Estação de Arroios, Gonçalo Oliveira

Texto de Gonçalo Oliveira. Revisão de Lourenço Duarte. Fotografia: Catarina Oliveira.

ESTAÇÃO DE ARROIOS

​Há uma melancolia interminável por aqui.

​O mundo toma-nos por assalto. Claro que toma – é sempre assim que funciona. Resta-nos aquilo que a nossa família viveu, como nossa defesa. Mas nada há sem sacrifício: pela defesa que adquirimos recebemos, através da genética, aquilo que de mal correu. E o problema é sempre o sacrifício que não escolhemos.

​Da infância nada dito. Boas notas para um lado, prostração para o outro. Um futuro prometido por um passado quebrado – essa velha equação. E tentei segui-la, tentei mesmo, mas não dei para matemático. Entretanto cresci num corpo jovem à moda antiga. Com uma cabeça que cada vez mais parece ter vontade de se refastelar numa poltrona com um gato na barriga a ver o Preço Certo. Sempre gostei mais de cães; mas a imagem já é velha e cão velho não aprende novos truques. E lá se chegam alguns momentos importantes com um corpo deprimido e sem saber como arrancar a variável à equação. Já disse que não dei para matemático, mas ninguém me queria ouvir na altura e poucos me ouvem agora. De todo o modo, estou grato.

​Um corpo; uma cabeça; tempos traumatizados; e uma genética tramada. Voltemos à equação.

​Coisa engraçada, regra geral não se costuma ouvir falar mal das capitais ocidentais. É sempre o elogio à luminosidade – ou ao ilusionismo. Fala-se muito das capitais. Somos, afinal, o temporal rodeado pelo intemporal. O que somos nós comparados com a Avenida da Liberdade? Mas Lisboa padece de uma tristeza que apesar de ter um fundo visível, parece interminável. “Não há balde grande o suficiente para dar à pá a tanta merda”. Imagino que algum avô provinciano tenha dito algo semelhante nalgum outro livro. Não importa, não foi o meu. Tão pouco ouvi seja quem for a dizer essa frase. Só sei, por memória genética, que trabalhamos com o que não temos ou que nos afogamos no vinho. O debate filosófico de sempre, quando lhe retiramos os nomes elegantes, mostra-se uma luta feia. E esta não é uma luta de palavras, é uma luta por vida. Ou seja, não presto para a lutar. Uma vez mais, a melancolia.

​Ela existe, e existirá sempre nesta cidade. Porque provavelmente sempre existiu. Estamos ainda a livrar-nos da Peste do cerco de 1385, e más notícias, ainda vem aí a perda da liberdade, mais uma coisa a superar. Não que a tenhamos recuperado, de qualquer dos modos.

​Lisboa sofre de uma tristeza. Não sabemos lidar com os infortúnios e por isso tornamo-los parte de nós. As muralhas e o rio servem de contenção e de guardas solenes. Talvez haja esperança nas outras cidades. Talvez haja esperança no campo. Sei que a esperança existe aqui também, mas somos uma profecia que se realiza a si própria. A depressão da minha avó tornou-se na minha, por intermédio da minha mãe; e esta fortaleceu-se e cimentou-se no solo fértil do fingimento do meu pai. E todos têm esperança em mim, ou esperança para mim, não sei distinguir.

​O que é verdade para mim é-o também para as outras pessoas desta cidade: o amor das nossas mães desce-nos das suas mamas pelas nossas gargantas abertas e sôfregas através de um filtro oblíquo de tristeza, de saudade. Não o desespero. Isso leva a heroísmo, leva a que as coisas sejam feitas. Apenas a saudade, um esperar eterno por algo que não chega. O raio da saudade…. Tenho-a desde sempre comigo, mesmo quando não tinha ninguém de quem sentir a falta. Empasta-se-me nas roupas como a neblina que se ergue do Tejo à madrugada, e é-me mais sufocante que nadar no próprio. Coitados dos peixes, primeiro sermões e depois destruição química. Simplesmente o desconforto, a melancolia. A espera. Está presente até nos risos. Povo triste. Reforjado, talvez. Mas triste. Quebrado. Fomos postos a arranjar, mas o arranjo nunca acaba. Vai-se andando.

