Texto de Sebastião Viana. Revisão de João N.S. Almeida e Sílvia Diogo.Imagem: radiocampanario.com.
Margaridas para o Dia da Espiga
O soldado na Trincheira
não passa de uma Toupeira,
vive debaixo do chão…
Nestes períodos em que a fé no mundo dos Humanos se vai desvanecendo, trago-vos uma lenda que o tempo deixou correr mas que, em certa parte, ainda se conta. Fala de um estranho caso que viu e ouviu contar José Francisco Nobre, quando no final de abril do Ano da Graça de 1921, pelo caminho de regresso à Herdade do Vale do Homem ao pressentir o ardil com que o Silvito, o leal macho, engaria – dentro de pouco a um rosmaninho – decidira dar ao animal o valido descanso da hora e meia de trote que fizera desde o Cavaleiro. Costuma dizer-se por estas terras de Sul de Portugal que ‘Quem pelo rosmaninho passou da sua amada se lembrou’, não sei em que pensaria meu antepassado, mas como o macho devorasse a delicada flor, José era transportado pelo cheiro doce e, fitando um céu azul em que as poucas nuvens se deixavam afagar carinhosamente por uma brisa amena, cogitava se seria boa ideia desembrulhar o pão com chouriço de boa farinha de trigo. Faltando quase duas horas para que o Sol chegasse ao Zénite decidira que o código dos viajantes solitários é regido por diferentes leis e que desembrulhar o pano seria tão belo quanto a escolha cuidadosa de se sentar perto de umas estevas que por aqui e por ali se iam deixando alegremente polinizar. Tragara dois bons tagalhos e matara a sede a fartos golos de um odre antigo que especialmente acaridava.
Até os homens de temperamento fogoso compreenderão que poucas coisas há de melhor na vida que o vagar de se poder saudar a fauna que vai pousando amavelmente sobre os sobreiros que dão para um lago acolhedor em que as rãs no habitual coaxar lúgubre assinalam o aproximar do inevitável. Como se fosse o último dia da vida saudou o sol levantando a mão direita, não era um adeus, era um sinal de gostar de ver, e como gostasse de ver e se distraísse, o Silvito saciava a sede, gostando de beber todo esse mundo. Vendo, estranhou a presença no horizonte de uma ermida de madeira velha, coberta por musgos e muito castigada pelas chuvas, mas que ainda se sustinha em pé. Um homem pequeno deitava no chão o pedaço de madeira que cobria a entrada e ao qual ninguém ousaria chamar de porta, transitando para um terreno onde se praticava o culto da batata e da couve. Não querendo dar, em sentido literal, ‘com o burro nas couves’, prendeu o macho a um sobreiro e, contornando o charco, aproximou-se, movendo-se cuidadosamente por entre silvas que cresciam livremente nas traseiras da ermida. Servindo-se de um madeiro que jazia por ali desviou lentamente umas silvas de modo a que melhor pudesse observar os carregos com os quais se havia o conspícuo ermitão. Na mira apenas encontrou um horto vazio. Fatalmente confuso, ter-se-á julgado em delírio e, retrocedendo pelo silvado que daria para o sobreiro em que deixara Silvito, olhou sem que com a vista alcançasse o paradeiro do apreciado animal e mais apreciada albarda.
Pensara que seguira em vão o instinto de mirar novamente a propriedade, mas eis que prender o burro não impedira que desse com o burro nas couves, ali o feroz Silvito despedaçava impiedoso a Brassica olerácea. A honra do homem clamava ao pundonor e como nunca se tivesse visto um homem que andara a dar vagar à curiosidade de observar haveres alheios entre sorrateiras silvas, correndo no instante seguinte em socorro de um animal de silvado nome, é de imaginar que ecos do nome ‘Silvito’ tivessem soado à distância de três povoações. Debalde todo o subterfúgio ei-lo, o ermitão com a tez queimada pelo sol e o rosto cheio de fome, destacando dois amáveis olhos de amêndoa e um menos amável adunco nariz, revelando, sorridente, uma boca incompleta. O sorriso do ermitão era a mortificação de José que, tirando o chapéu, balbuciava pedidos de desculpa em formação, enquanto jogava a mão à bolsa, visando encontrar a merecida compensação pela subtração da couve. Nesses preparos, o ar ameno ia-se tornando mais ofegante como se o robusto macho tivesse ganho duas bossas e o estranho quadro se estivesse passando na outra margem do Mediterrâneo. Ora arfando de calor, ora de ansiedade resolveu pela escolha que lhe parecia apaziguar melhor a dívida de uma couve, tornou a desembrulhar o pão que, outrora, nas amenas províncias de além-Tejo, tanto o aconchegara. Mas o ermitão, na voz rouca e cavernosa pelo passar dos tempos respondeu que o chouriço do pão estivera bom, mas que aceitaria um ‘vinhito’ para matar a sede. Vexado pela confusão, José Nobre tombou uma quantia razoável numa malga de barro, cobrindo o grotesco pintassilgo que, todo a laranja e castanho, ia ungido as asas em torno do astro saudoso. E como o veloz ermitão deixasse descobrir a ave canora, lá se lhe dirigiu palavra:
– Cavalheiro, que mais se poderá fazer para compensar este descuido?
