Dossier: Confinamento

Textos de Victor Hugo Nicéas, Sidney Nicéas, Julia Saad, Joana Rebocho, João Peixoto, Maria Rosário Rebordão, João Gonçalves, João Freitas Mendes. Curadoria de Joana Rebocho. Revisão de João N.S. Almeida.

Primavera

Isto traz de volta
O que nem sabia ter perdido.
Ainda vejo,
Por entre sombras e poeiras
Alegria de outrora,
D’outra era.
Ainda vejo
Vultos sem detalhes,
Vejo garotas sorridentes a brincar,
Vejo alegria a afastar o caos,
Vejo beleza das noites face aos dias.
Vejo pó.
Hoje tudo parece triste,
Cansado e velho,
As paredes vibram sem sorriso,
As luzes iluminam vazios,
Os cães já não ladram…
Aqui eu já vivi,
Aqui habitei,
Aqui ainda habito.
Por entre memórias antigas
E calmos sorrisos,
Eu penso,
Eu imagino.

Victor Hugo Niceas


Que As Crianças Cantem Livres

Vivemos tempos de perdas – você sabe, acho que a essa altura todos vimos algum conhecido morrer com esse vírus danado. Tempos de… perda? O que se perde ao deixar um mundo como esse? Se viemos de um ignorado (?) infinito, é pra lá que voltamos (não?). Assim, quem perde quando o outro apenas vai antes? Não quero ser filosófico, mas como falar disso sem mergulhar no abismo do que não compreendemos?
O tempo passa e atravessa as avenidas,
E o fruto cresce, pesa, enverga o velho pé
E o vento forte quebra as telhas e vidraças
E o livro sábio deixa em branco o que não é.
Não consigo tirar a música de Taiguarara da cabeça, já que nasci envelhecendo e fadado a morrer. Minha amiga Sibely que o diga, perdeu um dos filhos para o suicídio há quatro anos, perdeu o adolescente que não queria mais viver aqui (perdeu?). Ela, que agora luta para salvar seu primeiro netinho que nasceu com problemas e está numa UTI Neonatal: Joaquim nasceu no mesmo dia em que Luan morreu – imagina se o pequeno não sobrevive? Como Sibely lidará com mais uma “perda”? Quererá também se ir? Eu sei, este é um mundo de perdas, mas o que se perde ao partir daqui?
Pode não ser essa mulher o que te falta
Pode não ser esse calor o que faz mal
Pode não ser essa gravata o que sufoca
Ou essa falta de dinheiro que é fatal.
Sim, há mil incômodos entre o chegar e o partir. O tempo nos subtrai o tempo todo, mas preferimos acreditar em pseudo adições. Só percebendo os antagonismos estranhos daqui é que vamos tendo noção do que mais importa, no fim das contas, que é multiplicar.
Vê como o fogo brando funde um ferro duro
Vê como o asfalto é teu jardim se você crer
Que há um sol nascente avermelhando o céu escuro
Chamando os homens pro seu tempo de viver.
Numa semana em que dois amigos me ensinaram tais antagonismos – um se curou do Coronavírus no mesmo dia em que o outro faleceu por conta desse mesmo mal –, prefiro me ater aos versos esperançosos de Taiguara, nutridos de uma esperança sem espera, que se finca na beleza como antídoto contra nós mesmos. Penso em John recuperado, Ailton ido (e seus familiares se consumindo na dura sensação de perda), Joaquim no meio-termo; penso na minha filhinha sem a menor noção do que é viver (e morrer) aqui e anseio por pensamentos libertários. Somente olhando pra vida com seu início-meio-fim como libertação (meio clichê, tá), talvez só assim, eu e você, possamos atravessar esse vão com sensação diferente dessa de perda, enxergando o amanhã com outras conotações. Talvez.
E que as crianças cantem livres sobre os muros
E ensinem em sonho ao que não pode amar sem dor
E que o passado abra os presentes pro futuro
Que não dormiu e preparou…
O amanhecer
O amanhecer
O amanhecer…

