Texto de Beatriz Berto Cadete. Revisão de João N.S. Almeida.
Abstract: O seguinte ensaio tem como objetivo analisar o filme Mulholland Drive do realizador David Lynch. Após uma breve exposição dos aspetos mais significativos para um conhecimento aprofundado da obra, passarei a relacioná-la com A Teoria da Forma Significante de Clive Bell, a arte como expressão de emoções e a teoria de Arthur C. Danto relativamente à significação incorporada. O objetivo dessa relação é concluir como cada teoria interpretaria Mulholland Drive enquanto obra de arte.
Dualidade entre sonho e realidade
É perfeitamente incontestável a afirmação de que um dos aspetos mais marcantes da obra é a sua dimensão onírica. Uma das interpretações mais populares de Mulholland Drive retrata como a primeira parte do filme representa o sonho de Diane Selwyn, que relembra a sua chegada a Hollywood depois de ter ganho um concurso local e, de seguida, faz de tudo para se tornar uma atriz famosa; deste modo, esse sonho é como que uma segunda oportunidade. Nesta mesma interpretação, a segunda metade do filme retrata a realidade, a sua decadência pessoal e moral depois de as suas ambições profissionais e amorosas não se terem realizado. Esta leitura torna vários aspetos do filme muito mais claros, como veremos imediatamente.
Na vida real, Diane Selnwin estava apaixonada por Camilla Rhodes, ao mesmo tempo que a via como uma rival no mundo do cinema. Durante algum tempo as duas mantiveram uma relação amorosa; no entanto, tudo muda quando Camilla se envolve com o realizador Adam Kesher e fica com o papel no seu filme, separando-se da companheira. O ódio que Diane nutre por Adam Kesher na vida real explica todos os infortúnios sucedidos ao realizador no sonho da mesma: Adam é despedido do seu projeto cinematográfico, toma conhecimento da infidelidade da esposa e, no final, acaba na miséria emocional, física e monetária, o que configura uma vingança feita pelo subconsciente de Diane.

Ao longo do filme são feitas inúmeras referências à ideia do sonho e da sua complexidade. Por exemplo, numa das primeiras cenas a ação é transportada para um típico diner americano e assistimos a uma conversa entre dois indivíduos, em que um deles conta o seu sonho. Ele explica como, no sonho, eles estão naquele mesmo diner e o seu amigo está no balcão. Depois do relato, o amigo tenta tranquilizá-lo e dirige-se ao balcão para pagar a conta, como se o que o outro indivíduo sonhou se estivesse a materializar na vida real. Se considerarmos a interpretação proposta acima, é também inegável a importância da cena em que o Cowboy, que surge em pontos determinantes do filme, aparece no quarto em que Diane está a dormir e diz “Hey pretty girl, time to wake up”, devolvendo-a à realidade. Esse momento pode ser entendido como uma separação entre o estado dormente, febril, onde reinam os sonhos que nos são apresentados, e o mundo real que Diane tem de enfrentar. Adicionalmente, o significado de sonho torna-se ainda mais interessante quando se confrontam duas aceções possíveis da palavra: por um lado, os objetivos profissionais de Diane são os seus sonhos, mas esse sentido figurado é tornado literal quando, confrontada com a não concretização dessas metas, encontra refúgio nos sonhos que nos são inevitáveis durante o sono. A gradação do significado torna ainda mais relevante o papel da dualidade sonho/realidade no filme.
Procura da Identidade
O conflito interno inerente à procura de identidade é um dos aspetos mais visíveis em alguns personagens e levanta imensas questões do domínio do “eu”. Na primeira parte do filme, Camilla, depois do acidente em Mulholland Drive, fica amnésica. Para se proteger dos perigos que pode correr, passa por um processo contínuo de recuperação de memória para perceber quem é, ou seja, descobrir, literalmente, a sua identidade. Apesar desta luta interna ser apenas parte do sonho de Diane, na interpretação que adiantei acima, pode também ser vista como uma projeção das suas inseguranças reais, do esforço de Diane para encontrar o seu lugar e função no mundo.