O homem de avançada idade retrocedeu dois passos, fitou o sol que, por fim, marcava as doze e após coçar a orelha direita respondeu:
– Fiquei pensando que, calhar, me calhavam bem uns dois dedos de ‘traca-traca’. – e sorrindo… – Sabe vossemecê que um home’ velho que se veja sozinho no meio do campo raramente tem quem lhe ofereça um pouco de paleio, já que não seja o bom pão que vossemecê teve a caridade de chegar.
– Há de vossemecê saber que um homem que trabalhe com honra há de sempre assumir responsabilidade perante as suas faltas. – Tornou José erguendo a voz, e de mansinho… – Se a minha conversa lhe convier, não vejo porque não me quedar por mais uma meia hora. Trate-me por José.
– Ezequiel da Cruz, graças a Deus. Vossemecê é de além. – e apontando na estrada de retorno a Herdade: – Não é?
– Sim senhor, olhe, vossemecê é de cá?
– Sou de todas as partes, mas… – e, voltando as costas, um vento zurrava refrescando repentinamente os sobreiros. – Nem toda a vida fui velho…
– Que conversa, Homem, só falta que me diga que nem toda a vida foi Homem. – Bradou impressionado José.
– Veja, bem, José, ser velho é o que todos chegamos a ser a partir de qualquer idade e até quando a não temos, ser velho resume-se a ser, portanto, velho. Embora não haja escolha sobre se se chega a velho, há, naturalmente, escolha sobre se se é ou não sé é, ‘defenetivamente’, velho. E eu …. meu novo amigo … não só sou por idade como sou, também, por escolha e fortuna. – disse suspirando.
Como compreendesse o sentimento do velho, tornou, sentando-se numa esteva: – Pela sua conversa, a lógica manda-me pedir que conte sobre como se terá tornado velho.
E o Velho, espreguiçando-se: – Não lhe dou responsabilidade de me ouvir, mas se quiser ouvir, tem de me prometer que me oferecerá o favor de voltar aqui pelo último dia de Inverno.
Tanto a promessa era fácil de executar como difícil de lembrar e mirando uma nuvem que ia tapando o astro luminoso, José terá respondido: – Tanto dito quanto feito, Nosso Senhor me julgue. – Continuando Ezequiel, após mais uns instantes de deliberação:
– Se me sair palha é porque a velhice por velho me quer. Contar-lhe hei da funesta decisão a que me entreguei. Bom… Tinha pouco mais de vinte anos quando, por ocasião de estar em Portalegre, fazendo negócio com uns familiares a quem meu pai devia uns cinquenta contos, me quedei pela celebração de Nosso Senhor pela Quinta-feira da Espiga. O primo que ‘não me lembra o nome’ lá me apresentou uma filha da prima do irmão da esposa do filho, que não sabia se era prima sua, e tanto me pareceu boa rapariga que nunca me esqueceu que se chamava Maria Margarida. A florzita não deveria ter menos de uns dezasseis anos quando pela festividade de Nosso Senhor me ofereceu um pueril raminho sem margaridas e, por gracejo, me deu ensejo para dizer que não o podia aceitar sem margaridas.
« Confesso, como é habitual, que esperei um corar tímido, ou que, em resposta me dissesse, pelo menos…, que havia uma ‘margarida’ com o ramalhete, mas a moça não fez caso do meu dizer, com o peito arfando de orgulho, pensei que era timidez e logo arranjei negócio com o seu honrado pai (Deus lhe perdoe) o Benjamin Godinho, e lhe gabei a moça. Ainda me recordo, foi duas semanas depois de que me oferecera o ramalhete.
