Tríptico, Joana Rebocho

Texto de Joana Rebocho. Fotografia de um mural de Banksy. Revisão de João N. S. Almeida.

I. Serenidade

Um dia, com carinho, hei de ir ter com os meus mortos.
Sei que me deixarei ir, de olhos fechados. Mas sempre a ver e sempre com carinho.
Sem medo, sem mágoa, sem pressa. Só com ternura. E com muito carinho.
Irei ter com os meus mortos que já partiram. Com os meus mortos que ainda hão de partir.
Aqueles por quem já chorei. Com aqueles por quem ainda hei de chorar.
Nunca com mágoa. Sempre com ternura.
E saudade. Muita saudade.
Por isso, quando já não houver mais espaço para a saudade que fui colecionando, fecharei os olhos e, sempre a ver-vos, deixar-me-ei ir.
Sem malas. No sítio para onde vou não há espaço para elas.
Sem livros. Porque já me disseram que não conseguirei ler.
No sítio para onde vou também não há estantes.
No sítio para onde vou há os meus mortos à minha espera, sem medo, sem mágoa, sem pressa. Só com ternura.
E quando eu chegar vamos dar um abraço.
Eu sei que vamos dar um abraço.
Ninguém me contou mas eu sei.
E à volta de uma mesa poderemos desfrutar da nossa companhia pela qual há tanto ansiávamos. Mas na verdade não passou tempo nenhum e ainda ontem estivemos todos juntos.
Porque no sítio para onde vou não há tempo, não há pressa. Só ternura e carinho.
Um dia, com carinho, hei de ir ter com os meus mortos.

II. Mãos que me entregaram o Sonho

Quando era menina queria ter mãos elegantes como as da minha mãe.
Sempre muito bem arranjadas, daquelas que nem precisamos de tocar para perceber o quão macias são. Mas a vontade que dá de sentir aquele toque suave…
Umas mãos daquelas que dançam e explicam melhor do que as próprias palavras.
Mãos que raciocinam. Que dão carinho. Mãos que também repreendem.
Mãos que pegam nas nossas mãos e são como uma bengala invisível em que nos apoiamos mesmo quando não estão entrelaçadas nas nossas.
A minha mãe sempre me falou muito do sonho. E eu sempre achei a palavra “sonhar” tão bonita.
Então eu queria também que as minhas mãos crescessem e pudessem ser grandes o suficiente para carregarem todos os meus sonhos. Para que eu pudesse assim sentir o seu peso e para que não me esquecesse de os seguir.
Porque eu observava os adultos e já tinha percebido que era tão fácil eles esquecerem-se de seguir os seus sonhos. Porque tinham de fazer o jantar ou pagar a conta da luz.
Mas o que eu não sabia é que nós nunca temos sonhos.
Os sonhos é que nos têm.
Cativam-nos apaixonadamente e quando nós não os conseguimos cativar de volta e os tentamos enterrar para que não nos assombrem, eles gritam. E gritam muito. E gritam muito alto.
Era isto que eu não sabia quando era menina.
Pensava que os adultos se esqueciam dos sonhos mas hoje sei que, na verdade, estavam apenas a tentar distrair-se da presença dos seus fantasmas.

III. Propósito

Não sei se valeu a pena.
Não sei se a alma, no fundo, não era pequena.
Mas se te lembrei que eras um Homem, então já fico feliz.
E a humanidade agradece-me sem um “obrigado”.