A influência da culpa no nosso subconsciente
Na última meia hora do filme, tomamos conhecimento do plano organizado por Diane para matar Camilla. Assim, o sonho de Diane, na primeira parte, pode ser descrito como um desfecho alternativo e conciliador da realidade, uma vez que Camilla consegue escapar da tentativa de homicídio e, ao perder a memória, as duas voltam a criar uma relação amorosa. O desejo inconsciente de reconciliação tem uma origem muito mais profunda que o simples peso da culpa. Um dos aspetos marcantes dos sonhos é a distorção do tempo, a facilidade com que experienciamos longos períodos de acontecimentos em poucos minutos e, de repente, tanto podemos estar num sítio como num tempo completamente diferente. Desta forma, as imagens do sonho de Diane constituem uma realidade em que o tempo é completamente manipulado porque, na verdade, a amnésia é um recomeço, o apagar-se de uma vida inteira em segundos. A procura da identidade de Camille torna-a dependente de Diane, e assim, ambas percorrem o caminho à procura de respostas, e voltamos a observar o jogo entre o sonho literal e figurado, na sua dimensão temporal.

Forma Significante e a dimensão visual de Mulholland Drive
Claro que estas breves menções aos aspetos mais relevantes do filme não são suficientes para compreender a sua genialidade; no entanto, conferem os recursos necessários para o acompanhamento da seguinte análise, que terá como base as teorias enumeradas. A primeira proposta de definição de arte que me proponho abordar é a teoria formalista de Clive Bell, que defende o conceito de “forma significante” como o denominador comum a todas as obras de arte. Segundo o autor, existem objetos criados pela mão humana que detêm o poder de provocar uma emoção estética nos observadores dotados de sensibilidade. A apreciação de uma pintura, por exemplo, como obra de arte, é desinteressada; ou seja, tanto o contexto da sua execução como informações sobre o seu autor são irrelevantes. O mesmo se aplica ao cinema, que é imagem em movimento; e, neste caso, dado que o autor, Lynch, é também pintor por educação e vocação, a teoria de Bell adequa-se particularmente bem. Sendo assim, independentemente da narrativa, é possível ver Mulholland Drive desinteressadamente como objecto estético, uma peça dotada de uma combinação de cores muito bem conjugada, aliada à atitude dos personagens e aos ângulos selecionados para captar o melhor de cada momento, no estilo próprio de Lynch. Embora a narrativa fragmentada que constitui o filme nos force a compreendê-la, a juntar os pedaços numa ordem inteligível — como diria o autor, referindo-se a mistérios em geral, “we are all detectives” — é possível apreciar essa espécie de narrativa apenas com a experiência da sua apreciação exclusivamente visual, descontextualizada do enredo. Clive Bell não encarava a falta de representação literal e/ou figurativa (a de significado para além da forma) como um aspeto impeditivo de se atribuir a conotação “obra de arte” a algo, mas apenas um aspeto irrelevante perante o papel crucial da forma. Assim, embora o filme tenha imensa significação externa, pode “valer” apenas por si, enquanto objecto descontextualizado, pela sua estrutura formal.
Existem várias formas de ver um filme sem contexto, e muitos de nós chegamos a fazê-lo sem reparar nisso. Se, por exemplo, ligarmos a televisão e estiver a dar um filme em que não sabemos nada sobre o seu realizador, não conhecemos nenhum dos atores e, como não estamos a acompanhar desde o início, não entendemos o seu enredo, podemos focar-nos nas imagens em movimento que nos são apresentadas, sem fazer o esforço em compreender o que cada palavra dita ou cada ação significa. No caso de Mulholland Drive, se não tirarmos nenhuma significação particular ou sentido geral do filme, ou deliberadamente nos focarmos na sua dimensão visual, podemos ter um episódio próximo da pura emoção estética, o que, segundo Bell, é condição não só necessária mas também suficiente para se considerar o filme uma obra de arte.

