Sobre a identidade pessoal e a persistência ao longo do tempo: Poderá a inteligência artificial possuir uma identidade pessoal?, Ana Rita Pacheco

Texto de Ana Rita Pacheco. Revisão de Miguel Ribeiro. Imagem: fotograma de Westworld, HBO, 2020.

Introdução: 

Neste ensaio, primeiramente, irei expor as quatro principais perspetivas sobre a identidade pessoal, sendo estas: a perspetiva animalista, a perspetiva da alma, a perspetiva lockeana e a perspetiva da mente incorporada. 

Após a exposição das mesmas, irei defender a perspetiva da mente incorporada, por ser a que levanta menos implicações graves e por ser a única que pode ser aplicável à inteligência artificial, pois não evolve a necessidade de um corpo humano, de uma alma ou de memória.  

O meu objetivo com este ensaio é conseguir, através da análise das várias perspetivas de identidade pessoal acima referidas, concluir quais são as caraterísticas necessárias para a existência de identidade pessoal, o que fundamentalmente será responder às questões: «o que é que persiste num ser humano ao longo do tempo?» e « podemos afirmar que a inteligência artificial possui identidade pessoal?».  

Na minha perspetiva, este tema é de grande relevância para a antropologia filosófica, por dois motivos: porque a identidade pessoal sempre foi um tema metafísico muito discutido por várias gerações de filósofos e porque, sendo que a antropologia estuda o ser humano e a sua evolução, considero interessante ponderarmos a possibilidade de, no futuro, a antropologia abranger a inteligência artificial na sua área de estudo. Porque, se afirmarmos que a inteligência artificial possui identidade pessoal, então torna-se difícil responder à questão: «o que é que distingue um ser humano de um ser artificial inteligente?». 

O Problema Da Identidade Pessoal:

Primeiramente, antes de analisarmos o problema da identidade pessoal, teremos de afirmar o que considerarmos ser uma pessoa. Entre os filósofos que escreveram sobre este tema, temos o filósofo inglês John Locke, que considera que podemos entender como pessoa um ser com a capacidade de pensar e com consciência de si, que de seguida possui outras características baseadas nas suas capacidades mentais que o distinguem de outros seres, como por exemplo: a característica de ser racional, o que permite a possibilidade de considerarmos robôs e androides como pessoas, apesar destes não serem humanos.

O problema da identidade pessoal baseia-se em perceber quais são as condições necessárias para afirmarmos que uma pessoa humana ou não humana persista ao longo do tempo. Como podemos então afirmar que uma pessoa continua a ser a mesma que era num momento anterior ou que será a mesma num momento posterior?

Imaginemos uma pessoa chamada Sofia que tem trinta anos. Podemos afirmar que atualmente a Sofia é qualitativamente diferente da que era quando era criança, como também podemos afirmar que com o curso do tempo a Sofia no futuro, durante a sua velhice, será qualitativamente diferente da pessoa que é atualmente. O que nos levaria a supor que talvez existam três versões da Sofia. O que não ocorre, porque observamos que a Sofia continua a ser numericamente idêntica ao longo do tempo, porque a identidade não é transitiva – uma pessoa não pode passar a ser três. Por isso só temos uma Sofia que ao longo do tempo muda qualitativamente, mas que continua a ser a mesma, numericamente falando. 

“De onde se conclui que uma coisa não pode ter dois princípios de existência, nem duas coisas o mesmo princípio, visto ser impossível duas coisas do mesmo tipo estarem ou existirem no mesmo momento, precisamente no mesmo lugar, ou uma mesma coisa existir em espaços diferentes.”

Seguidamente irei mostrar as quatro perspetivas principais à resposta do problema da identidade pessoal. 

Perspetiva Animalista:

Podemos considerar o animalismo a perspetiva menos defendida acerca da identidade pessoal, sendo que entre os seus defensores destaca-se Eric Olson. Os animalistas defendem que a identidade pessoal é definida pelo organismo pertencente a uma determinada pessoa humana, sendo que segundo essa definição cada pessoa humana corresponde a um certo animal humano. O que pode ser exemplificado através do argumento do animal pensante de Olson:

“Parece evidente que há um animal humano intimamente relacionado comigo. É aquele que está onde eu estou, para o qual apontam quando apontam para mim, que está sentado na minha cadeira. Parece igualmente evidente que os animais humanos podem pensar. Podem agir. Podem estar conscientes de si mesmos e do mundo – pelo menos os que têm um sistema nervoso maduro em boas condições. Por isso, há um animal humano que pensa e age, sentado onde estou agora. Mas eu penso e ajo. Eu sou o ser pensante sentado na minha cadeira.”