Sidney Nicéas


agora, humana

“acorda, tá na hora” “pode mais 5 minutos?” 5:40. Escova o dente, toma banho e café. 6:30. Merda tô atrasada. Pensar que vou perder o primeiro tempo de aula. Mas será que é assim tão importante? Chegar na escola. Tirar a bombinha de asma da bolsa. Claro, chegamos à risca. Corri muito e advinha? asma. Aula aula aula aula aula. Não esquecer de sempre falar alemão. Peraí, é der, dem ou den? Almoçar. Odeio comer na escola. “como foi meu fim de semana? estudo, só “. Aula Aula Aula. Participar porque conta pro Abitur. 17:30, chegar em casa. Descansar? Não tem tempo, 17:30 eu tenho aula particular. Estudar mais mais e mais. Agora lembrei, era den. 18:30. Preciso botar a roupa rápido. Personal às 19:00. Não tenho tempo pra lanchar. 20:00. Cansada, malhei muito. Tomar banho rápido, jantar rápido para as 21:00 estudar. Comi salada. Minha avó fez macarrão. Será que ela não sabe que eu estou fazendo Keto Diet? Minha mãe diz que eu devia fazer a unha. Será que ela não vê que eu estou correndo contra o tempo? não tenho tempo pra unhas. Meu pai me pergunta se eu consegui ver sei lá o quê pra ele, que vontade de mandar todo mundo pra puta que pariu. Minha blusa. Minha irmã está com a minha blusa. odeio ela. pega as coisas. Será que ela não vê que eu já tenho estresse demais? Será que eu passei sabonete? Sem tempo pra isso. 21, tenho que estudar. Estudar estudar estudar. Eish, já são 23:00, melhor dormir pra eu ter no mínimo 6 horas de sono. Deito na cama e penso… como eu queria um tempo pra respirar….. pensar…. sentir

3 anos depois…

Covid. Mortes. Desespero. Voltar de Portugal. Merda eu sou só grupo de risco. Vou usar 2 máscaras? Mas funciona? sei lá me sinto melhor. Ah ok. Pai 3 meses? 3 meses em itaipava? Nem tenho roupa. Roupa? Pra quê? só preciso de moletom. Ai é não pode sair. Mas pra nada? Pra nada. Nadinha mesmo? nadinha mesmo. então tá. 18:00 fim. E agora? o que eu faço ? respiro?? penso? sinto? Hoje é aniversário da minha tia-avó. Sinto Saudades. Ela me liga, eu nunca atendo. Não é por mal. Só não tenho tempo. Quanto tempo não falo com ela? Nossa, as cores do meu quarto não combinam entre si, como eu não percebi isso antes. 8????? 8???? meu cachorro tem 8 anos. Que é isso, gente. Tem algo errado. Nossa, que quadro lindo na sala, nunca tinha reparado. Caramba aquela menina que fazia cursinho me mandou mensagem há um mês. não respondi. não falo com ela há anos. Vou entrar no instagram pra procurar. Que maximo ela é modelo agora. Tinder? sério? Não beijo alguém há meses. Me apaixonar? há anos. Meu ex. Como ele tá? o que ele cursa mesmo? tomara que ele não tenha pego covid. Saúde pra ele. Saúde, será que eu tenho saúde? vou fazer PCR só pra ter certeza. Sabe quem fez PCR, a bia, caramba a bia me pergunta todo dia como eu tô. Já lembrei de agradecer ela hoje? por ser uma ótima amiga? Saudades das minhas amigas. Já falei pra Fernanda que tô orgulhosa dela? Já falei pra latt que eu sempre lembro dela? Já falei pra mari que eu amo ela? Eu tenho amigas em Portugal. Verdade. Agora vivo lá. Nossa, tomara que eles estejam bem. Os casos só aumentam. Vou ligar pra alguém. Ninguém me atende. La é tarde. Esqueci. Almoço. Já lembrei de agradecer minha avó por sempre me fazer almoço? Almoço em família, tão bom. Conversamos. Escuto as reclamações da minha mãe e do meu pai e penso o quão sortuda eu sou. Nossa, eu tô usando a calça da minha irmã. Ela sorri. Eu amo ela. Lembrar de família me faz lembrar da minha avó. Minha falecida avó. Quanto tempo eu não penso nela. Será que ela tá bem onde quer que ela esteja? Sinto saudades dela. Merda. Tô chorando. Não paro de chorar. Por causa da avó? do covid? das amigas? Não sei nem se tem uma causa. Mas aquelas lágrimas me fazem rir. Rir muito. Lágrimas que me fazem dançar, lágrimas que fazem cosquinha na bochecha. Mas gente, essa felicidade porquê? Eu acabei de descobrir. Descobrir o quê? Na verdade relembrar. Do quê? de que eu sou humana.

