Imagem: Iluminura representando as sete artes liberais personificadas e a Filosofia reinando no meio delas (c. 1180), do Hortus deliciarum de Herrad von Landsberg
Recensão de João Bray. Revisão de Tomás Ferreira.
O livro aqui recenseado descreve uma proposta de programa para a disciplina “Teoria da Literatura”, fornecida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1992. Tal como António Feijó informa na “Nota Introdutória”, o livro começou por ser simplesmente “um relatório apresentado a concurso para provimento de um lugar de professor associado” (p. 7). Apesar disso, o autor considerou a sua publicação útil, já que o programa proposto tem por base certas noções que são relevantes face aos “perigos” que rondavam (e ainda rondam) o ensino universitário em Portugal (cf. p. 7). De facto, a extraordinária relevância do livro de António Feijó está no facto de constituir uma admirável defesa das “artes liberais” (não só no contexto do ensino universitário em geral como, sobretudo, por extensão, no contexto do ensino das Humanidades). Esta relevância é atestada, de resto, pelo mais recente livro do autor, escrito em conjunto com Miguel Tamen, A Universidade como deve ser (2017)[i]. Com efeito,apesar das diferenças de ênfase (um versa sobretudo o ensino de uma disciplina das Humanidades, a Teoria da Literatura, e o outro descreve, em geral, uma ideia de Universidade que contrasta com certos modos de funcionamento da universidade em Portugal) existe uma enorme afinidade entre ambos os livros, já que a ideia de Universidade que os move é a mesma.
A ideia começa logo por ser descrita no primeiro capítulo, onde é mais evidente a afinidade com o livro A Universidade como deve ser. Começa-se por descrever dois aspectos que o autor considera serem problemáticos no ensino universitário em Portugal: a falta de liberdade de circulação dos alunos da universidade pelas diversas faculdades e áreas do saber, e a subserviência da universidade a considerações estritamente pragmáticas[ii]. Ambos os aspectos denegam a ideia de Universidade que é tão central neste livro, e que pode ser sintetizada em três posições fundamentais que se ligam entre si:
A primeira é a de que a universidade não deve visar fins úteis. A segunda é a de que deve oferecer aos seus alunos o acesso a todos os domínios do saber. A terceira é que deve ser autónoma de todos os poderes, e gerir-se a si mesma. (A Universidade como deve ser, p. 23)
Esta última posição não é aludida explicitamente em O Ensino da Teoria da Literatura e a Universidade, até porque exorbitaria os seus propósitos. Em compensação, e tal como o título do livro sugere, mostra-se bem como esta ideia de Universidade pode traduzir-se de modo particular no campo do ensino das Humanidades, mais especificamente no ensino de uma disciplina cujo nome pode, à partida, intimar uma certa iliberalidade (no sentido preciso que, John Henry Newman e Michael Oakeshott conferem ao termo “liberal” [ver infra]); é decerto também por isso que Feijó, no segundo capítulo, procede a uma problematização e qualificação dos termos “teoria e “literatura”. Neste sentido, as reflexões preliminares sobre a ideia de Universidade têm uma enorme importância no livro de António Feijó porque regulam implicitamente as subsequentes decisões pragmáticas do autor em relação ao ensino da Teoria da Literatura (cf. pp. 13-14). Para se compreender esta relação, exibida no título, entre o ensino da Teoria da Literatura e a ideia de Universidade, é preciso continuar a descrever esta ideia.
A noção de Universidade subscrita por Feijó baseia-se nas teorizações de John Henry Newman e Michael Oakeshott sobre a universidade como forma de “conhecimento liberal”. A natureza “liberal” do conhecimento está por oposição a “servil” (p. 11), e integra duas posições fundamentais que estão ligadas: (1) o ensino liberal não serve fins pragmáticos ou necessidades extrínsecas e (2) permite, nos termos de Oakeshott, a participação dos alunos numa conversa ininterrupta (“conversational encounter”), isto é, a participação numa “cultura”, uma totalidade nominalmente constituída pelos saberes que um conjunto de seres humanos criou para si próprio (cf. p. 12). Apesar da incomensurabilidade desses domínios do saber (já que cada um é fixado numa “linguagem vernacular específica”) eles interrelacionam-se entre si no interior de um espaço inter-subjectivo (cf. pp. 11-12). A vantagem de os alunos, nos termos de Wayne Booth, serem “baptized by immersion in a variety of intellectual experiences” (p. 20, n. 13) tem a ver com a potencialidade transformadora e enriquecedora de tais experiências, que são indissociáveis da compreensão que um indivíduo tem de si mesmo. Defende-se assim um modelo de Universidade que descende da velha ideia medieval do ensino das artes liberais[iii], modelo este que está, de resto, na base da estrutura curricular do curso de Estudos Gerais, que entrou em funcionamento em 2011 e a cuja criação António Feijó e Miguel Tamen estiveram muito ligados[iv]. Com efeito, a ideia de um curso com uma estrutura curricular semelhante ao que veio a ser Estudos Gerais aparece já prefigurada neste livro de 1994 (cf. p. 13, n. 6).