« O Godinho rápido me descobriu o lance e me deu, em confissão, o conhecimento de que a varina sustentava epistolarmente uma conversa com o filho de um lavrador de Malavado que assentava praça no Algarve, e de cuja aprovação já não carecia. Como todos os amantes, que não o queiram ser, fingi apenas ter grande amizade pela família Godinho e tão convencido me via da mentira que continuei frequentando a casa dos Godinho tão assiduamente como dantes, que era sempre que não havia biscates. Mas, dali a três semanas, se acabaram as papas com mel, quando deu, na aldeia, o ar de sua graça, um feio rapaz, fraco homem de andar gingão, trajando à tropa.
« Não será de estranhar que caísse a fraca mentira que por intercessão de Santa Catarina, saberia Nosso Senhor, e a fronte me fosse toda ela lavada de bílis. Não poderia ser que o rapazeco tivesse alguma qualidade de que eu não fora também depositário e numa dessas noites de estio, à luz da lua cheia, nos déssemos a conversar sem que uma só palavra se trocasse. Fiquei sabendo que o ar trigueiro e jeito de mariquinha lhe creditava pouco a forma física e, como nos falássemos, fiquei com uma dor lombar de quatro semanas, tendo de reduzir a quantidade de visitas às essenciais…
« Bom… Diga vossemecê o que quiser dos meus atos, mas revoltando-me contra Deus por conceder os carinhos que me pertenciam a um menos digno, gastei a fazenda que devia a meu pai numa feiticeira que vivia perto de uma encruzilhada em Olivença e que profetizara que ao último dia do Inverno depois de ver um anho degenerado haveria uma oportunidade de me livrar do mancebo.
– Valham-me Santa Maria e José! – cuspiu-lhe o interlocutor, interrompendo a história. – Vossemecê terá bebido de mais, vou-me daqui, que se fosse uma conversa de jeito ainda ficava!
Montando, rapidamente deu ao animal o conhecido sinal de galope e, juntos voltaram à estrada, chegando à Herdade a que se destinavam um pouco antes das vinte para a uma. Ao portão principal, uma vizinha palrava com Bárbara e, vendo chegar Silvito,ambas acenavam, saudando a saudosa figura que o montava. Naturalmente lhe notaram o olhar aterrado, e vendo-o desmontar, logo lhe inquiriram pelas razões. O erudito leitor ou a amável leitora de certo saberão que na Feminilidade, e no que dela tem cada Mulher, há, por natureza, uma auspiciosa sensibilidade capaz de entender emoções que nem sequer foram expressas, de modo que, inevitavelmente, a aterração de José, tão fulguroso nos seus gestos, não poderia passar impune e, como José quisesse desabafar o que tinha sucedido, logo lhes contou da existência de um ermitão, ‘naquele lago daquelas sobreiras’. Bárbara, sua esposa, duvidando do testemunho, perguntou-lhe se não teria adormecido quando bebera perto de estevas. Mas de certo que, homem valente como ele, não ficaria bebido assim tão facilmente e com tampouco vinhito que nem para matar a sede servira de modo que, prontamente, lhes asseverou de que, “palavra de home’, vira o que vira como as estava vendo e que, graças a Deus, não se achava doido”. Mas a vizinha, que, das muitas graças, tinha por nome Francisca, tornou cortante que ainda nessa semana tinha passado ‘àquele lugarejo’ e que, não querendo desacreditar o compadre, não vira nem choça nem carroça.
Não se deixando convencer, teimava que as mulheres, caso lá fossem veriam tão bem quanto ele que havia uma ermida velha. Mas Bárbara não achava boa ideia voltarem por lá, que o sítio dava mau agoiro desde que, há muitos anos, e assim contavam os antigos…:
– Que havia um homem que fugiu à nossa terra para se escapar à justiça de D. Pedro V, que lhe estava no encalce por ter desde adolescência colaborado em muitos dos vários esquemas da pandilha do José do Telhado. Diz-se que amava perdidamente uma humilde ceifeira de Portalegre que lhe queria muito bem, pensando-o soldado honesto e atirando todos os outros pretendentes à praça do desprezo. Um dos pretendentes, um bêbado notório, como certa noute, se confrontasse com o ‘soldado’, ficara gravemente ferido, mas, de certo, não terá sofrido mais no corpo do que sofria no fígado.