  O problema com a perspetiva animalista é que esta acarreta grandes implicações. Por exemplo: se defendermos que começamos a existir quando o nosso corpo começa a existir, teremos de afirmar que já possuímos identidade pessoal desde que somos um bebé, ou antes disso, um feto ou um zigoto – algo que poderia ser reduzido ao absurdo onde teríamos de afirmar que já fomos um espermatozoide ou um óvulo. O filósofo McMahan refuta a perspetiva animalista através do exemplo dos gémeos siameses, especificamente em caso de dicefalia, em que existe um corpo e duas cabeças. Se fôssemos defensores do animalismo teríamos de afirmar que estes gémeos siameses são uma única pessoa. 

Perspetiva Da Alma:

A perspetiva da alma, também conhecida como perspetiva dualista ou cartesiana por ter a sua inspiração em René Descartes, defende que a identidade pessoal não advém do organismo ou do cérebro, mas sim da alma, que é concebida como sendo uma substância imaterial. Sendo esta uma perspetiva dualista, esta concebe que cada pessoa humana é composta por um organismo humano (corpo) e uma alma.

 A alma e o corpo interagem causalmente, mas a alma não depende do corpo para continuar a existir ou desempenhar a sua função. O sujeito da consciência é a alma, e esta é aquilo que pensa e sente. Assim concluímos que o que persiste enquanto pessoa, segundo um defensor desta perspetiva, é a alma. 

A perspetiva da alma é tão difícil de afirmar como de refutar – por a alma não ser material e localizável, apenas poderemos fazer suposições sobre a mesma. Não conseguimos afirmar em que momento a alma se cria, nem em que momento se destrói. O que torna esta perspetiva irrefutável, mas também de fraca aplicação. 

Perspetiva Lockeana: 

Na perspetiva de John Locke a condição necessária para a existência de identidade pessoal é de que uma pessoa humana continue a ser a mesma ao longo do tempo se possuir consciência de si e se se recordar das suas experiências passadas. Ou seja, para Locke o garante da identidade pessoal é a memória. 

“ Portanto, o que quer que possua a consciência de acções presentes e passadas é a mesma pessoa, à qual ambas pertencem. Tivesse eu a mesma consciência de ter visto a Arca e o dilúvio de Noé, como tenho de que vi uma inundação do Tamisa no Inverno passado, ou como tenho ao escrever neste momento, não poderia ter quaisquer dúvidas que eu, que agora escrevo isto e que vi a inundação do Tamisa no Inverno passado e que presenciei o dilúvio no cataclismo global, seria o mesmo eu – coloque-se esse eu na substância em que se desejar-, tal como eu que agora escrevo isto sou o mesmo eu próprio neste momento enquanto escrevo (quer eu seja todo constituído por uma só substância, material ou imaterial, quer não) tal como o era ontem.” 

A perspetiva lockeana foi, anos mais tarde, aperfeiçoada por alguns filósofos, entre estes Derek Parfit. Através da introdução do conceito de continuidade psicológica, este afirma que uma pessoa humana está conectada ao seu eu passado, dependendo das conexões psicológicas diretas que existem entre ambos, sendo necessária uma continuidade psicológica forte. Assim assumimos que a pessoa humana é a mesma ao longo do tempo através da continuidade psicológica que mantém com o seu eu do passado. 

O problema da perspetiva lockeana é que, esta teoria, ao depender da memória e de uma conectividade psicológica forte, leva-nos a defender que, em casos de pessoas com Síndrome de Alzheimer ou demência, deixando estas pessoas humanas de ter acesso as suas memórias, as suas conexões psicológicas com a pessoa que eram, iriam assim também desaparecer ou tornar-se ténues. Ora isto, para um defensor da teoria de Locke ou Parfit, significaria que essa pessoa deixaria de existir, o que me parece extremamente difícil de aceitar. 

