Texto do Prof. Doutor Pedro Zuzarte, médico psiquiatra, Professor Auxiliar da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Revisão de Miguel Ribeiro. Imagem: PxHere.
Pandemia é, no sentido etimológico, algo que pertence a todo o povo (deriva do grego pan; todo e demos; povo). É um conceito habitualmente atribuído a uma doença infeciosa que se espalha de uma região para todo o mundo. No sentido figurativo, contudo, pandemia também pode corresponder a uma enfermidade que está espalhada por todo o mundo, mesmo que não de origem infecciosa.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) actualmente existem no mundo mais de 264 milhões de pessoas com Depressão clínica. Anualmente morrem mais de 800.000 pessoas por suicídio atribuído à Depressão. Isto equivale a uma pessoa que se suicida a cada 40 segundos! No contexto da pandemia Covid-19 que estamos a viver, estes números podem ajudar-nos a perceber a grande prevalência e impacto deste problema na nossa sociedade moderna.
A OMS estima que, entre o presente ano e o ano de 2025, a Depressão clínica seja a patologia que mais contribuirá para a incapacidade global de um indivíduo, segundo o cálculo do número de anos de vida perdidos por morte prematura (YLL) conjugada ao número de anos vividos com uma incapacidade (YLD): os anos de vida perdidos por uma incapacidade ou doença (DALY=YLL+YLD). A existência de Depressão representa numa pessoa, portanto, o problema da saúde que provavelmente conduzirá a um maior prejuízo na vida dessa pessoa – com perda de qualidade de vida, diminuição da esperança média de vida, e toda a repercussão negativa do ponto de vista pessoal, social, profissional e familiar que causa pelo caminho.
Perante esta evidência bem estudada e documentada, continua a ser um infeliz paradoxo a pouca atenção que ainda se presta a este facto.
Podemos entender esta negligência de vários pontos de vista. Até um passado recente existia a ideia de que a Depressão era uma patologia “funcional”, ou seja, que seria um síndrome (conjunto de sintomas) que se instalava na vida de um indivíduo mas que não possuía origens e/ou repercussões objetivas ponto de vista orgânico. Esta perspetiva limitada constitui em si mesma uma contradição, dadas todas as repercussões concretas e conhecidas da Depressão nas múltiplas esferas de vida acima referidas, inclusive ser um fator independente para o encurtamento do número de anos que se vive. No entanto, para um paradigma científico (e social) que tem por hábito valorizar mais o que é visível e mensurável, e num sistema clínico crescentemente assente na dependência de exames complementares diagnóstico, marcadores e análises clínicas entende-se (parcialmente) a razão pelo qual a Depressão, estritamente diagnosticada por sintomas psicológicos e comportamentais, tem vindo a ser relegada para um patamar secundário.
Atualmente este problema está, felizmente, a ter maior destaque do ponto de vista social e a ser encarado de forma mais séria dentro do meio médico. Adicionalmente, dados respeitantes ao impacto económico da Depressão, sobretudo nas sociedades mais desenvolvidas, captaram a atenção política e aceleraram medidas em prol da saúde mental.
A informação que a Depressão é uma perturbação psiquiátrica com uma esfera de ação (e repercussão) limitada ao aspeto psicológico e comportamental pertence a uma ideia do passado. A educação médica para este facto é essencial. Especialmente nos profissionais de saúde que não lidam diretamente com a saúde mental, sobre pena de se continuar a negligenciar esta perturbação do humor e as suas múltiplas consequências. Nas últimas décadas o entendimento biológico da depressão mudou significativamente. Existe uma crescente evidência de múltiplas disrupções que ocorrem no corpo com a instalação de uma Depressão clínica. Contrariamente a um modelo (já ultrapassado) que do ponto de vista orgânico a Depressão apenas equivalia a uma falta de neurotransmissão (serotoninérgica, dopaminérgica ou noradrenérgica) sabe-se hoje que o organismo onde se instala um síndrome depressivo apresenta um vasto conjunto de alterações moleculares e mecanismos lesivos, muito além da falta de neurotransmissores. Por exemplo: como consequência de uma Depressão há um aumento de inflamação cerebral (chamada neuroinflamação) mas também se verifica um aumento de marcadores de inflamação periférica, que contribuem para a lesão de outros órgãos no corpo. Verifica-se paralelamente um aumento sinérgico do mecanismo de stress oxidativo, lesivo para as células, incluindo neurónios. Ocorrem outras alterações mensuráveis: uma disrupção na libertação de cortisol, alterações no eixo hipotálamo-pituitária-adrenal, alterações no microbioma intestinal e, inclusive, morfológicas no cérebro derivadas da Depressão – como por exemplo uma diminuição de volume em áreas do cérebro como o hipocampo quando se verifica stress crónico e sintomas depressivos numa pessoa.
Outro contributo para se estar a encarar o problema da Depressão com maior seriedade deriva de avanços da investigação. É crescente a publicação de evidências das repercussões fisiopatológicas (orgânicas) que surgem com quadros depressivos.
Toda esta evidência representa uma mudança de paradigma para a especialidade Psiquiatria, que era até recentemente encarada como uma especialidade de patologias ditas “funcionais”, ou seja, que não alterariam o órgão mas apenas as funções. Os fatores psicológicos e relacionais vão continuar a ter uma importância central (não sendo ousado dizer que constituirão sempre o cerne da especialidade da Psiquiatria). Contudo, a Psiquiatria tem de deixar de ser encarada como uma especialidade sem repercussões orgânicas. Um dia provavelmente teremos ao nosso dispor ressonâncias magnéticas e avaliações analíticas moleculares que ajudem no diagnóstico (e estadiamento) das doenças psiquiátricas, incluindo a Depressão.
Contrariamente a um medo de que esta forma de abordar os quadros psiquiátricos possa mudar a identidade da especialidade, a perspetiva mais construtiva é de que este conhecimento e futuros auxiliares ao diagnóstico, estadiamento e resposta ao tratamento das patologias psiquiátricas possam trazer uma maior validação e uma maior consciência da importância que se deve dar à saúde mental. Estas evidências contribuem para a consolidação de que a Depressão é um problema concreto, extremamente relevante e que não pode ser ignorado. Pode resumir-se esta problemática a uma questão de sensibilidade e educação: sensibilidade para o impacto do grande problema sanitário do século XXI que é a Depressão, e educação porque deve ficar para trás a ideia ultrapassada de que este é um problema que não afeta o organismo fisicamente. É um problema bio-psico-social extremamente importante, representando uma das patologias que mais contribui actualmente para a incapacidade na vida de um indivíduo e para o qual temos de passar a dar a devida atenção, promovendo o seu tratamento adequado.
Nota: Actualizado às 9h56 de 16 de Fevereiro de 2021.