Julia Saad


Chá preto

Hoje todas as danças foram interrompidas.
Não há música pela noite sem ser a que passa na telenovela, que é uma história que não existe.
Hoje só está o meu prato nesta mesa onde janto sozinha.
No final faço um chá. O chá é sempre o mesmo agora: chá preto.
Que eu nem gosto nada mas hoje bebo este chá porque é o que a minha avó bebe sempre, por isso beber este chá é estar à conversa com a minha avó nesta mesa onde só eu estou sentada.
Hoje quando for dormir sei que vou sonhar.
Hoje eu e o mundo inteiro estamos sozinhos mas encontramo-nos num sonho em que juntos dançamos ao som da mesma música.

Joana Rebocho


Vidas de plástico

Sempre fui fascinada por janelas.
O prédio da frente, visto à distância, é do tamanho de um prédio de brincar, visto de perto.
Aquelas vidas são vidas de plástico aos olhos de quem as vê através de uma janela.
A janela é a única coisa que permite àquelas vidas não sentirem pudor quando dançam sem jeito ou namoram à luz do candeeiro da sala.
A janela é a única coisa que permite quem olha não ter vergonha de olhar e permitir-se fazer julgamentos que na verdade são muito mais imaginação que preconceito.
Aquelas vidas só são de plástico enquanto houver uma janela a separá-las de quem as vê.

Joana Rebocho


E o que aprendemos nós com isto?

Já há algum tempo que ando a acumular uma serie de ideias sobre estes tempos mais inóspitos em que nos encontramos. Desde março que existe um novo normal, um normal que nos levou algum tempo a aceitar e a organizar, mas isso toda a gente sabe e, como não vim cá falar especificamente disso, vou prosseguir. Na verdade, venho apenas levantar algumas questões sobre o que aprendi (ou aprendemos) durante esta pandemia pela minha (des)interessante experiência.
Tudo começou na noite em que cheguei a casa e o esquentador se tinha avariado; depois de um belo banho de água fria e, claramente frustrado [um sentimento recorrente nestes últimos meses], sentei-me na cama a ler, ou pelo menos a tentar: Meditations de Marcus Aurelius que, na sua essência, fala de filosofia estóica […]. Tinha demasiadas coisas na cabeça: lia palavras, só e apenas palavras que, no final das contas, não me faziam sentido nenhum. Com toda a mixórdia desta ínfima sopa de letras dei por mim a remoer nos aspetos positivos desta once in a lifetime experience… espero eu.
A questão que começou por desencadear todo este meu esforço mental foi o autoconhecimento, e a procura do mesmo, claro. A falta da vida boémia e das tertúlias de sábado à noite causaram um grande buraco na minha agenda, que consequentemente foi, ao início, preenchida da forma mais supérflua e viciante possível – redes sociais e basicamente tudo o que me deixava agarrado durante horas sem sair do mesmo sítio. A desmotivação e a procrastinação consumiam-me […]. Com esta brincadeira, os meus ciclos de sono chegaram a dar uma volta antes de me aperceber do que estava a acontecer […]. Por agora prefiro não estender a história, até porque já deu para perceber o que estava a acontecer. Entretanto, numa conversa (claramente com o devido distanciamento social), foi-me apresentado o livro mencionado acima, e com este comecei a pouco e pouco a entrar na linha. Mas, indo mais diretamente à questão, foram meia dúzia de meses onde esta “linha” começou cada vez mais a iluminar-se, onde ganhei vontade de ser e estar, onde aprendi a estar comigo próprio, algo que numa situação – digamos – normal, não iria ocorrer tão rápido.
Outra grande lição que pude retirar destes meses foi a valorização de momentos especiais, especialmente com as pessoas de que gostamos. Atenção: a internet é uma ferramenta de comunicação incrível, mas não é a mesma coisa – o contacto físico, o toque, o cheiro, os olhares, os risos, e até mesmo os silêncios fazem a diferença. O simples café com um cigarro, hoje, tem um sentir muito maior do que tinha há algum tempo. O falar, o discutir, o argumentar, a partilha de ideias sempre foi uma grande parte da minha vida, só nunca o vi como tal […].
Dava-me um prazer enooooooooooorme continuar a explorar esta lista, mas só com estes dois exemplos – os que considerei mais relevantes – temos já alguma matéria de reflexão. A vida é uma (in)constante emocional e vão sempre existir ups and downs, mas nunca nos podemos esquecer que também existem outros bens essenciais para além de oxigénio, água ou comida: a socialização – pratiquem-na com cuidado, usem a internet a vosso favor e, como é claro, utilizem esses equipamentos estranhos a que as pessoas chamam de máscaras .

