Poderá ser o corpo humano uma forma de arte?

Poderá ser o corpo humano uma forma de arte?
Desde o período da antiguidade clássica que temos obras de arte que expõem figurativamente o corpo humano; peças lindíssimas, esculturas, retratos e textos que o esculpiam, retratavam e descreviam. No entanto, as percepções em torno da beleza e dos tipos de corpo variam essencialmente de acordo com a cultura específica onde ocorrem e demonstram ser conceitos em constante mudança.
Durante séculos, na arte e na cultura ocidental, aquilo que entendemos como beleza era uma característica que se destacava mais na nobreza, nas classes mais altas. A beleza, quer na definição clássica quer na nossa definição actual, não era um assunto sério para o povo em geral. Foi apenas após a revolução industrial que a beleza se transformou num assunto menos restrito, menos elitista, e mais inclusivo a outras classes — em especial, a classe média.
O corpo é essencial para compreendermos as inúmeras facetas fisiológicas da identidade humana, como a etnia, o género, a raça e a sexualidade. Em todas as sociedades desenvolvidas, os indivíduos alteram constantemente a disposição e a cor dos seus cabelos, dos seus corpos e do seu vestuário para integrarem determinadas convenções sociais ou, pelo contrário, revoltarem-se contra elas. A exposição do corpo é, em suma, uma maneira de alguém expressar mensagens para outras pessoas à sua volta. No campo específico da arte, milhares de autores exploram o corpo por meio de diferentes métodos e representações, chegando em alguns casos a usarem os seus próprios corpos ao longo do processo criativo, como é o caso da arte performativa.
A arte insere-se claramente dentro da cultura, e quer a existência de obras de arte quer a maneira como circulam é a maior prova de que a arte é, na verdade, um fenômeno cultural. Um outro aspecto mais caricato sobre o ser humano, e a sua relação com a criação de arte, é de que existe prazer em sermos apreciados, em sermos vistos como arte viva. Podemos, assim, encarar o corpo como parte viva da arte. O papel da arte na criação dos padrões de beleza deve-se à existência de obras, clássicas ou modernas, como em The Devil Wears Prada (David Frankel, 2006), que ajudou a criar nas mulheres uma clara obsessão pelas roupas de alta costura, marcas como Balenciaga , Chanel e Dior. Desde que existe o conceito de moda que o mesmo está profundamente ligado à beleza e, especialmente, a determinados padrões de beleza. A actividade das marcas de moda de alta costura comprova isso: as peças, as manequins, os designs, são todos feitos com o maior detalhe e atenção à sua adequação a um padrão de beleza que se torna impossível não considerar a moda, tal como existe contemporaneamente, como uma forma de arte.
Um outro tipo de obras provoca, nas mulheres em especial, uma sensação angustiante: os filmes que envolvem pessoas fictícias, como Cinderella e Aurora, ambas personagens de desenhos animados, mulheres física e animicamente lindas, mas que necessitam constantemente de um homem para as salvar. porque a cultura em geral, e desde há milhares de anos, adota uma perspetiva masculina e que traduzem-se numa romantização das afazeres domésticos e da próspera vida em família, permite expressar criatividade e paixão autênticas.
Parece existir uma censura frequente de imperfeições particulares ou de arquétipos gerais como seres humanos gordos, negros, velhos ou transsexuais; de certo modo, o “lápis azul” da censura, nas nossas gerações, é o uso do photoshop por artistas de retoque de imagem que, em filmes, séries, revistas, de todos os formatos, conseguem censurar e retocar as falhas no determinado padrão de beleza que todos nós assumimos. Por isso é indispensável o surgimento de novas formas de cultura, criar novos livros, novas obras, novos filmes que nos permitam a todos, sem a opressão dos padrões de beleza, uma aproximação a verdade.