Perspetiva Da Mente Incorporada:

A perspetiva da mente incorporada é defendida pelo filósofo McMahan. Esta perspetiva defende que é a mente que garante a identidade pessoal, ou, por outras palavras, que cada pessoa humana é o seu cérebro, que está contido num organismo. Segundo esta perspetiva, para existir identidade pessoal é necessário existir um organismo ao qual um respetivo cérebro pertence e que exista continuidade funcional mínima desse cérebro. 

Segundo a perspetiva de McMahan começamos a existir quando o nosso cérebro desenvolve a capacidade de gerar consciência e deixamos de existir quando o nosso cérebro perde a capacidade de gerar consciência. O maior problema que a perspetiva da mente incorporada enfrenta é de que podemos assumir que o nosso organismo pode continuar a existir, mesmo depois de nós termos deixado de existir, como por exemplo no caso de um estado vegetativo, em que o organismo se mantém, mas a pessoa não tem consciência de si. Mas apesar de apresentar este problema, esta perspetiva continua a ser a que têm menos implicações graves.

Na minha perspetiva, a teoria proposta por McMahan é a melhor resposta ao problema da identidade pessoal, por isso seguidamente irei aplicá-la à inteligência artificial, para perceber se é possível afirmarmos que a inteligência artificial possui identidade pessoal e se esse for o caso, quais serão as suas possíveis implicações. 

Inteligência Artificial e Identidade Pessoal:

Primeiramente, considero importante clarificar o que por definição consideramos inteligência artificial. Podemos considerar inteligência artificial como sendo organismos artificiais construídos por pessoas humanas, que em alguns casos podem assemelhar-se a seres humanos e que são considerados como inteligentes graças a mecanismos de software. Entendemos em sentido lato os mecanismos de software como as indicações que devem ser realizadas por um organismo artificial que, através da manipulação, redireccionamento ou modificação dos dados que possui, irá realizar determinada ação ou ações para o qual foi concebido. Em suma, podemos entender os mecanismos de software como a mente de um organismo artificial e o seu hardware como a sua parte física. 

Foi na conferência de um workshop em Darmouth, no verão de 1956 que o termo inteligência artificial surgiu pela primeira vez, embora a questão de as máquinas conseguirem produzir pensamento já tinha sido discutida por Alan Turing no seu artigo de 1950 “Computing Machinery and Intelligence”, onde Turing cria o que ficará conhecido como o teste de Turing, que ainda hoje é discutido no estudo da inteligência artificial. 

A inteligência artificial pode ser forte quando é capaz de resolver e raciocinar problemas e fraca quando não o é capaz de fazer, por isso neste ensaio só considerarei a inteligência artificial forte por ser a que é mais provável de possuir identidade pessoal através da perspetiva da mente incorporada. 

Segundo John Searle, a mente é para o cérebro como a programação é para o hardware do computador. Deste modo ao assumirmos que o cérebro pode ser equiparado ao hardware de um computador, somos levados a crer que um sistema tecnológico com a programação certa teria uma mente no mesmo sentido que uma pessoa humana tem uma mente. Ou seja, como a inteligência artificial possui uma mente que é incorporada num organismo mecânico podemos afirmar que cumpre uma das características necessárias para possuir identidade pessoal. Mas esta característica não é suficiente para afirmarmos que existe identidade pessoal, pois a perspetiva da mente incorporada também requere que a pessoa possua consciência de si. 

Searle argumenta que podemos afirmar que a inteligência artificial é capaz de possuir uma mente, e de construir pensamentos. Mas estes pensamentos estão dependentes da programação feita por uma pessoa humana, por isso o limite do pensamento da inteligência artificial são os símbolos inseridos na mesma. 

Encontramos casos de robôs que foram capazes de ganhar a humanos em partidas de xadrez, mas não podemos afirmar que esses robôs realmente sabiam jogar xadrez, só sabiam os códigos de como o fazer. Para exemplificar melhor este ponto irei dar o argumento dado por Searle do quarto chinês. 