A preocupação de David Lynch em criar um cenário visual que esteja constantemente a arrebatar os seus espectadores não é acidental, como podemos observar logo nos primeiros segundos do filme, onde assistimos a uma cena com um conjunto de bailarinos, filmados de modo sobreposto, a executar a sua performance sob um fundo violeta. Todo o ambiente criado nessa cena é suficiente para captar a atenção de um olhar sensível, apesar de estarmos completamente descontextualizados. A escolha de personagens também está extremamente bem conseguida, com a estrutura formal do seu vestuário e maquilhagem, até o contraste da cor de cabelo das protagonistas e a sua forma de estar nos ambientes em que estão inseridas, cuja influência da estética americana dos anos 50 é inegável. A atenção dada ao espaço contribui ainda mais para a estética do filme, uma vez que nos são apresentados diversos tipos de locais: por um lado, o ambiente onírico, marcado por tons mais escuros (cinza, azul escuro, preto) e uma iluminação mais estratégica, como é observável na cena do “Club Silencio”; por outro lado, o jogo de cores mais vivas (amarelo, vermelho, azul claro) típico dos diners americanos e dos sets de gravação de Hollywood também são profundamente marcantes ao longo do filme. É de notar que, se pararmos o filme em momentos específicos, parece que observamos uma adaptação de pinturas de Edward Hopper, não só pela composição espacial imediatamente identificável, convidativa à reflexão, mas também pela nostalgia e solidão que transparece tanto no filme como nas obras do pintor.

Um dos segmentos do filme que melhor ilustram a sua capacidade de provocar uma emoção estética, desprovida de qualquer contexto, é o momento em que Adam Kesher verte uma lata de tinta cor-de-rosa em cima da joalharia da sua esposa. A combinação do brilho prateado das jóias com o rosa vivo da tinta, aliada ao design minimalista da cozinha em que se passa a ação fornece os elementos necessários para se experienciar emoção estética, principalmente quando todo o espaço acaba coberto nesse tom específico de rosa, mesmo se não soubermos quem está a praticar a ação nem porquê. Outra parte do filme extremamente marcante são as atuações no Club Silencio, em que assistimos Rebekah del Rio a cantar uma versão espanhola do tema “Crying” de Roy Orbison, o que contribui para a atmosfera obscura desejada. A meio da sua atuação, a mulher desmaia e a sua voz continua a ser ouvida, e mesmo sem entender o significado desta cena particular, podemos ficar extasiados com o impacto emocional das imagens que estamos a ver. O momento em que nos apercebemos que a música perdura mesmo com o estado inconsciente da cantora retoma a ideia iniciada pouco antes, quando o anfitrião do clube profere a célebre frase “no hay banda”, repetida várias vezes antes de o espetáculo começar. Toda a experiência no Club Silencio destaca o caráter ilusório de representação inerente à arte, e denuncia, de uma maneira íntima, o seu poder de nos deixar rendidos visualmente principalmente através da sua natureza de imitação e falsidade.
Uma vez que, ao desprezarmos o contexto, o filme tem de ser uma obra de arte independente do ano em que foi criado, pareceu-me interessante ilustrar este aspeto com uma recensão feita pelo jornal britânico The Guardian:
“After 16 years, David Lynch’s macabre mystery still exists in its own eerily timeless
modernity: it just hasn’t aged a day, despite or because of its ambiguous status as period
piece in an era of landlines and payphones (mobile phones existed when this film was
made and it is supposed to be set in the present day, but could as easily be set in the
1940s).”
Numa das entrevistas feitas a Lynch, o realizador fornece uma explicação para nunca resumir ou clarificar os seus enredos. Ele acredita que a obra terminada detém a capacidade de falar por si, sendo perfeitamente natural a sua apreciação apenas com o que vemos, sem conhecimento exterior acerca da história ou do realizador.
