Plena liberdade invernal, Luís M. Silva

  1. Primavera

Saímos dos cuidados paliativos. Ela tinha-me pedido para que a levasse para o parque próximo do hospital. Nele, brincara muito na sua infância. Por ele, nos últimos tempos passámos a morar na casa em que vivia quando era menina. Por ele, mudámos de hospital, para que ela pudesse abandonar o corpo num sítio onde fora tão feliz. A desesperança já a tinha consumido.

Lentamente descemos as escadas e parámos em frente do abundante verde. O sol brilhava sobre o prédio do hospital atrás de nós; brilhava sobre as árvores, flores e relva que víamos. O vento soprava levemente. Tudo se movia. Víamos a branca luz do sol, no meio do céu azul, sobre as laranjeiras, as verdes folhas, os troncos castanhos e as flores policromáticas. No céu, aves trissavam e deslocavam-se em direção ao Sul. Ela mandou-me sentar num banco, ao lado de uma estátua, e esperar pacientemente. Sabia que eu não concordava com a sua decisão. Para mim havia esperança; mas obedeci. Torturada pelas dores que sentia, caminhou em direção ao seu antigo baloiço. No andar, eu via nitidamente tristeza, desânimo, descontentamento e sofrimento. A sua alma, ou seu espírito, estava preso ao corpo e tudo o que ela mais queria era libertar-se. Mas não era a hora de partir.

  1. Verão

Sentou-se no baloiço. Nesse momento, o vento parou, a temperatura subiu, os rapazes saíram do parque e foram aproveitar um pouco da praia.

Ela não tinha mais forças, mas também não queria que eu a ajudasse. Segurou as correntes do baloiço e com os pés começou a empurrar o chão, esticando as pernas o máximo que conseguia. Ganhou balanço. Apesar do suave baloiçar, o sol quente aquecia o baloiço metálico, que por sua vez lhe aquecia o cansado corpo. Decidiu então tirar o gorro, depois a gola e as luvas, e por fim o casaco. Sentiu-se mais confortável. Corri. Aproximei-me e peguei nas peças de roupa. Ela olhou para mim e com os olhos pediu-me veementemente que simplesmente aceitasse. Baixei a cabeça como sinal de alguma aceitação, mas ela sabia que eu ainda não tinha perdido a esperança. O seu rosto mudou. Nele agora eu via algum conforto, e até algum contentamento, em meio à aflição. Talvez fosse mesmo a hora de deixá-la ir.

  1. Outono

O vento retornou. Ela fechou os olhos e aproveitou a brisa. As árvores, as flores, e a relva começaram a dançar. Iniciou-se uma chuva de folhas que, secas, uma a uma, se desprendiam dos galhos e bailavam no ar até se arrastarem pelo chão. O som do vento fundia-se com o distante som das ondas do mar. Médicos, enfermeiros, auxiliares, pacientes, familiares e amigos regressaram ao hospital.

No parque ainda estávamos acompanhados pelos pais de algumas meninas. O baloiçar deixou de ser suave. O vento impulsionara-a. Os seus cabelos esvoaçavam. Os húmidos pés arrepiavam-lhe o corpo. De olhos fechados, como exímia profissional do baloiço, retirou os totós que prendiam o cabelo, descalçou as botas, tirou as pulseiras, os brincos, ¡as joias! Estava sem ornamentos. Mais uma vez corri na sua direção. Pedi-lhe que ficasse, mas desta vez nem se limitou a olhar-me. Percebi que queria desfrutar do momento. O seu corpo estava cada vez mais leve. Covinhas formaram-se na sua cara. ¿Estaria feliz? ¿Era o momento de a deixar ir ou ainda havia esperança?

  1. Inverno

A temperatura diminuiu. Apareceram nuvens carregadas que tornaram o dia mais escuro e cinzento. As árvores tremiam por causa da sua súbita nudez. Gotas de chuva vieram ao nosso encontro. Rapidamente essas gotas se transformaram em grossos pingos. Os pais levaram as meninas para casa. Ficámos sós.

Molhámo-nos. Do chão subia o cheiro a terra lamacenta. Saboreou a chuva. Imitei-lhe. Era insípida. Ela continuava a baloiçar. O som da chuva abafava todos os outros sons – o som do sol, o som do mar, o som das aves, o som da vegetação, o som dos humanos, o som dos cérebros pensantes, mas não o som do coração. Uma lágrima escorreu-lhe pela face. De sorriso ponta a ponta, baloiçava mais forte do que nunca, como se fosse a última vez. Há muito que já não a via mais que animada. Há muito que já não a via feliz. Gritei-lhe: ¡Estou pronto! Perdi a esperança…

De repente, não via nada, não ouvia nada, não sentia nada. Bloqueei. A alma, ou espírito, tinha-se desprendido do seu corpo doente. Tal como queria, estava completamente livre de tudo. ¿Será esse o preço a pagar pela liberdade? Acabou o seu sofrimento. E eu fui o carrasco que a levou ao matadouro. E eu fui o insensível que assistiu a tudo em primeira mão. E eu fui o infeliz que perdeu a mãe !Mas os homens não choram! Não chorei. Foi a chuva que me molhou o rosto. Foi a estátua que me abraçou.