Os padrões de beleza presentes em obras de arte

Neste ensaio, irei usar a ideia romântica da arte como expressão de emoções. Tal teoria foi profundamente divulgada e partilhada desde então, sendo que ainda subsistem, em pleno século XXI, muitos dos seus princípios. Um dos mais reconhecidos difusores desta teoria da arte enquanto expressão foi Lev Tolstói, que em O que é a arte elaborou a tese de considerar a arte como expressão de informação subjectiva, o que a torna uma forma de comunicação. Quando um artista expressa a sua arte, ele comunica connosco; no entanto, comunicação e arte não são sinônimos, já que nem toda a comunicação é arte. Podemos assim diferenciar o objecto artístico, no paradigma pós-romântico, como um objeto que se preocupa principalmente com a expressão ou a comunicação de emoção. De acordo com tais teorias expressionistas, na arte um estado emocional interno é exteriorizado, trazido ao de cima e partilhado com os espectadores; o que os artistas fazem, simplesmente, é transferir e partilhar as suas emoções com o público.
Se o que as obras transferem são emoções, quando nos deparamos com obras de arte, devemos sentir algo, quer seja tristeza, raiva, ou o que quer que seja. Por seu lado, o artista, enquanto desenha, escreve ou pinta, está a expressar o seu sentimento. Assim, o aspecto mais importante desta teoria é o requerimento de que o artista e o espectador experienciem algum estado emocional partilhado: através de ações, cores, formas, palavras, etc, o artista expressa esse estado, e estes métodos de expressão estimulam o mesmo tipo de emoção à audiência.
Todavia, várias críticas podem ser feitas a esta interpretação acerca da arte; irei esclarecer três delas. Em primeiro lugar, se o artista fizer algo que é totalmente incompreensível para todos os outros, é improvável que nós aceitemos o objeto como uma obra de arte, isto pois não conseguiremos retirar da obra nenhum estado emocional. Em segundo lugar, a arte aparenta impor, no mínimo, uma capacidade de acessibilidade pública às obras de arte; se algo criado por um artista for absolutamente ininteligível como objecto artístico para qualquer outra pessoa, por que aceitaríamos a ideia desse objeto ser arte? Além disso, se uma obra literária for escrita numa linguagem incompreensível, poderemos questionar-nos se essa obra seria acessível até para o próprio escritor — como por exemplo, se durante a sua velhice, ele sofrer de alguma doença, como as demências, que não o permitam reconhecer aquela obra.
Contudo, para solucionar esta questão recorrerei preciso de analisar e compreender o livro Philosophy of Art, de Noel Carroll que demonstra e explica diversas teorias de arte e as suas respectivas falhas. Uma boa forma de entendermos o que será uma obra de arte é realizar o seguinte exercício mental: se catalogamos algo que não tenha haver com arte, acabamos por observar o objeto de uma forma diferente do que se observássemos como uma obra de arte. Noel Carroll dá o exemplo das cirurgias plásticas. Imaginemos que temos o conceito de arte por oposição a não-arte; é a partir de uma determinada definição de arte é que poderemos explicitar o que é arte e quais objectos serão obras de arte. (Carroll, 1999).
Aqui a interpretação depende da classificarmos ou não o objeto em causa como obra de arte – se lhe aplicamos corretamente o conceito de arte. Como vemos, clarificar o nosso conceito de arte não é uma mera questão de enfadonha minudência académica. Está no centro das nossas práticas artísticas. Está no centro das nossas práticas artísticas, pois classificar candidatos como obras de arte leva-nos a mobilizar um conjunto de reações à arte que constituem a própria natureza das nossas atividades como espectadores, ouvintes e leitores. Para jogar o jogo, precisamos de dominar o conceito de arte. (Noël Carroll. 6-7)
O objeto ansioso, termo cunhado por Noel Carroll, é o objeto sobre o qual não temos a certeza se será obra de arte ou não. Peguemos no caso da cirurgia plástica como uma obra de arte, apresentado pelo mesmo autor.
Vejamos o caso das cirurgias. No dia-a-dia, não as vemos como alternativas a uma ida à ópera. Mas quando elas fazem parte de uma performance, como no trabalho Image/New Image(s) or the Reincarnation of Saint-Orlan, consideramos a cirurgia plástica de Orlan como uma obra de arte e vemo-la sob uma perspetiva diferente. Reparamos na interessante organização cromática dos uniformes dos cirurgiões e perguntamos qual é o significado da decisão de Orlan de se submeter à faca – que diz ela sobre a sociedade, sobre as mulheres, sobre a identidade pessoal, sobre a história da arte e os ideais de beleza feminina que nela encontramos? Isto é, a nossa recção é completamente diferente da que teríamos se se tratasse de uma comum operação à vesícula. (Noël Carroll. 6-7).