É importante chamar a atenção para um aspecto que é crucial no caso específico das humanidades: o espaço em que a “conversa” decorre deve ser, nas palavras do autor, “alheio a critérios de relevância ou a imperativos que as conjunturas sempre suposta e inapelavelmente ditam” (p. 12). Isto parece pressupor que, no contexto do ensino liberal, a diferença, por exemplo, entre o que se estuda nas ciências e o que se estuda nas humanidades é de grau e não de espécie, no sentido em que não existem duas “culturas”, mas uma só “cultura”. Neste sentido, o espaço inter-subjectivo em que se dá o “conversational encounter” é alheio, por exemplo, à ideia de que existem certos tipos de discurso que podem representar a “verdade” sobre o mundo ou servir de modelo a todo o conhecimento humano válido[v].
Ora o mesmo se aplica, mutatis mutandis, ao domínio das humanidades, e ainda mais especificamente ao domínio dos estudos literários. Um exemplo de uma relação hierárquica entre discursos, contrária à concepção de ensino liberal, é o caso da interferência de métodos científicos e imperativos formalizadores em disciplinas que não são científicas, como acontece em algumas das honorificamente chamadas “ciências sociais”[vi]; no caso particular dos estudos literários, por exemplo, uma noção de “teoria” da literatura que, com um estatuto de cientificidade regional, governasse ou ditasse a priori quais os critérios ou procedimentos válidos em literatura.
Como se verá melhor, a “instabilidade” particular dos objectos que configuram as humanidades, e da psique do leitor que com eles se confronta, torna particularmente inapta uma fundação de qualquer região dos estudos literários (e.g. a disciplina Teoria da Literatura) como se de uma ciência se tratasse. A ideia de instabilidade está muito presente em todo o livro, e tem muito a ver com as duas grandes problemáticas, interligadas, escolhidas para o programa da disciplina: (1) a da “referência e da significação”, e (2) a da “leitura” (p. 34). A primeira refere-se, de forma muito genérica, à adequação entre certos enunciados e a sua referência ou significação (cf. p. 34); esta instabilidade da relação tem lugar tanto em textos literários como nas artes visuais, ciências exactas ou filosofia. A segunda problemática refere-se ao acto de leitura; o docente espera que os alunos possam, no final dessa parte do programa, ter compreendido e experienciado como, na leitura de um texto literário, dois actores instáveis, o texto e a psique do leitor, se afrontam de forma perpetuamente excêntrica (cf. p. 41).
Assim, tal como a Universidade, as Humanidades deverão situar-se num espaço particular em que diversas “vozes” (interpretações, ideias ou posições) se associam numa conversa ininterrupta entre pessoas. Ora estas “vozes” operam, se quisermos, ao longo de um espectro em que existem diferenças de grau e não de espécie. Este espaço inter-subjectivo deverá ser alheio a critérios normativos de validade ou relevância, imperativos de cientificidade ou formalização, teorias que ditem quais as maneiras boas ou más de interpretar textos literários ou quais os procedimentos que se devem seguir para alcançar as supostas propriedades intrínsecas dos textos.
Todavia, à partida, poderá parecer que a “teoria” contrasta com essa ideia de ensino liberal das Humanidades. Não é esse o caso. Com efeito, para Feijó, a “teoria” parece ter um valor nominal e plural, e a Teoria da Literatura é contínua em relação à disciplina maior que é as Humanidades. Além disso, as sugestões didácticas e programáticas que propõe para o ensino da Teoria da Literatura reflectem a ideia de Universidade anteriormente descrita. O autor opõe-se, desde logo, à fundação da Teoria da Literatura como uma ciência (cf. p. 25), isto é, como tentativa de estabelecer um método universal ou teoria geral para a interpretação literária (cf. pp. 25-27). Em relação com isto, também se rejeita a formulação de uma “teoria” da literatura enquanto determinação das posições fundamentais sobre a problemática da Teoria da Literatura (cf. pp. 21-22). Com efeito, numa área do saber em que “não é facilmente discernível em que consistiria a ordem constitutiva ou a identidade dos necessários nódulos de ligação”, e em que a “natureza cumulativa da aprendizagem é problemática” (p. 31), a escolha e organização dos conteúdos do programa não poderá ser objecto de fundamentação lógica que o determine. A estrutura (sinóptica ou não) de um programa tem uma natureza eminentemente analógica ou relacional, e não pode ser reduzida a relações lógicas ou causais (cf. pp. 21-22). Assim, pode dizer-se que, para Feijó, as teorizações literárias estudadas na disciplina Teoria da Literatura (não seriam estudados apenas textos “teóricos”), e as relações entre elas, não são vistas como unicidades dogmáticas, mas, se quisermos, essências nominais, consideradas no contexto de um entrechoque polémico e diacrónico. Neste sentido, o autor segue uma abordagem prática, analítica e pluralista, aproximando-se de uma acepção “gnóstica” de theoria, em que o objecto de conhecimento é uma particularidade, por oposição à grega, que tem como objecto o universal (cf. p. 18).
