Brancos também sofrem racismo (?), Victor Hugo Nicéas

Texto de Victor Hugo Nicéas. Revisão de João N. S. Almeida. Imagem: https://pxhere.com.

Este texto deveria ser exordiado com uma piada, mas tal ato de desespero ganhou maior proporção e, ao invés de iniciar o texto, a mesma fora posta como título, título este que se faz tão esdrúxulo e inverosímil. Frases como esta já foram ditas várias vezes e sempre que tais sons ousam tocar meus ouvidos, admito, recolho-me à insignificância. Parece uma ação medrosa, mas levantar a voz contra quem é capaz de crer e utilizar dizeres como este, é o mesmo que transformar a mão em água a chocá-la contra pedras, estarei a agredir a minha própria pseudo intelectualidade. Não, nem sempre vale a pena sofrer assim. Pondo de lado tal brincadeira, mas não retirando-a da escrita, gostava de, brevemente, introduzi-los à figura tão famosa do racismo.
 
Sabe-se bem que o racismo, assim como qualquer outra palavra, não é um mero dizer dotado de um único conceito, mas possui inúmeros significantes, no qual podem ser encontrados socialmente através de diversas formas, a mais óbvia delas se apresenta de forma direta e escancarada; porém também o encontramos estruturalmente na sociedade, ou através de “piadas”, ou dentre outras formas. Não quero aqui furtar o lugar de fala de quem realmente entende do assunto e por isto não me aprofundarei nestes conceitos de forma mais alargada. Porém, inquieta-me ver falácias que se amparam em argumentos de necessidade de oposição para se justificar, sem realmente terem plausibilidade empírica para existir. Utilizam-se de uma lógica silogística para mostrar ao mundo que o sofrimento proporcionado pelo racismo é sentido em mesma medida por todos. Rá! – perdão, escapou-me o riso pelo canto dos dedos.

Muito do preconceito racial existente surgiu devido aos sistemas escravocratas que sempre imperaram pelo mundo e às diferenças culturais e civilizacionais que permitiam que determinados povos, tecnologicamente avançados em relação a outros, os subjugassem, entre outros factores. Assim, homens foram escravizados por milénios, sem ser a sua cor da pele um fator de importância. Eram povos conquistados que acabavam por se tornar, no mínimo, mão de obra barata. Até hoje povos são lembrados desse seu passado, basta analisar a história egípcia, grega, romana ou até mesmo os países do leste, chamados de “eslavos”. Isto apenas demonstra que, nestes exemplos ou em tantos outros, a escravidão sempre existiu e nunca foi exclusiva de um povo único ou de uma raça, mas e os negros? O que a história fez para que a cor de suas peles fossem um motivo de preconceito e pré-julgamentos até a atualidade?

Olhamos para o nosso mundo e vemos este parque humano completamente claro, sendo os negros os que vivem, em grande maioria, em zonas periféricas. Em uma linha temporal imaginativa, embora a escravatura já existisse dentro do continente africano, os povos pretos foram um dos “últimos” a serem escravizados pelo mundo ocidental, possuindo seus relatos de sofrimento e destruição mais próximos e vivos a nós do que outros e, diferentemente do ocorrido com outros povos, a sua pele acabou por se tornar o marco de “característica” para identificação de um escravo, de um animal irracional. Em Portugal, a escravatura, conforme pensado em senso comum, existiu até metade do século XIX, sendo abolida devido a pressão britânica. Não muito longe, em sua “recente” ex-colônia, o Brasil, a escravidão existiu até o final desse mesmo século, há apenas 133 anos, um passado não distante que, após a inexistência fincada, possibilitou aos negros viverem em paz com a sociedade, com respeito e aceitação quase que total. Claro, talvez um ou outro tenha continuado a ser mero serviçal, talvez um ou outro não fosse enxergado com dignidade, talvez um ou outro tenha ido viver em lugares não habitados e acabaram por iniciar muitas das favelas ou bairros pobres que hoje existem e que continuam a possuir maioria populacional afro-descendente, mas isto é só um detalhe (não?); talvez exista uma ou outra pessoa intolerante assim, mas não todo o mundo… Não? Sarcasmos a parte, quando se faz uma busca, não muito aprofundada, por países que tenham um largo contributo histórico na aniquilação da população e cultura africana e busca-se encontrar população preta a viver majoritariamente em bairros não periféricos ou ao menos em “bons” bairros de classe média, quase nada é enxergado, sim, “quase”. Talvez esta cegueira seja a mesma que contamina os pássaros que repetem a frase-titulo, cuspindo-a como verdade inteligente.

O racismo que se iniciou exclusivamente pelo tom da pele hoje se demonstra também como uma questão sócio-económica, tornou-se a força motriz pelo qual a estrutura atual tenha sua origem remontada em um preconceito teoricamente esquecido. É esta estrutura que rebaixa o homem a condições sádicas. Apenas o seu mero nascimento já acaba por ser dotado de um peso injusto em quase todos os países do mundo. E não é que não existam pretos em boas condições económicas, ou brancos em situações precárias, mas sim que estes são minorias numéricas face a maioria branca dominante e a maioria preta paupérrima espalhadas através do globo.
 
Admito, talvez brancos possam, por ventura, sofrer algum pré-julgamento devido às consequências do que povos brancos antigos fizeram, arca-se com a construção histórica sobre o qual foi imposta e por isto tal julgamento é sentido, algo que, honestamente, não chegará aos pés do peso acumulado que o racismo possui. Alguns chegam a questionar a justiça disto ao alegar que o que aconteceu no passado não foi culpa de quem vive hoje. Claro, isto é óbvio, mas o que aconteceu neste passado onde ninguém mais vive é o que possui responsabilidade direta com a estrutura socio-económica de quase todos os países do mundo, responsabilidade esta que incide sobre muitas famílias negras que vivem na miséria de hoje devido a animalização do seu passado. Dizer isto não significa afirmar que, na época, sem a interferência europeia, far-se-ia existente uma próspera união dos povos no continente africano, como se nada de ruim já não existisse lá, todavia o que também não se deve fazer é cogitar o futuro de um passado inexistente, mas sim analisar o que existiu em realidade.

Não quero aqui tecer verdades pautadas em argumentações políticas, mesmo que este seja, sim, um assunto político, mas apenas refletir de forma muito singela sobre o papel da humanidade a nível coletivo. De muito se falou em justiça através da história, mas sempre a injustiça parece se fincar como preponderante. Por isto alguém deve tomar as rédeas desta carruagem e fazer por onde diminuir esta segregação, tanto os próprios povos oprimidos rasgarem verbos por uma justiça social, como também os herdeiros da parte vencedora da história, daqueles que narram a falsa verdade que acreditamos, não usurpando a fala de quem precisa de voz, não agindo com mera caridade de ser superior, mas a reconhecer o próprio silêncio como comportamento de estudo e possibilitando espaço para o mudo falar.
É fácil pensarmos de forma romântica sobre o passado ou na existência de uma memória coletiva; olhamos para trás, em nossas cadeiras acolchoadas e dizermos que tudo passou, que nada é como antes. Difícil mesmo é lembrarmos que esta memória antiga também possui o peso da negatividade em seu conteúdo, peso este que aproveita da ciclicidade histórica para existir até aos dias atuais e proporcionar com que os herdeiros de uma podre parte antiga sintam a força da seleção natural das coisas. Sinto-me como um próprio darwinista social ao dizer estas palavras, mas, sem dúvida, a história seleciona os mais adaptáveis, ou melhor dizendo, os que possuem maior poder para se adaptar.