Podemos atribuir uma dimensão artística ao que desejarmos, como é o caso da artista fotográfica Cindy Sherman com os seus auto-retratos, onde podemos deparar-nos com uma espécie de narcisismo patológico, frequentemente presente na nossa sociedade. Nestes auto-retratos, vemos uma tentativa de auto-representação e de recriar a sua própria persona.
O conceito de beleza com que lidamos não corresponde a um universal imutável, embora esteja, na maior parte das sociedades civilizadas, profundamente associado à figura da mulher. No nosso mundo ocidental, a figura física feminina mais típica é frequentemente encarada como um ideal platônico, o que não acontece tão explicitamente com o corpo masculino. A beleza não tem também, de forma necessária, uma dimensão moral, temporal, inata e/ou genética; não resulta de forma directa da evolução das espécies, nem descende como consequência absolutamente necessária de uma seleção sexual. Esta questão pode estar, hipoteticamente, mais ligada ao tipo de sociedade em que vivemos e às relações de poder que nela encontramos; logo, a ideia da beleza como associada a um determinado corpo de mulher pode consistir num conjunto de crenças que pretende manter intacto o tipo de sociedade que habitamos, uma sociedade dominada maioritariamente pelo gênero masculino, uma sociedade patriarcal. Entenda-se isto como um sistema social em que os indivíduos do género masculino possuem significativas parcelas de poder em áreas fundamentais da vida social, como na liderança familiar e na liderança política; a sua predominância em funções sociais de autoridade moral parece evidente, e privilégio que daí advém também. Apesar dos avanços dos direitos das mulheres desde finais do séc. XIX, não deixamos de constatar que o domínio dos homens sobre a sociedade é ainda significativo.
No Ocidente, temos registos desde a antiguidade clássica que mostram como a mulher sempre foi exemplo privilegiado para demonstrar o que era belo ou não, como neste diálogo de Platão:
Hípias: Vejamos, Sócrates, o que ele pretende com essa pergunta é apenas saber o que é belo? Sócrates: Não exatamente, penso eu, mas sim o que é o belo, Hípias. […]
Hípias: Belo, Sócrates, fica sabendo – a dizer a verdade toda – belo é uma bela rapariga. […]
(Platão, 287d-289d)
Não existe, aparentemente, nenhuma justificação óbvia de natureza biológica para a existência do mito da beleza feminina, ou melhor, para a associação tão vincada entre o conceito de beleza e o conceito do feminino. Poderemos porventura encontrar mais facilmente uma justificação política, se considerarmos que estes padrões de beleza subsistem devido à necessidade da cultura, da economia e das relações de poder da sociedade masculina se contraporem contra as mulheres. Tal fenómeno leva a que os indivíduos se distanciem de relações equilibradas e positivas consigo próprios e com os outros, quer na esfera emocional, política ou social das relações. Tende-se, assim, à humilhação de todos os que se rebelem contra esse estado de coisas.
A problemática dos padrões de beleza

Existem milhares de obstáculos reais e materiais, mais ou menos rígidos e cruéis, que são vistos como imagens de beleza. Neste texto abordei mais a experiência feminina em relação à problemática da beleza e dos seus padrões, na medida em que identifico-me mais com as situações que irei considerar e por existir, atualmente, cada vez mais conteúdo e informação acerca do sofrimento das mulheres perante estes problemas. Este último motivo tem uma justificação clara e histórica para a sua existência, Até há pouco tempo, esta problemática não era encarada como um assunto relevante. Com a terceira onda do feminismo, iniciada na década de noventa do século passado, foi possível amplificar este género de questões. Esta vaga foi muito mais focada na dimensão pessoal e interior do ser humano, depois do esforço das duas primeiras, que reivindicaram direitos básicos e essenciais como o direito ao voto e à participação cívica.