​Então caminho, a dar expressão física a um cérebro que, como a Avenida, está em constante movimento, parando uma vez por outra para que se realize uma maratona. Mas ainda não me decidi a correr. Talvez um dia. O problema não é a cidade em si. Penso nisto cada vez que caminho, o problema não é a cidade em si. Há luz que baste por estes lados, nem em Alfama a luz é impedida. A cidade é solene. É respeitável – seja lá qual for o verdadeiro significado da palavra. Já tem idade suficiente para não se fingir ser algo de diferente. Lisboa é. Lisboa é. Mas os meus passos ecoam na Avenida deserta e não há ninguém no mundo que me retire este eco. Quanto mais físico, mais metafísico. Estupidez pegada. Não sei ser sem considerar. É tudo símbolo do antigo, mesmo os de Orpheu nasceram amaldiçoados com uma tristeza que os precedia. E sobre essa há muito que se quer dizer sem que se diga nada. Há uma ação, que quase todos tomaram em diferentes intensidades. Mas não há nenhuma verdade que tenha sido até agora realmente dita. E nós aqui nos quedamos, vendo o mar, esperando…
Ainda não vejo o mar, mas já não falta muito. Passam barcos, volantes lancinantes cuja fúria reside agora na falta de som estridente. Como é que chegámos aqui? Será que foi sequer uma viagem, ou apenas a ilusão de uma?

*

​Os candeeiros no nevoeiro não são nada que não pinos dos quais nos desviarmos. Lisboa afogada em vapor de água. O Rossio corre-me pelos olhos e a tabacaria está fechada. Se calhar corro. A calçada da praça está desenhada para ser uma ilusão de ótica: quando atravessada a velocidade suficiente, os desenhos nas pedras animam-se e tornam-se ondas rolantes, sorridentes, sorridentes como a pedra nos sorri. Mais onda menos onda, qual a diferença. Anda-se. Se se correr, a humidade torna-se em chuva. Já estou empapado, é quanto baste.

​Mitos são mitos, sempre o foram e acho que nunca se imaginou que realmente se concretizassem – serviam de mentira branca, na qual nem nós próprios acreditamos (não realmente) para ter uma esperança que nos preenchesse o buraco do desespero. Livrem-nos do desespero, que com ele se calhar ainda se faz alguma coisa, e fazer alguma coisa é perigoso. Andamos. Andamos, não corremos. Eventualmente chegaremos a algum lado, mas será que teremos corpo quando lá chegarmos? Não estará já demasiado fustigado para ser útil?

​A verdade não se cinge ao facto, é também a forma. Para ignorar o facto, favorece-se a forma. Se a forma for sofisticada o suficiente, pode ser, só talvez, que o facto se esmoreça. E, com factos envoltos em neblina, façam-se preces por uma aurora que, ao queimar a neblina, queime também o objeto. Mas se nós conjuramos a neblina…. Muitas palavras e nada. O que são estas palavras face ao Tejo que espreita (ou que eu imagino espreitar) ao fundo da Rua Áurea, aguardando mais algum sal para transportar ao mar? Ele olha-nos sem piedade, e porque a teria, se já a temos toda? A direção é secundária, o que importa é que a temos toda. Se eu continuar a andar em frente, será que romperei o círculo? Se se romperam as muralhas…. Mas calma, não só as romperam – eventualmente também eu as deitei abaixo. Porque somos a memória, não somos? Sou o pedreiro a cumprir ordens. Provavelmente sou ainda esse mesmo pedreiro a cumprir ordens, as ordens de um passado, presente porque nunca foi largado. E ando. E o comércio espera por abrir, mas eu peço apenas mais um pouco, o negócio não perderá por uns minutos de certeza, o nevoeiro ainda nem sequer levantou, calma, calma. Atrás de mim vem uma multidão, tudo à espera do seu sexto café da noite, vertido pela minha garganta, alimentando a insónia que me persegue há já uma centena de anos desde que assustaram tanto uma pequena com as revoluções intermináveis dos governos provisionais – que o são todos, em verdade – que ela deixou de dormir. Não preciso de olhar para trás, estão sempre aqui, aconchegam em mim a tristeza que neles aconchegaram. E esperam que eu me livre, livrando-os, dela.

​O empedrado foi posto pelo meu colega, mas eu confio no seu trabalho. De todo o modo, não estou aqui para o deitar abaixo. A velha equação. Se se correr a humidade torna-se em chuva.