João Peixoto


Dois prantos

Morreu a avó da minha amiga.
Morreram os avós da minha outra amiga.
Morreu o tio do meu amigo.
Os meus amigos não puderam chorar os seus mortos.
Os meus amigos foram obrigados a conter lágrimas que pesavam o peso da vida. Foram obrigados a conter lágrimas humanamente impossíveis de conter.
Os meus amigos só queriam chorar os seus mortos. Em vez disso, choraram o facto de não poderem chorar os seus mortos.
E eu chorei com ele, pelas mesmas razões.
Chorei também por não poder chorar com eles e por me encontrar presa neste abraço que não lhes pude dar.
Hoje a humanidade contém dois prantos: um pelos que vão sem poderem ser chorados pelos que ficam, outro pelos que ficam sem poderem chorar os que vão.

Joana Rebocho


Teorema

Pergunto-me hoje porque são todos os dias noticiados os números de vítimas da Covid-19 mas não me recordo da última vez que se viu mencionado, nem que em rodapé do telejornal, quantas bombas caiem na Síria, quantos morrem por essas bombas caírem na Síria. Quem são os capacetes brancos? Porque é que ainda hoje caiem bombas na Síria?
Pergunto-me se ainda não aprendemos a fazer as perguntas certas ou se estamos apenas a tentar distrair-nos porque sabemos a resposta e ela não nos agrada.
Pergunto ao meu Deus, pergunta também ao teu Deus. Perguntemos ao nosso Deus, onde estais? Onde estamos nós? Que mundo é este onde uns lavram vidas a outros?
Onde alguém passa a ser ninguém porque se torna apátrida no segundo em que um carro transformado em bomba deforma um país e um povo?
Como posso eu não me comover com alguém que hoje chamam de ninguém mas que afinal é eu, de outro modo, de outra forma, de outra cor. Mas que afinal sou eu.
Como posso eu não me emocionar com uma criança, que tem mãe e que tem pai, mas que é uma criança e, por isso também é meu filho.
Como posso eu não chorar com uma mãe que chora uma filha que não sou eu, mas que na verdade sou eu essa filha porque também eu tenho uma mãe que choraria por mim nessa mesma aflição.
Eu sou tudo isso. Nós somos tudo isso.
Primo Levi escreveu sobre o Holocausto, ao narrar a vida sob trabalhos forçados num campo de concentração: “Não temos regresso. Ninguém deve sair daqui, pois poderia levar para o mundo, juntamente com a marca gravada na carne, a terrível notícia do que, em Aschwitz, o homem teve coragem de fazer ao homem.”
Mas essa notícia foi trazida, pelo homem para o homem. E hoje, neste mundo de tecnologias, neste mundo sem distância aparente, o homem continua a destratar o homem.
E eu e tu, que somos homem também ainda não conseguimos fazer mais que isto para salvar a humanidade.

