Texto de João Freitas Mendes. Revisão de João N. S. Almeida.
Neste livro pequeno e rápido, saído há três meses apenas, João Pedro Cachopo discute o impacto da pandemia no pensamento crítico e sistematiza alguns tópicos cruciais: amor, viagem, estudo, comunidade, e arte. Na verdade, esses tópicos, e, mais em geral, a vida perante a tecnologia e a digitalização, são uma linha de força da filosofia contemporânea, pelo que a pandemia não é o acontecimento, mas um momento da existência pós-moderna. É este o fio condutor. Procura assim distinguir-se de outras obras, com perspectivas apaixonadas ou disfóricas, raciocínios políticos ou revolucionários. Estes apontamentos parecem convidar a uma inflexão filosófica, e o texto soa eficazmente contemplativo.
Assim, o livro procura já integrar a pandemia actual nos temas da sociedade tecnológica, inscrevê-la na longa linha do tempo. Vale a pena citar, justamente:
“ A resposta mais imediata é simplesmente esta: o nós que desejamos, podemos e devemos elaborar é um nós o mais próximo do distante possível.”
Isto constitui, por um lado, uma defesa do globalismo e da abertura de fronteiras. A seu ver, a pandemia não alterou a necessidade do cosmopolítico. Isso interpela directamente outras visões actuais, radicais, novas, a partir da totalização da experiência pelo dever, ou do totalitarismo normativo de justificação sanitária. Essa perspectiva relativista é apaziguadora no precipício. No entanto, talvez isto contradiga o tom empoderador, apocalíptico, inquietante, das últimas páginas do livro. Contudo, essa responsabilização do leitor-indivíduo parece marginal.
Para o filósofo, a distância física traz “semelhança” através da sua remediação digital. Disso será exemplo a diferença entre a posição dominante do professor na sala de aula e a posição paritária nas salas virtuais. Esta linha argumentativa parece partilhar das previsões optimistas sobre pandemia e solidariedade, segundo as quais os momentos de dificuldades aproximam a essência dos seres humanos, o que poderia ser o princípio da aproximação como revolução ampliativa da igualdade. Isto pode ser contrastado com o pano de fundo pessimista, segundo o qual esta informatização forçada pode ser uma sobrecarga de estímulos positivos. Sugere-se que a nossa experiência se absolutizou em utensílios domésticos, ou, como é afirmado, “imobilizar a sua sociedade exigiu a sua mobilização”, “permanecemos mobilizáveis e disponíveis”.
A valia assenta na recuperação dos dilemas da ciência, da técnica, e da humanidade no meio delas. Mesmo que não se saiba para onde vamos, tranquiliza saber de onde viemos. Enquadram-se capazmente os autores fortes da filosofia contemporânea e os textos polémicos da pandemia. A leitura que João Pedro Cachopo faz da tarefa filosófica, entrelaçando a interpretação e a transformação do mundo, representa a ambivalência positiva do que ali escreveu. Pelo contrário, os tópicos escolhidos parecem pouco idóneos para expor “a torção dos sentidos”. A declinação crítica dos assuntos públicos terá sustido a exploração argumentativa da impossibilidade dos sentidos humanos clássicos, em favor da artificialidade, nas contingências actuais. Pois não é esse o drama real da pandemia? É certo que o prisma optimista adoptado evita alguns problemas filosóficos e apazigua as sensações terríveis e exaustas. A proposta pouco de contemplação filosófica pode ajudar a destorcer os sentidos. Afinal, de que servem os argumentos no meio do temporal?
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