Uma das críticas feitas à Teoria de Clive Bell é a inexistência de um método objetivo para decidir entre afirmações opostas relativamente a uma obra. Se um indivíduo sentir uma emoção estética perante Mulholland Drive e o outro desprezar completamente a sua dimensão visual, que afirmação será a correta? Na impossibilidade de resolver esta questão e tendo consciência do êxtase particular que esta obra provoca, tanto em mim como na maioria dos espectadores, sendo que muitos consideram este filme o magnum opus de David Lynch, dentro da teoria de Clive Bell creio ser possível afirmar que este filme detém forma significante, sendo assim, para essa teoria, uma obra de arte.

Arte como a expressão de emoções
A segunda teoria com que me suporto é a tese de R.G. Collingwood, que defende que uma obra de arte é a expressão artística e clarificação das emoções do seu criador, sendo, assim, a tentativa de obter uma solução para os seus dilemas. É de salientar a influência romântica nesta teoria, uma vez que, tanto na literatura como em outras formas de arte, a clarificação de sentimentos e dilemas psicológicos do autor eram vistos como o motivo e o propósito da sua arte, o que se traduziu em teorias marcadas pelo paradigma platónico, em que o artista é visitado pela inspiração (que poderá ter uma origem divina), sendo o escolhido para criar, através da expressão do “eu”. Depois do Romantismo surgem movimentos, no final do século XIX e meados do século XX, que assentam o real valor da arte no trabalho sobre a criação e não sobre a inspiração, como o Simbolismo, que retoma o paradigma aristotélico do artista como um artesão, onde a arte é um processo de aperfeiçoamento estruturado e consciente das obras, ao contrário de uma expressão deliberada de um sentimento. Assim, o conceito romântico da criação artística como expressão de emoções começou a ser contestado com o surgimento da arte finissecular, marcada por novas estéticas e teorias. Não deixa, no entanto, de ser uma proposta válida para a análise do filme, dado que o paradigma romântico mantém-se bastante activo.
Collingwood estabelece uma escala de valor artístico entre “arte verdadeira”, “arte mágica” e “arte de entretenimento”, e essa distinção será crucial para a possível consideração de Mulholland Drive como obra de arte. Em primeiro lugar, sabe-se que Collingwood, em The Principles of Art (1938) rejeita a teoria da arte enquanto técnica, por esta não estabelecer diferença entre arte e ofício, o que faz com que a tarefa do artista esteja ao mesmo nível da de um artesão que executa um trabalho planeado e sistemático. Como Collingwood encara a atividade do artista como algo que não necessita de planeamento, nem de uma distinção entre meios e fins (algo que acontece na técnica com vista a obter fins) a sua oposição a essa teoria torna-se mais clara. Assim, perante o cenário em que um artista tem um sentimento e pretende representá-lo através de uma expressão imaginativa, Collingwood considera essa clarificação a pura e verdadeira arte. A noção de arte mágica, por seu lado, consiste num conjunto de obras criadas como meios para atingir um fim, ou seja, pinturas, música ou esculturas que despertam no observador emoções que se traduzem em ações do quotidiano. Esta função utilitária da arte mágica opõe-se à utilidade da arte de entretenimento; esta apenas sujeita o espectador a momentos aprazíveis, e o descarregar das suas emoções é o fim em si. A noção deste conceito de emoções é necessária para avaliar a inserção do filme nesta teoria: Lynch prima pela exploração de ideias e não tanto a expressão de emoções muito particulares que pretende clarificar. Para além da importância dada às ideias, produzir um filme envolve um plano; por mais que não se tenha previamente o conhecimento de todo o processo, existem inúmeros aspetos que têm de ser tratados e organizados para se dar uma execução correta. Collingwood defende que a arte de entretenimento é habilmente construída, o que nos leva a pensar que Mulholland Drive, por fazer parte da indústria fílmica de Hollywood e envolver necessariamente esse planeamento, poderá enquadrar-se como arte de entretenimento.