Pelo que acabou de ser dito acerca do cariz relacional das “estruturas sinópticas”, pela natureza instável do objecto de análise das Humanidades e pela própria natureza da prática docente, a escolha de um programa em Humanidades não pode deixar de ter uma vertente idiossincrática, e de estar sujeita a alterações e correcções ad hoc por parte do docente no decorrer da actualização prática do programa (cf. pp. 31-32).
Além disso, para António Feijó, o estudo da literatura tem uma vertente eminentemente prática e analítica, de tal modo que até mesmo o “discurso teórico é a província do close reading” (p. 42). Neste sentido, as aulas consistem, não na transmissão de esquemas totalizadores, mas no estudo de certos textos particulares que o docente considera canónicos, i.e., que têm um efeito endémico na cultura e sobredeterminam a posteridade (cf. p. 29). Os textos são lidos no contexto da relação que têm uns com os outros, possibilitando aos alunos o confronto directo com o modo como certos textos se relacionam entre si, de forma polémica e diacrónica. A produtividade do confronto entre diferentes textos é diversa. Os alunos podem acompanhar a “processualidade da teorização” (p. 31), isto é, o modo como determinado discurso teórico se adequa ou não aos textos (teóricos ou não) que tem por base. Têm também a oportunidade de reconhecer, por um lado, a natureza instável do texto (e, por isso, a sua incompatibilidade com interpretações definitivas) e, por outro lado, a sua “natureza coerciva” (p. 31). Segundo Feijó, esta última característica desabusa os alunos da ideia de que os textos oferecem uma grande quantidade de leituras possíveis; de facto, os textos “impõem” sentidos, e o rigor intelectual é tão necessário nas humanidades como em qualquer outro domínio. Vale a pena reiterar, neste contexto, que os intervenientes da “conversa” não são, nem apenas discursos teóricos, nem apenas textos que se inserem no domínio dos estudos literários, mas textos sobre arte, ciência e filosofia.
Não só a abordagem é analítica, como a escolha das problemáticas e dos textos não é ditada por critérios dogmáticos de relevância nem por imperativos de espécie alguma. Trata-se de uma escolha idiossincrática (mas de modo nenhum caprichosa) que depende de o “relator reconhece(r) afinidades de inquietação e efeitos didáticos” (p. 31). Ainda que não se transmitam macro-estruturas previamente estabelecidas (só depois do estudo dos objectos particulares é que é possível reconstituir, retrospectivamente e por sinédoque, as problemáticas gerais que as integram), a escolha programática pressupõe (aliás inevitavelmente) fins didácticos particulares que, como já vimos, são contrários a uma concepção de Teoria da Literatura enquanto lugar da cientificidade dos estudos literários; em vez disso, vão no sentido da ideia de Universidade (aplicada, por sinédoque, às humanidades e aos estudos literários) apresentada logo no início do livro.
O livro de Feijó não é prescritivo e é pouco polémico. Com efeito, não obstante o facto de o autor reconhecer nocividade em quaisquer unicidades dogmáticas, e de apresentar razões para as suas decisões programáticas, este manifesta também um certo “agnosticismo céptico-analítico” (p. 24), reconhecendo como lícitas outras escolhas programáticas para a disciplina de Teoria da Literatura (um programa que consistisse num “quadro sinóptico de posições” ou até mesmo que seguisse, de forma cumulativa, uma teoria da literatura que fosse subscrita pelo putativo docente [cf.p. 24]). Ainda que estas escolhas estejam menos de acordo com uma concepção das humanidades enquanto “conversational encounter”, não vemos neste agnosticismo de António Feijó algo a deplorar; este parece-nos apenas ser um sintoma da sua admirável liberalidade. Apesar do seu reduzido dogmatismo, as posições do autor estão manifestas nas decisões programáticas e didácticas que propõe e na ideia de Universidade que subscreve.
[i] António M. Feijó e Miguel Tamen, A Universidade como deve ser, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2017.
[ii] O caso particular aludido no livro é o imiscuir, na licenciatura de Línguas e Literaturas Modernas, de disciplinas de índole didáctico-pedagógica que preparassem os alunos para uma putativa carreira docente do ensino secundário (cf.pp. 9-11).
[iii] António M. Feijó e Miguel Tamen, op. cit., p. 24: “Na universidade medieval, as «artes liberais» eram constituídas por dois sub-conjuntos disciplinares: o trivium, que incluía a gramática, a lógica e a retórica, e o quadrivium, que incluía a aritmética, a geometria, a astronomia e a música.”; o valor constituído pela designação de “artes liberais” é o de que “a criação e a aprendizagem de uma disciplina científica induzem uma forma de contentamento intelectual, e são um bem em si mesmas”.
[iv] Idem, ibidem, pp. 33-45.
[v] Cf. Michael Oakeshott, The Voice of Liberal Learning (introduction and foreword by Timothy Fuller), Liberty Fund, Inc., 2001, p. 22.
[vi] Esta questão aparece mencionada tanto no livro recenseado (p. 28) como em A Universidade como deve ser (pp. 28-29).