Neste argumento é nos dado a imaginar uma pessoa humana num quarto. No lado de fora do quarto encontram-se pessoas humanas fluentes em chinês que estão a enviar cartas com perguntas escritas em chinês as quais a pessoa que está dentro do quarto terá de responder, mas esta pessoa nada percebe de chinês. Porém dentro do mesmo quarto está um livro com regras de que caracteres a pessoa deve utilizar para responder corretamente às perguntas feitas pelas pessoas fluentes em chinês que estão fora do quarto. 

Segundo Searle este exemplo demonstra que tipo de conhecimento a inteligência artificial é capaz de produzir, pois tal como a pessoa dentro da sala não sabe chinês apesar de ter respondido corretamente às perguntas feitas, a inteligência artificial também não sabe realmente aquilo que está programada para fazer, pois apesar de ser capaz de compreender sintaxe, não é capaz de compreender semântica. 

“O meu ponto é que se estamos a falar sobre ter estados mentais, ter uma mente, todas estas simulações são simplesmente irrelevantes. Não importa quão boa a tecnologia é, ou quão rápidos são os cálculos feitos pelo computador. Se é mesmo um computador, as suas operações têm de ser definidas sintaticamente, enquanto que consciência, pensamentos, sentimentos, emoções, e tudo o resto que envolve mais do que sintaxe. Essas características, por definição, o computador é incapaz de duplicar por mais poderosa que possa ser a sua capacidade de simulação.” 

Em suma, podemos observar que, através do argumento de Searle, embora possamos considerar que a inteligência artificial possui uma mente, essa mesma mente só é capaz de pensar através da manipulação física dos símbolos que lhe são dados. A inteligência artificial não é, portanto, capaz de produzir o seu próprio pensamento – só de o simular. Por isso concluímos que, como a inteligência artificial não é capaz de produzir o seu próprio conhecimento, também não é capaz de possuir consciência de si, daí que a perspetiva da mente incorporada não se aplique a este caso. 

Conclusão:

Em suma, com este ensaio espero ter conseguido demonstrar que, através da perspetiva da mente incorporada, não é possível afirmar – pelo menos até a data – que a inteligência artificial possua identidade pessoal. Porque apesar de possuir uma mente não possui consciência de si. Por outro lado, como podemos considerar estes seres como pessoas, existe a possibilidade da criação de uma nova perspetiva de identidade pessoal que esteja adaptada as suas características. 

A problemática da identidade pessoal nos organismos com inteligência artificial é abordada desde o século XXI em inúmeras series e filmes, sendo o mais conhecido o filme “AI” de Steven Spielberg, de 2001. Esta produção cultural tem levantado várias questões antropológicas e éticas importantes, tais como: será que estes seres poderão um dia ser indistinguíveis dos seres humanos? – e se sim, será que a antropologia começará a incluir estes seres na sua área de estudo? Considero neste momento, difícil de responder a estas questões, mas talvez no futuro encontremos a resposta. 


Notas:

1 John Locke (2016), Ensaio Sobre O Entendimento Humano, p. 434

2 Pedro Galvão (2013), Identidade Pessoal, p.12

3 John Locke (2016), Ensaio Sobre O Entendimento Humano, p.451

4 In: Bringsjord, S. a. (12 de July de 2018). Artificial Intelligence. Obtido de Stanford Encyclopedia of Philosophy: https://plato.stanford.edu/entries/artificial-intelligence/

5 In Searle, J. (2003). Minds, Brains and Science. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.

6 Ibidem, p. 35, tradução da autora.


Bibliografia:

Bringsjord, S. a. (12 de July de 2018). Artificial Intelligence. Obtido de Stanford Encyclopedia of Philosophy: https://plato.stanford.edu/entries/artificial-intelligence/

Galvão, P. (2013). Compêndio Em Linha De Problemas De Filosofia Analítica. Identidade Pessoal, p. 19.

Locke, J. (2016). Ensaio Sobre O Entendimento Humano . Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian.(Link Wook)

Olson, E. T. (2008). An Argument For Animalism. Em Personal Identity (2º ed.). Blackwell .

Parfit, D. (January de 1971). Personal Identity. Philosophical Review , 80(1), 3-37.

Searle, J. (2003). Minds, Brains and Science. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.