Joana Rebocho

2020, um ano para recordar

Depois da enchente de arco-íris e slogans “vai ficar tudo bem”, o meu telemóvel voltou a acumular neste terminar de ano as exponencialmente propagadas mensagens que se podem resumir nesta ideia: “2020 já passou e foi um ano para esquecer”. Um misto de desagrado e rebeldia impede-me de concordar. Não me conformo com apagar este ano da História!
Quero fazer memória! Uma dor aguda penetra-me bem fundo, quando sinto novamente aquelas lágrimas quentes daqueles meus que perderam um irmão, um tio, um amigo; e sinto também o choro desesperado de um bebé e de uma mãe que não tem como o alimentar; vejo novamente os olhos corroídos pela miséria e pela solidão daquele de quem nunca saberei o nome… Muitos dir-me-iam que sou louca por me perder nestas vãs recordações! Mas elas não me abatem, não me destroem, mas humanizam-me… Quando vejo o doce calor que chega do telefone ou de uma vídeo-chamada de uma família separada, a mão amiga de quem recolheu o sustento para uma criança até ela atingir um ano de idade, quando vejo alguém deixar um saco grande de gomas a alguém que nunca saberá quem é na véspera de Natal, percebo que no sofrimento encontro algo da humanidade que talvez não a cure do Covid mas talvez nos vá curando contra uma doença muito mais letal chamada individualismo.
2020 lembra-me que na História de qualquer guerra sempre se sai mudado. Uns sairão piores, talvez cochos, fazendo vir ao de cima fragilidades talvez ocultas até então, outros, os valentes, os corajosos, os que se atreveram a ter ideais e a amá-los, sairão fortalecidos e mudarão o mundo. É tudo uma questão de atitude, da forma com que lidamos com o sofrimento (nosso e dos que passam ao nosso lado e que também é nosso).
2020 foi um reencontro comigo mesma e com a minha condição humana. Somos seres frágeis (já Camões o dizia!) com a vida constantemente por um fio, com feridas profundas. Mas é nesta nossa dependência que se revela a nossa maior grandeza! Não somos mais um animal qualquer mas um ser social, que se apoia na sua comunidade, na sua família, no padeiro que nos leva o pão, no médico que cuida dos nossos doentes, no cientista, nos que recolhem o lixo, no sorriso das crianças, na presença dos idosos. Somos provavelmente os animais que mais cuidam dos que estão necessitados, debilitados, até à sua partida definitiva e até depois…
Mantermo-nos esta grandeza de não deixarmos ninguém de lado depende de nós, do que cada um faz pelos que o rodeiam, mesmo que isso seja ficar em casa. Soubemos fazê-lo em Março e fá-lo-emos novamente, se isso for necessário. Servirmos a sociedade através das circunstâncias de cada um, do estudante, do médico, do desempregado e do doente que se deixa cuidar. Depende de nós e de como queremos usar a nossa liberdade: para edificar (ou destruir) uma humanidade mais humana.

