as mulheres, que é homofóbico, que mente mais do que o comum político; e por último, a eventual legitimidade – e originalidade – do seu ataque à imprensa corporativa e uma breve revisão do seu papel transformador na política americana. E, claro, os seus defeitos! (entre os quais: inexperiência, arrogância, intransigência, apreço pela forma acima do conteúdo, boca-grande, etc). A ideia seria, também, destoar da típica análise que se resume a dizer mal dele, frase sim frase não. Por último, teria sido positivo que o artigo tivesse sido escrito em forma de pontos, muito sumários, e não em formato de ensaio muito prolixo e quase narrativo; isto, porque o assunto já está tão batido, tão batido, que talvez tivesse sido melhor sumarizar este artigo como uma muito dirigida série de correções a ideias feitas. Fica aqui a descrição do que podia ter sido e do que pode ainda vir a ser, conforme as leituras a que o texto se preste.

Seria então de bom tom apresentar, desde já, alguns factos que modelam e modelaram e continuarão a modelar o campo de jogo da disputa democrática. Em primeiro lugar, o falhanço monumental dos media – ao medirem a “temperatura” da opinião popular – e das sondagens – usaram modelos errados ou existe uma falência do conceito de sondagem? – e da força eleitoral da esquerda, representada pelo partido democrata, que ficou a uma muito grande distância da hecatombe vitoriosa que sonhava para si. E ainda mais, seguramente, muito longe da qualificação de Trump como uma espécie de organismo estrangeiro ao sistema democrático americano (ou às elites instaladas no mesmo), enfim, à democracia, à política em geral. Os democratas, insistindo cegamente nesses pontos, alienam aquele que era e novamente volta a ser metade do eleitorado norte-americano, os conservadores republicanos. Ademais, entre este eleitorado conta-se um número crescente de minorias, mais do que em 2016, não sendo composto apenas do “homem branco”, como é costume descrever-se – e mesmo que fosse, não seria este também uma espécie de pré-minoria, já que se anuncia vitoriosamente que dentro de 30 anos o será?

Extrapolando para a nossa realidade local: o mesmo, ou algo inteiramente análogo, se passará em Portugal e noutros países da europa. Epítetos como racista, fascista, xenófobo, são aplicados indiscriminadamente a forças populistas de direita que adoptam causas muitas vezes manifestamente leves de nacionalismo, cepticismo quanto a abertura de fronteiras, etc. Existe, também, um populismo de esquerda, menos referido: forças de esquerda-centro a tender para extremos tendem a usar argumentos fáceis mas de exdrúxula concretização como: taxar “ricos” a 70% do rendimento, inúmeros serviços grátis para todos, além de fronteiras indiscriminadamente abertas a emigrantes e refugiados, etc. Uma coisa parece separar estes dois extremos: o primeiro, o da direita conservadora republicana, que não advoga explicitamente na sua ideologia política o conceito da “tolerância” (?), parece resignar-se a ter de aturar o outro lado da barricada, a esquerda progressista democrata; e, de facto, não são conhecidos sobejos exemplos de pessoas de direita a cortarem relações com pessoas de esquerda devido às suas convicções. O contrário, como bem observamos, nós, os urbanos, na nossa vida quotidiana, já não é verdade.

Tentarei concluir este texto com mais um excurso, um outro ponto breve, mais um dos pontos em que faço toda a caridade de avisar os seus opositores que pecam bastante em entendê-lo mal e isso só os fará continuarem a ter desilusões. Trata-se do seguinte: Trump não é tudo entertainment. Os seus detratores pensam que sim, mas não vêem nem ouvem bem o que faz e diz. E, mesmo assumindo isso, que Trump fosse inteiramente um produto da televisão e do espectáculo, o que significa isso? O que é ser “tudo entertainment”, ou o que é estar sempre no modo do entretenimento? É isso possível? E os políticos, estão sempre no modo “político” de exposição pública, ou seja, uma espécie de entretenimento também? Este é apenas um de entre muitos aspectos de Trump que os seus opositores não entendem bem, distorcem, demonizam cegamente, e que só os leva a ter uma visão do mundo, da política e daqueles que não pensam como eles absolutamente tendenciosa, e que os empurra para as trincheiras de um totalitarismo perigoso.

João N. S. Almeida