« E quando o pretendente deixava de sentir, começava a ressentir e quando a dor se tornava insuportável, logo era o tempo de cogitar um plano que lhe permitisse resgatar a ceifeira dos braços do soldado. Primeiro traçou planos simples, depois vieram planos mais complexos, e quando, por fim, se sentiu capaz decidira por em marcha um plano de que resultaria o rapto da moça. Conta-se que a amizade com o pai o levara a gostar da moça, e que muitas vezes comera pão naquela casa; vivências bonitas de que, cego pelo pecado (ou pela bebida), não se conseguiria lembrar, para ser capaz de, um dia, pegar no instrumento com que lhe ceifaram o comer, e tentar levar para Deus o homem que tão bem o tratara.
« Conta-se que, ouvindo rebuliço, o ‘Soldado’ que descansava de uma viagem longa, foi ter à cozinha, onde tal caso se passava, e protegera com sucesso o pai da moça, injuriando o ébrio de forma quase fatal. Se a moça o amava antes, vendo-o como o salvador de seu pai ainda mais o amaria, tendo a noticia do sucedido viajado mais rápido e para mais longe do que calharia ao antigo bandido. A fama deu à Guarda pretexto para que começasse a suspeitar de que o ‘Soldado’ pudesse ser um fugitivo perigoso chamado Santiago do Poço, de cognome ‘O Toupeira’. Suspeita que terá chegado aos ouvidos do Pai da moça, que tivera confirmação pelo próprio Santiago. Vendo-o como homem de bem, e crendo que o passado seria passado, enviou numa noite o moço ali para o Vale da Figueira, para ficar ao cuidado de uma família amiga. A moça que temia nunca mais ver o amante, não aceitou que Santiago fosse sozinho, convencendo o pai ao dizer que depois de se casarem lhe daria muitos netinhos.
« Não sei o que aconteceu à rapariga, mas o que é certo é que o homem que a cobiçara seguira-os e pelo último dia de Inverno avançou com a Guarda para o arresto. Mas como o Toupeira se visse debaixo de perseguição terá fugido por aquela estrada de que falaste, marido, e como se não deixasse prender tê-lo-ão surpreendido a tiro. O que aconteceu à rapariga ninguém sabe, uns dizem que fugiu, outros que também se tornou numa toupeira ao acompanhar o amado na fuga para debaixo da terra…
Bárbara calou-se vendo o ar pasmado do marido, que sem se convencer tornava:
– Os antigos diziam muita coisa, umas dão certo outras nem por isso, esta não me parece ter muito jêto, mas agora depois de se falar tanto tempo… se calhar sonhei, que fiqueis com isso, que agora acho melhor a gente ir comer que já são quase duas e o trabalho… ainda por fazer!
Muitos dias se passaram, veio a Páscoa e, 40 dias depois, a quinta-feira de 5 de Maio, a Ascensão de Nosso Senhor. Ao raiar da aurora toda a gente fugia pelos campos afora, os mais velhos, por graça do Espirito Santo, não sofriam com a orvalheira, que os molhava até à cintura, os mais novos competiam para ver quem conseguia fazer o raminho mais bonito, regressando, depois, por volta do meio dia para jantar fartamente, colocando o ramalhete atrás da porta e, pondo à mesa tudo aquilo a que se podiam permitir.
José começava o dia ralhando que os gaiatos saíam em jejum e que ainda lhes havia de fazer mal, e Bárbara respondia-lhe com carinho que os deixasse que era a festa de Nosso Senhor, que quando se cansassem teriam bom pão e bolinhos para se alegrarem. Como fosse dia de festa José quedava-se sentado, ouvindo a esposa amaçando na cozinha, e assim ficaram num pachorrento silêncio durante umas duas horas, até que, perto das oito, o homem se alevantara para dar de comer aos animais. Deviam ser umas dez horas e ainda não havia regressado José, quando, perto do portão, soou um gentil ‘ó da casa!’. Uma rapariga desconhecida acenava de cabelo ao vento, e como não houvesse mais ninguém, Bárbara que se quedava pela cozinha, correndo, foi acudir. E a rapariga, com um cabelo negro que lhe ficava pela cintura e uma cara suja pelo pó, vinha descalça e com a roupa feita em farrapos. Compadecida pelo estado em que a encontrara e julgando que a rapariga poderia ter sede, logo a sentou à mesa e lhe acudiu com um pouco de água e pão acabado de fazer. Quando lhe perguntou pelo modesto nome a rapariga respondeu que era uma vizinha. Sem saber o que dizer, visto que nunca na vida Bárbara tinha visto tal pessoa, a dona da casa imaginou que a moça pudesse ter um passado difícil e como houvesse pudor por haver homens pela hora do jantar, caridosamente lhe ofereceu uma muda de roupa.