A teoria de Collingwood pode ser difícil de aplicar no cinema por excluir filmes que pretendem fundamentalmente a catarse do espectador, em vez de partirem mais fortemente da transmissão das emoções do seu autor. Muitas vezes nem é possível definir qual foi o verdadeiro impulsionador da criação; essa parte da teoria, assim, falha, dada a frequente impossibilidade em aceder à etiologia de uma obra. David Lynch nunca fornece uma explicação dos seus enredos. Porém, apesar de não desejar provocar uma emoção específica nos seus espectadores ou fazê-los descarregar as suas ânsias, pretende despoletar uma emoção individual em cada um deles, e esse objetivo é tão relevante como a intenção abstracta de explorar as suas ideias. Posto isto, mesmo não concordando com a teoria da arte como expressão de emoções devido a, como afirma Nigel Warburton no seu livro The Art Question (2003): “A noção de verdadeira arte de Collingwood admite muitas coisas que não são obviamente arte; ao mesmo tempo, exclui alguns casos paradigmáticos de arte”, é necessário comparar o filme às suas ideias e concluir que, neste caso, Mulholland Drive muito provavelmente seria encarado por Collingwood como “arte de entretenimento”. Filmes como The Matrix (1999) e Inception (2013) foram criados a pensar numa enorme capacidade de entretenimento enquanto partilham ou exploram premissas muito mais complexas e criativas e; mesmo sem a intenção dos seus criadores em clarificar os seus sentimentos difusos, são consideradas obras de arte. Esta designação, por exclusão, faz com o que o filme não seja arte verdadeira, o que não parece correto dado que não é claro como a dimensão de diversão de uma obra seja um impedimento para existir arte.

A relevância da significação incorporada
Desde o seu primeiro livro de filosofia da arte The Transfiguration of the Commonplace (1981), Arthur Danto levanta a hipótese de não estar visível o que confere a algo o estatuto de obra de arte. Esse tipo de perspetiva traduz-se num afastamento das tradicionais concepções estéticas de arte e que, do seu ponto de vista, não se enquadram corretamente nas novas formas de produção artística. O exemplo mais utilizado para ilustrar a sua ideia é a obra “Brillo Box” (1964) de Andy Warhol, que gerou uma enorme controvérsia por se assemelhar em todos os aspetos ao próprio produto de supermercado em que se baseia. Danto vai afirmar que o que distingue a obra de Warhol das caixas postas à venda é a teoria da arte aplicada à mesma: o olhar do sujeito classifica qualitativamente o objecto enquanto arte. Esse é o seu argumento para diferenciar arte de objetos do quotidiano quando a sua estrutura formal é muito semelhante ou mesmo indistinguível. Como Nigel Warburton afirma em The Art Question: “Ver, como os filósofos da ciência gostam de assinalar, é uma atividade impregnada de teoria” e é essa a forma de categorizar um objeto como “obra de arte” enquanto outros objetos indiscerníveis do primeiro, não detendo uma significação incorporada, continuam a pertencer ao quotidiano. Ao ser um modelo teórico de certa forma anti-estético, é possível perceber a sua aplicação na arte conceptual, que durante muitos anos foi rejeitada por muitas das suas obras não serem do domínio do belo clássico, apesar de possuírem significação incorporada (expressão através do meio). Apesar de Mulholland Drive deter todas características visuais para ser considerado formalmente belo, o conjunto de significações e possíveis interpretações que o caracterizam podem também torná-lo válido como arte nesta leitura. Sabe-se que o filme nos fala como um todo e, como é uma obra que se prolonga no tempo, está sujeita a novos espectadores, que adicionam a sua própria significação. Devido à importância dada à interpretação neste filme, Mulholland Drive consegue ser mais apreciado à luz desta leitura, uma vez que está repleto de símbolos que só são corretamente valorizados quando vemos a bagagem artística por detrás deles.
