Passáros lá fora, Adriana Afonso

Texto de Adriana Afonso (@cenasecantigas). Revisão de João N.S. Almeida. Imagens: Adriana Afonso e fotografia de Bruno Eugénio. 

Não se tratava de uma tarde muito diferente das restantes. No final de contas, quantas tardes não eram iguais a este ponto? Todas terminavam com um copo de cerveja na mão de António e uma caneca de chá de camomila na de Teresa, em substituição do seu parceiro de longa data, vinho branco. Ambos se sentavam de frente para a grande janela da sala, a tal famosa janela que percorria toda a altura do teto até ao chão, enchendo a sala de luz. Ainda que houvesse quem afirmasse que a fonte de luz era Teresa – sendo esse alguém o António – depois de quatro cervejas num dia onde houvesse futebol e a sua equipa ganhasse. 

-Achas que vamos ficar aqui por muito mais tempo? – Perguntava António depois de um doce golo da sua cerveja fresca. 

-Pelo menos temos azeitonas. – Dizia Teresa ao juntar-se a ele na sua poltrona predileta, com o chá numa mão e as azeitonas na outra. – E cerveja que chegue. – Dizia ela, e o seu tom era de brincadeira. Teresa era uma pessoa que sempre levava a vida com um sorriso e essa era a razão principal pela qual António se tinha apaixonado por ela há 30 anos. Apesar de que nessa altura nem sempre era preciso que existisse amor para que houvesse um casamento, mas não tinha sido o caso deles. António não tinha tido qualquer dúvida que Teresa iria ter sempre tudo em casa e que iria ser uma mulher que continuaria a amá-lo quando os filhos saíssem de casa e ambos ficassem sozinhos de novo – e assim tinha acontecido, como ele tinha previsto. Mas o sorriso tinha sido a principal razão pela qual há 30 anos, num bailarico da terra, ele lhe tenha cortejado com um copo de vinho branco fresco enquanto da sua cerveja bebia. 

-Sabes… Nunca pensei que passasse a minha reforma a ver pássaros da janela. – Comentava ele. 

-Porquê? Pensaste que os verias de um grande descampado, rodeado de prédios? Ou tinhas mesmo em mente a ideia de largar tudo e ir para o campo? Porque tu não saías muito de casa antes, Tó. – Ela sorria de novo, ainda que desta vez o sorriso viesse acompanhado de um suspiro. – Mas realmente é engraçado que nós somos os que ficam numa gaiola 

enquanto os pássaros lá foram andam livres. Confesso que aos 76 anos também não me imaginava a beber chá, e pensei mesmo que viveria uma vida inteira sem gostar de chá e, olha, aqui estamos. 

-Ainda não entendo porque começaste a beber isso. – Dizia ele com uma gargalhada. 

-Até parece que és incapaz de me imaginar sem o vinho na mão. A nossa neta se te ouve irá pensar que fui alcoólica e uma aventureira. 

-Pois… Mas não foste? – Ela sorria e ele ria-se. Ambos aproveitavam o restante do sol de primavera enquanto bebiam das suas bebidas. 

-Até posso ter sido… Mas sabes, um dia, a nossa pequena trouxe-me uma caixa de chá, provavelmente da mãe, e disse-me: “oh vó! Disseram-me na escola que nós temos de beber muito chá! Porque tem muitas vitaminas por isso trouxe-te esta caixa para que bebas muito e vivas ainda mais!” E olha, desde aí bebo chá todos os dias, como sabes. 

-Ela é um doce. – E lá estava, aquele sorriso babado, que só os netos conhecem e só os avós sabem mostrar. Brevemente este se desvanecia para uma agonia com um olhar triste. António não tinha como esconder a falta que a família lhe fazia. – Um raio de sol. 

-O nosso raio de sol. Quando voltarmos a estar com ela, dar-lhe-ei um abraço tão grande e quente como estes chás. E ela vai ficar orgulhosa de mim, provavelmente até escolher-me como a avó favorita. 

-És terrível. Tens sempre de ser a primeira em tudo? 

-Sempre. 

E assim continuavam o seu serão, comum como todos os anteriores desde maio. Teresa com o seu chá na mão e António com a sua cerveja e uma azeitona entre os lábios. 

*** 

Era agora o fim do verão. As portas à rua estavam finalmente abertas. A tarde estava magnífica e o sol entrava por aquela janela formidável da sala. Verificava-se um belo lusco-fusco com o céu pintado em tons de laranja e vermelho. A cidade tinha ruído de novo e os pássaros preparavam-se para migrar. Uma fase tinha acabado. 

António chegava agora a casa. Com alguma ânsia desinfetava as mãos para poder ir para o quarto para poder retirar a roupa que lhe pesava no corpo e a gravata que o sufocava. Que ideia esta de usar preto num dia de verão, mas seria o que Teresa quereria. Tinha estado a tarde toda na missa com apenas umas 4 pessoas, sendo duas delas parte da igreja. Vestia agora algo fresco, com o corpo suspenso em frente da cama. Tinha pensamentos a inundar-lhe a mente e, apesar da casa estar em silêncio, sentia uma confusão imensa. 

Andava agora para a cozinha com os pés pesados. Desejava uma cerveja fresca, mais que tudo. Ao abrir o frigorífico, no entanto, encontrava uma caixa vazia, era a vez de ela ir às compras. Com alguma força de vontade fechava a porta e suspirava como se não expirasse há uns bons anos, preparava-se agora para ir-se sentar, antes que o sol se fosse por completo. Ao sair da cozinha, todavia, notava que estava uma caixa de chá caída no balcão. 

– Claro, chá. – Ria-se. Com alguma atenção, começava a aquecer a chaleira com mais água que seria preciso. Retirava duas canecas da prateleira da esquerda e continuava a sorrir, parecia que era a primeira vez que olhava com olhos de ver para a cozinha. Colocava os sacos transparentes nas canecas e, assim que a água fervia, colocava a mesma nas canecas e assim levava ambas para o sítio habitual de final de tarde. Uma caneca para ele, e uma caneca para a cadeira vazia, que ainda assim, reluzia alguma luz. 

-Fiz-te um chá. Terias de estar aqui para ver isto. Mas não… até nessa corrida tinhas de estar em primeiro. – Ele suspirava com um sorriso para a cadeira púrpura. – A tua neta está bonita. Foi ver-te hoje. Não tive como abraçá-la. – As palavas entupiam-se no fundo da sua garganta. O ar cortava-se dos pulmões e por momentos sentia um oceano de emoções turbulentas a abraçar-lhe. Respirava fundo. Com algumas lágrimas voltava-se a rir. – Acho que nem assim vou conseguir ser o avô favorito, mas prometo-te que beberei chá para lhe dar o teu abraço pelos dois. Forte e seguro. Nunca será tão quente como o teu, mas prometo tentar. 

***