Como a moça parecesse tão quieta, logo se deixou empregar na nobre arte da confeição, quedando perto de uma janelinha que mirava para os campos. Bárbara, como não visse a sua nova companheira falar, convenceu-se de que poderia não se sentir à vontade, tendo a desconhecida como boa católica tomou como bom tema de conversa a bondade infinita de Jesus Cristo que, na sua compaixão, perdoara todos os que o ofenderam; tanto lhe falara dos milagres que fazem parte do cânone como de lendas que dos mais velhos ouvira. Mas a pequena, embora mostrasse um inocente sorrisinho de ouvir falar das proezas do Salvador continuava pondo a mira nos campos que se iam deixando, pachorrentamente, arrastar. Notando o olhar curioso, Bárbara perguntou-lhe se queria fazer um raminho, e a moça, acenando com a cabeça saiu agilmente.
Veio a hora do jantar e a moça não aparecia. Bárbara ia perguntando a quem chegava se não vira a rapariga de cabelinho preto que andava a fazer um raminho por ali, mas ninguém a tinha visto. Chegando todos os convidados, José queria saber da razão de se deixar arrefecer a comida se não havia mais ninguém, e como Bárbara não conseguisse encontrar motivo que lhe parecesse capaz, deram inicio a uma jantarada que só pelas quatro se conseguiu terminar. Como a mente de Bárbara não estivesse em descanso, escusou-se para percorrer a campina. Andou durante meia hora até que, na volta para casa reparou que se assomavam à entrada principal os cabelinhos negros da “Vizinha”, que se quedava mirando a estrada que ia na direção do Vale da Figueira. Correndo, logo lhe pôs a mão no ombro e numa voz carinhosa lhe falou na comida que ainda havia sobrado, mas a moça, empunhando um pueril ramalhete que, estranhamente, não cumpria os preceitos da festa da Espiga disse que esperava um vizinho que estava mesmo a chegar… E tanto estava mesmo a chegar que já aparecia no horizonte, aproximando-se vagarosamente, todo ele em farrapos.
– É o Vizinho. – Tornou a rapariga, que ao segurar a mão de Bárbara, as ia despojando de todo o calor. Estava desprovida de calor.
Quando chega o Vizinho, homem e mulher abraçam-se com ternura, sendo-lhe de seguida oferecido o ramalhete. O homem cheira-o amorosamente e logo a seguir lhe diz emocionado:
– Amável Senhora, pode rezar connosco a Nosso Senhor? Que há muito não nos encontrávamos!? –
– Oremos a Deus! – Torna a rapariga
Bárbara responde baixando a cara e junto dos dois desconhecidos, que conhecia na Santa Fé, começa a rezar como o Senhor tinha ensinado a seus discípulos. Ao terminar levanta a cara para ver que entre lágrimas de felicidade, os lábios do esfarrapado consumiam os da rapariga de cabelo longo. E como se levantasse uma rajada de vento e com ele parecesse ecoar a palavra ‘Obrigado’, o homem e a mulher haviam desaparecido, deixando para trás o pueril raminho, de tantas flores que há no mundo, nenhuma era a da Espiga, e nunca até então se havia visto tanta Margarida junta…
Há quem diga que os dois amantes finalmente encontraram descanso nos braços de Jesus Cristo, estranhamente ninguém diz o mesmo de um velho cujo desfigurado corpo foi encontrado ‘naquele lugarejo’ junto a um lago. Há quem diga que fugia à Justiça dos Homens, e a que Deus permitiu o escape. Alegadamente, José terá voltado ao mesmo lugar pelo último dia de Inverno, mas a ermida já não existia… Como, entre tantos relatos de extraordinária proeza, um homem fica sem saber o que pensar, deixo ao amável leitor a discussão deste estranho caso.