Texto e fotografias de Magda Estevez. Revisão de João N.S. Almeida.
Outrora havia sido, isto onde hoje me sento diariamente a ver a vida a passar, o muro que guardava a água da fonte da cidade. Antes, quando a fonte ainda era uma fonte e a cidade ainda era uma cidade, eu tinha cabelo preto e vestia-me sempre a rigor – rigor, no sentido de aquilo que considerava como tal –, e tão bem conjugava eu a camisa com as calças que ela me dizia sempre Que guapo, Álbaro – Álvaro com b porque a fui desencantar a Espanha. Eu derretia ao ouvir aquelas palavras e dava-lhe um beijo e um abraço e saía e passava pela fonte, sem olhar para a forma como a água corria.
Naquela cidade, vivemos momentos muito felizes, eu e ela. ¡Mira, cariño!, disse-me ela numa tarde de inverno – na qual eu estava cheio de frio porque a camisa que tinha escolhido era demasiado fria e eu não tivera paciência para a trocar –, apontando para a fonte – a fonte da cidade –, como se fosse a coisa mais bela que a sua vista lhe proporcionara até então. E eu mirei. Mirei aquela fonte que nunca me parecera mais do que uma mera trivialidade daquela praça, algo que estava ali e que, de certeza, estaria escarrapachado em mais tantas cidades e praças às quais eu já tinha e não tinha ido, e tinha e não tinha reparado. Uma banalidade. Era superficial.
Os anos foram passando, mas as coisas mantiveram-se: eu continuava a vestir-me a rigor e ela dizia-me que eu estava guapo e eu dava-lhe um beijo e um abraço e saía e passava pela fonte – porém, agora, olhando para ela sempre com a sensação de estar a viver o dia em que reparei naquela água corrente pela primeira vez.
Um dia, e outro, e mais outro.

Te quiero, corazón, dizia-me ela, todas as noites, antes de nos virarmos para o mesmo lado da cama e, com o meu braço a pousar suavemente na sua cintura, adormecermos, aguardando o amanhã – que seria igual e ao hoje e ao ontem mas, pelo menos, tínhamo-nos um ao outro. E isto porque mal imaginávamos que, dali a pouco tempo, as horas e minutos que julgávamos ainda ter iriam fugir e, dali a nada, já só teríamos os míseros segundos do Adiós e tudo continuava a ser banal.
Não demos conta e ela nunca vai saber, mas sucumbimos à senilidade e a fonte ficou sem água e a cidade deixou de ser cidade e eu deixei de ter cabelo e muito menos ele seria preto. Não me visto mais a rigor, nem ela me presenteia mais com os seus versos espanhóis. Já não ouço nada, porque já não tenho a sua voz para me confortar os ouvidos e já não vejo nada, porque a fonte que ela me mostrou já não existe – sobra, apenas, o muro à volta, onde agora me sento sem perceber que, aos poucos, desvaneço.
Se eu soubesse, ter-me-ia afogado na fonte, vestido a rigor e com cabelo. Morto nela. Morto no coração.