A cultura, educação, economia, religião e todas as áreas de atividade inerentes ao ser humano tiveram de acostumar-se à crescente presença feminina. Mas o mito da beleza reinventou-se com novas técnicas de dominância, com novos elementos tão repressores quanto os anteriores, e alguns dos novos manipuladores destes padrões de beleza desenvolveram-se: o dinheiro gasto em ansiedades, provocadas pelas indústrias de cirurgias plásticas, cosmética, dietas e pornografia, fortalece os efeitos do mito da beleza. As mulheres, por terem tão poucos exemplos na vida real, procuram nas revistas, nas televisões, nas redes sociais, encaram como modelos e ideais. No caso das revistas femininas como a vogue ou harper bazaar, provocam um misto de sentimentos, como a ansiedade e o prazer, ou sensações, como a expectativa e o pavor, desta forma podemos compreender de que maneira a moda e a propaganda, andam de mãos dadas a conspirar contra a depreciação do nosso amor-próprio, é devido a isso que os atuais padrões de beleza sobrevivem.
Contudo, a problemática dos padrões de beleza toca ambos os géneros, e as opressões daí resultantes não são realizadas apenas sobre as mulheres: o corpo, em especial, e a mente masculina, também sofrem pela existência dos padrões de beleza e da própria definição de beleza, que encaminhou por sua vez a ocorrência destes padrões. Existem diversas formas de controlar e oprimir os indivíduos: através da arte, que não se trata apenas de quadros ou romances, assim como através de implicações diretas e indiretas sobre os corpos, como a comida, algo que corrobora esta implicação é aumento descomunal de número de casos de distúrbios alimentares, de adesões aos ginásios e outros tipos de academia de bem-estar ou fitness; o aumento de restaurantes saudáveis, entre outros; e, além disso, através de anúncios televisivos, de constantes informações, pelos media, ou seja, por tudo o que nos rodeia.
A opressão derivada desses padrões de beleza incide-se, como já disse, particularmente sobre as mulheres: estas temem envelhecer, engordar ou descuidar-se, e vivem em constante estado de vigia perante as outras, chegando a considerar as mesmas como inimigas, pois é algo incutido desde a infância nas sociedades civis.
Na fase mais tardia da época moderna, contemporaneamente, o que ocorre na nossa sociedade parece ser também uma infantilização do corpo feminino. Um claro exemplo disso é a aprovação geral das comunidades ocidentais em relação à depilação; ou, num caso mais surpreendente e mais complexo, a idolatração de figuras derivadas de obras como Lolita de Vladimir Nabokov, que aborda uma profunda sexualização do corpo infantil feminino.
Outro fator associado é um aparente conflito entre beleza e inteligência; parece que é permitido que as mulheres tenham uma mente bela ou um corpo belo, mas não os dois, o que é curioso. Antes de demonstrar como isto se processa, necessitamos de perceber de que se trata o mito da beleza — uma expressão cunhada por Naomi Wolf — que decidi unificar com a ideia de padrões de beleza, visto que um depende do outro e vice-versa. O mito da beleza consiste numa estratégia política utilizada contra a evolução da mulher; à medida que as mulheres alcançam cada vez mais estatutos até então proibidos, novos direitos, poderes e oportunidades, a parte patriarcal da sociedade necessita de novas armas para controlar e dominar a presença feminina no mundo. Assim, a ideologia da beleza anterior — que inclui rituais como a maternidade e o casamento, assim como os mitos de que a mulher necessita de ser casta, doméstica e passiva — já não possui efeito no controlo dos indivíduos, provavelmente porque as vagas do feminismo, desde o final do tem sido capaz de afastar as mulheres destes mitos e convenções sociais. Essa ideologia parece ter-se transformado na obrigação da beleza exterior: nos dias que correm, ser-se belo é uma obrigação, em especial para as mulheres, que diariamente são pressionadas nesse sentido por todos os métodos derivados dos padrões de beleza.
Como referi nos parágrafos anteriores, tais padrões de beleza forçam os indivíduos a transformarem-se em estereótipos, deixando de ser particulares únicos e aproximando-se de universais inatingíveis. Através de métodos como objetificação e sexualização do corpo feminino, cria nas mulheres uma falsa ideia, a ideia de que a beleza ideal é alcançável e evita a realidade acerca dos corpos. A ideologia da beleza, quer que acreditemos que se atingirmos o nível máximo de beleza, seremos, por fim, felizes. Todavia, isto não passa de uma miragem, uma alucinação implementada na nossa consciência de que seremos capazes de quebrar finalmente as correntes da nossa cultura patriarcal, por isso creio que não existe nenhuma beleza última e espero que a mesma nunca seja criada.