Texto de Hugo Dantas. Revisão de Lauro Reis. Imagem: wikimedia.org.
Veral e Monteiros são duas aldeias perdidas no interior do nosso país. Separa-as a linha, traçada pelo homem, que divide dois concelhos: a Boticas pertence aquela e a Vila Pouca de Aguiar pertence esta. Separa-as ainda o leito, estendido pela natureza, do Tâmega, que cava um fosso entre os de lá e os de cá.
Mas liga-as outra linha, esta traçada pelo homem, feita na perpendicular às outras duas, como para desforrar, como para provar que, se a natureza foi melhor a separar, o homem é melhor a unir. É a ponte de arame de trinta metros construída pelos populares que, desde 1936, fecha o precipício. Não lhe calou, porém, o chamamento ululante. A ponte balança mais do que a de Tacoma Narrows na travessia dos homens com o cabo da enxada ao ombro, de meia dúzia de cabeças de gado, de velhinhas que vão, de velhotes que vêm, com o batuque de três passos, os dos pés e o do cajado. Por ela passam os braços por cansar e os braços já cansados da lavoura, por ela transita a farinha dos moinhos, por ela se chega à missa, se chega desde Veral ao autocarro que parte de Monteiros para Vila Pouca e se encaminham, ora em um sentido, ora em outro, os transeuntes enlutados para os funerais ou as sossegadas romagens às discretas festas de Verão.
No Alto Tâmega, a Iberdrola está a construir uma barragem contra as águas do rio, como poderia saber quem se aproximasse dos editais afixados em cada uma das povoações. Neste troço fluvial, as águas vão ascender até submergirem a ponte de arame. E é assim que uns poucos passos, ora de gente, ora de bestas, se converterão em sessenta quilómetros, e poucos minutos se converterão, entre curvas, encostas, subidas e descidas, em uma hora e meia de viagem sobre as rodas de um automóvel. Enquanto o resto do mundo encurta distâncias e encerra em escassas horas o que às gerações dos antepassados tomava meses e dias, Veral e Monteiros vão em contramão com o futuro, fazem marcha à ré no tempo, recuam até ao século vinte, até 1936, e os seus populares já não serão apenas velhos, mas autênticos antepassados. Nem se pode dizer que Veral e Monteiros, como os seus habitantes, têm pernas cansadas, que não são capazes de acompanhar a marcha inexorável do progresso. Seria melhor dizer que estão a ser violentamente atirados para trás, com o mesmo ímpeto com que as águas do Tâmega aparecerão um dia a afogar a ponte de arame e a inundar as hortas à borda da água da senhora Palmira, que aqui viveu cada um dos seus setenta e seis anos.
Ninguém sabe se a ponte será mudada de sítio ou se será assegurada de outra forma uma travessia pedonal. As cartas da Iberdrola que chegam ao correio dos poucos moradores precedem, com uma procissão de incertezas e temores, essa enchente que tragará a ponte e acabará por afogar Veral e Monteiros, quando for cortada essa artéria em que ainda fluía um sangue a gelar, de velhice, mas onde em breve só a água do Tâmega, em que se misturam a candura e a crueldade próprias da natureza, passará.
E, se assim for, o homem baterá a natureza, já não a unir, mas a separar. E uns homens baterão outros homens, os que fecharam o abismo em 1936, não por unirem melhor, mas por separarem novamente.