Maria Rosário Rebordão


nasci às 17
passo a passo
andei
pelas 18
dendaliei pelas palavras que me iam saindo da boca às 19
a avó punha o esparguete na mesa e eu estudava
fazia os trabalhos de casa
vieram as 20
o primeiro cigarro atrás da escola
em ato de rebeldia contra o sistema
que me os vendia
estudava
havia de ser médico.
cheguei às 21
entrei na faculdade. serei. serei. serei. serei. serei. serei. serei. fui.
o diploma está-me na mão.
primeiro trabalho às 22
a miúda da secretária do lado sorriu-me
hoje jantámos
correu bem
o sexo é razoável
e ela é linda
oh, o quão linda é
estarei apaixonado?
não sei, nunca ninguém me disse o que é amor
irei assumir que é.
assumi.
são 23 e casei-me.

por amor? ainda não sei
recebi um aumento no trabalho e a miúda começou a viver comigo
as conversas fluem entre a rotina e os afazeres lá de casa
há paixão? não
mas disseram-me que o amor vem depois disso
portanto, se calhar, o vazio que vejo quando lhe olho nos olhos de cristal
é o amor que tanto procuro
amor. amor. amor. amor.
sexo. sexo. sexo. sexo.
as fodas são aos sábados, quando há tempo e antes de fazermos umas compras
sou um autómato no trabalho
mas é só sendo um autómato que conseguirei manter este estilo de vida que viv(emos) está grávida.
vou ser pai.
estou feliz
ou digo que estou?
nasceu.
sinto-me satisfeito.
os meus instintos baseiam-se na sobrevivência daquele ser.
sinto-me bem
porque a loucura da proteção
abafa
os males da vida
chamarei de amor
a esta distopia freudiana
a que chamo
parentalidade.
o que sou?
pai, marido e autómato.
passou-se este tempo todo
e eu esqueci-me de ver o relógio

são duas da manhã
e eu estou na sala
a ver um documentário no canal história
o puto está a dormir
a mulher está ver uma série, num outro quarto, que não suscita o mínimo de interesse recupero, com o pouco álcool que me resta no copo, as energias depois de um dia de cubículo não há amor. não há sexo. não há paixão.
há automação. há dinheiro. há estrutura. há vida.
com sorte
a este passo
consigo
reformar-me
às 10 da manhã
para
viver
uma vida
mais
degradante
que a que
vivo
pagar a universidade
ao rebento
para que ele
estude
trabalhe
(se) apaixone
case
e um dia
se sente
num sofá como o meu
a olhar

para um televisor maior
aí, sim, serei feliz.

João Gonçalves

A excepção permanente

De uma forca fiz um quadrado
aprendi assim a desenhar
demasiado tarde? demasiado cedo?
demasiado tudo!

e ainda mais…
sou a destempo
revivo o intento de me salvar

João Freitas Mendes


Os destemidos

Os destemidos são aqueles que nada temem. Que nada negam, pela curiosidade e pela sede de viver e pela sede de experimentar que transbordam.
Se os mandam falar baixo, ou calar-se, ainda que apenas porque está um bebé a dormir ou há quem queira ouvir um discurso, eles gritam porque assumem qualquer “Não” como repressão. Esquecem-se, como se vê, que “Não” também rima com prevenção, proteção ou, até mesmo, dar a mão.
Mas não. Os destemidos não querem dar a mão porque veem as mãos do outro como algemas e não como mãos que são que só precisam das suas mãos para se apoiarem.
Os destemidos não param nem perante um sinal de Stop, dizem que é autoritarismo.
Mas também não param se lhes pedirem em tom de convite, entendem isso como manobra de manipulação.
Os destemidos acham-se indestrutíveis mas esquecem-se que quando não dão a mão àquele que lha estende, ao não auxiliá-lo, ameaçam-no.
Esquecem-se também que quando lesam o outro, é a si também que agridem.
Esquecem-se que desleixar uma vida humana é pôr em risco toda a humanidade.
Quando venho da faculdade e reparo, imagino que por estes tempos as filas para a imperial no Tatu ou no Minicampus sejam proporcionais à ânsia por vez nos cuidados intensivos.
Imagino que os 100 em festa numa casa minúscula sejam como aqueles 100 que morreram hoje e foram noticiados, mas com outros nomes e outras formas.
Quem anda à chuva molha-se.
O injusto é que nem sempre os que se molham são os que andam à chuva.

Joana Rebocho


último 

Os casos.

As casas.

O caos.

Joana Rebocho