Antes de dar alguns exemplos mais particulares, tomemos este excerto de Arthur Danto, presente no seu livro What art is (2013): “A arte é como um sonho (…) Os romances são como sonhos, como o são igualmente as peças. Há algo de muito convincente nesta relação entre a arte e o sonho.” Esta passagem faz uma boa ponte entre a tese de Danto e o filme, dado que Mulholland Drive é literalmente uma exploração do nosso subconsciente na sua dimensão onírica, sendo a primeira parte do filme frequentemente entendida como um sonho, como já referi, embora outras hipóteses possam ser admitidas. Tal como nos sonhos, existem muitos elementos no filme que à primeira vista podem não fazer sentido, mas a significação que lhes é atribuída por Lynch é o que torna esta obra ainda mais magnífica.

Consideremos, por exemplo, a frequência com que chaves azuis aparecem no filme, sob várias formas. Na primeira hora do filme é dada uma extrema importância a uma chave azul que não se sabe para que serve. A meio do filme, a chave abre uma caixa e esse momento aparentemente divide o filme entre o sonho e a realidade, tendo, assim, uma significação incorporada muito superior à sua utilidade no quotidiano. Na última parte do filme, ou seja, a realidade, numa conversa entre Diane e o hitman contratado, ele diz que depois de tratar do homicídio de Camilla, deixará uma chave azul em casa de Diane. Perante esta informação ela questiona: “mas o que é que a chave abre?”. Sem lhe dar uma resposta, o hitman tem um ataque de riso como que a criticá-la por dar um sentido tão vulgar à chave, que tem todo um significado por detrás dela. A chave não é um simples objeto destinado a abrir algo, é o instrumento que nos permite discernir sonho de realidade, e o símbolo que informa Diane da conclusão do acordo. Voltando ainda à cena do Club Silencio: as atuações que lá são feitas por parte do músico a tocar trompete ou Rebekah del Rio a cantar em espanhol que, ao serem interrompidos na sua performance, permitem ao espectador continuar a ouvir a música, não foram colocadas no filme por acaso. O que à primeira vista podem parecer minutos extremamente confusos mais tarde são verdadeiramente apreciados quando nos apercebemos que o objetivo dessas cenas é evidenciar o mundo de aparências e ilusões que constitui tanto os nossos sonhos como o mundo do filme e o mundo da ficção: é tudo uma ilusão.
Estes são alguns dos muitos exemplos de significação incorporada no filme, ou seja, atribuição de toda uma teoria artística em cada segundo de Mulholland Drive. Uma vez que o filme expressa a visão de David Lynch do que é o domínio onírico através da exploração do nosso subconsciente, é uma expressão que toma formas materiais e muitas vezes sensíveis, e é propensa a vários tipos de interpretação e pretende constituir um “mundo de aparências”, é então possível concluir que o filme tem uma forte figuração incorporada, o que lhe confere o estatuto de obra de arte segundo a teoria de Arthur Danto.
Conclusão
A partir destas três teses é possível compreender a dificuldade em definir filosoficamente o conceito de “arte”, uma vez que existem visões completamente opostas que dão importância a elementos diferentes. Entre teorias focadas puramente na dimensão visual, na clarificação de emoções ou na representação, creio ser possível considerar Mulholland Drive uma obra de arte tanto estética como simbólica, apesar de ser apenas vista como “obra de entretenimento” na teoria de Collingwood, frequentemente criticada por excluir obras incontestavelmente aceites como arte.
Bibliografia e Filmografia
https://www.youtube.com/watch?v=gf1sfVpw9OY https://www.theguardian.com/film/2017/apr/14/mulholland-drive-review-david-lynch artigo de Peter Bradshaw, acedido a 14/12/2019