Asas de Pirata, António Melo

Texto de António Melo. Revisão de João Freitas Mendes. Imagem: unsplash.com.

ASAS DE PIRATA

Chovia.
Chovia como raramente chove.
Chovia como quando as pessoas saem à rua só para ver chover. O passeio transbordava até à estrada, as poças alegres estendiam-se aleatoriamente e a esplanada do café desertificava-se perante a enchente. Cada um, a seu tempo, escolhia abandonar o triste dia e refugiar-se. O temporal miava umas gotas sobre as janelas e telheiros que, finalmente, caíam sobre as vestes do capitão. Capitão autoproclamado, bem se veja, que a si incutia títulos de prestígio, mas de graça se fazia, ele! Perscrutava naquele instante o horizonte, suspirando docilmente de guarda-chuva em riste, inflava o seu frágil e portentoso navio de borracha, até que se aproximou um grumete:

– O que faz hoje, meu amigo?
– Ora, meu caro, hoje, que chove, não me abrigo! Quer troveje, quer o céu deslize!
– Ah, mas que crise! E porque faz isso consigo? Que deus lhe inflama essa certeza?
– Todos! Mas não pense que é moleza! Nunca me deixei molhar!
– E a teimosia, não há de bastar? Já reis morreram por menos!
– Tanto cuidado, mas somos pequenos! Onde já se viu sobreviver?
– Veja como fala, não vá a sorte tecê-lo! O tempo tem tanta ilustração!
– Escondida na imprecisão! O que há de vir não sei, mas hoje sou na chuva, como poeta perdido!
– Oh, louco aparecido! A vida aí anda para rimar com calma…
– E de quantas rimas é feita a alma? Não me convence, é insuficiente!
– E consciente? Não acorde agora que cambaleia!
– Nunca, não serei gente! Ora venha, que o barco lhe assenta! Mas agora, que o tempo não cessa…
– Mas onde vou com tanta pressa? Se me constipo, quem trabalha?
– E quem lhe ralha? A alma não bebe dessas trincas da boca! Venha que o barco afunda!
– E para onde vamos? Não me confunda… Olhe que o horizonte se escapa!
– Partamos, para a noite, à socapa! Venha que tem olhos azuis! O que esperais, vós, mais?
– Olhe que dois anormais! Um que canta, outro que ouve!
– É bom que o louve, não sou eterno! Ora embarque-se que é hora e o meu amigo cabe neste guarda-chuva!
– Carregue-se o sumo de uva. Pois havemos de ir e vamos!
– Argh! Pirata de poucos anos! Que bom vento para chegar ao infinito!