Texto de Gerd Hammer (Departamento de Estudos Germanísticos da FLUL). Revisão por João N.S. Almeida. Imagem: Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Julius Ludwig Sebbers (sem data).
Este ano celebram-se duas efemérides, e não apenas na Alemanha. No dia 17 de dezembro, festeja-se o 250.º aniversário do nascimento de Ludwig van Beethoven e igualmente o 250.º aniversário do Pensador da Liberdade, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, este com um pouco menos de pompa, pois não se adapta tão bem a uma apresentação mais mediática.
Graças à Ode à Alegria de Friedrich Schiller e à sua 9.ª Sinfonia, a presença de Beethoven será mais vincada, embora tal possa não fazer o devido jus à sua obra. E gostaríamos seguramente de saber o que o compositor, entre outros, teria a dizer sobre a atual política de refugiados da UE ou sobre o estado da democracia nalguns países da Europa de Leste, já que, como se sabe, a sua «Nona», a obra-prima que clama a liberdade e a fraternidade, é desde 1972 o hino da Europa.
Comparativamente, os méritos de Hegel são claramente menos conhecidos do público em geral, mesmo que as suas ideias de liberdade, comunidade e Estado tenham influenciado indelevelmente a vida nas democracias ocidentais.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o mais importante representante do Idealismo alemão, nasce em Estugarda em 7 de agosto de 1770. O pai descende de uma família de pastores e funcionários públicos, a mãe de uma família abastada, um ilustre meio protestante.
Já no tempo liceal o jovem filósofo revela o seu extraordinário talento, interessa-se por matemática e geometria, pelas Antiguidades grega e latina. O seu diário, Tagebuch aus der Schulzeit (1785 – 1787), em grande parte redigido em latim, deixa já claro um dos interesses que perdurariam ao longo de toda a sua vida: a razão.
É lendário o tempo que passa no seminário de Tübingen: partilha quarto com Friedrich Hölderlin e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, formando a mais célebre residência estudantil da história das ideias da Alemanha. A este colégio evangélico, através de jornais franceses, chegavam notícias da Revolução Francesa, que muitos dos estudantes, e também Hegel, acompanhavam com entusiasmo; a ideia de liberdade irá impregnar indelevelmente a vida e o pensamento de Hegel. Diz-se que, ao longo de toda a sua vida, em 14 de julho, o dia que marca o início da Revolução Francesa, Hegel bebia sempre um copo de champanhe em celebração da liberdade.
Depois de concluir os seus estudos, é professor particular em Berna e Frankfurt am Main. Depois da morte do pai e de receber uma pequena herança, em 1801 Hegel ruma à Universidade de Jena. É aqui que nasce um dos seus trabalhos mais importantes, A Fenomenologia do Espírito, uma das obras mestras da filosofia moderna.
No dia 13 de outubro de 1806, dá-se em Jena um encontro histórico. Hegel, com o manuscrito da Fenomenologia no bolso do casaco, vê a alma do mundo, Napoleão, montado no seu cavalo, e escreve que é um «sentimento maravilhoso ver um tal indivíduo».
Depois do tempo passado em Jena, Hegel trabalha ainda como editor de jornal e diretor de uma escola, para depois responder à chamada de se tornar professor da Universidade de Heidelberg. Em 1818, sucede por fim a J.G. Fichte na Universidade de Berlim.
Hegel é uma celebridade ainda em vida; Goethe considera-o o mais relevante pensador do seu tempo, as suas aulas em Berlim estão sobrelotadas e até funcionários do Estado e ministros se contam entre os seus ouvintes. Em 1829, Hegel torna-se reitor da universidade. Muitos vêem então a filosofia de Hegel como a «jóia da coroa da Prússia», mas outros temem o caráter subversivo do seu pensamento sobre a liberdade. Em 1831, eclode em Berlim uma epidemia de cólera; em 14 de novembro de 1831, Georg Friedrich Wilhelm Hegel falece. Se de cólera ou de uma doença do estômago, quanto a isso não há consenso.
Hegel é «O Filósofo da Liberdade»: é este o título da brilhante biografia que Klaus Vieweg, professor de filosofia de Jena, publicou no ano do jubileu. E Hegel é também o pensador do Estado de direito e do Estado social, a sua dialéctica, o seu pensamento histórico, a ideia de evolução e compreensão influenciaram filósofos como Karl Marx, Søren Kierkegaard, Jean-Paul Sartre ou Th. W. Adorno.
Como é evidente, por ocasião do aniversário do seu nascimento, muitos referem também a atualidade do pensamento de Hegel em tempos de crise, perante as restrições à liberdade individual impostas pelo Estado durante a pandemia. Por exemplo, Slavoj Žižek (Neue Zürcher Zeitung de 27.8.2020) constata, com alguma lástima, ser precisamente Hegel quem nos ajuda a compreender estes tempos de loucura que vivemos.
Mas que diria Hegel das medidas do Estado, da relação entre o Estado e o indivíduo? Será que é legítimo, em tempos de crise, limitar liberdades antes adquiridas para não colocar em risco o bem-estar e a saúde da comunidade em geral? Em Hegel, sem o bem-estar geral não existe liberdade individual e o propósito do Estado é garantir o bem-estar geral e o superior direito à vida. E a liberdade, em Hegel, está sempre associada à razão. A liberdade nunca significa deixar fazer o que dita a vontade do momento. Em tempo de «festas corona», manifestações contra o confinamento e outras expressões similares de egoísmos sem ponta de razão, em que o bem-estar geral recua cada vez mais para segundo plano, Hegel teria seguramente aprovado a aplicação de restrições temporárias.
Será talvez mais empolgante tentar aplicar as suas ideias de razão e pensamento numa crítica aos novos meios de comunicação. Se no início da World Wide Web, com Tim Berners-Lee e também com os fundadores da Apple e da Google, a ideia central era a de um acesso generalizado à informação e, logo, a mais democracia, o Google, Facebook, Instagram e afins tornaram-se entretanto na maior máquina de manipulação de informação a nível mundial. Estas redes sociais (existem outras, mas com uma utilização apenas marginal) pretendem seduzir; os utilizadores são vendidos à publicidade como produto manipulado e previamente preparado por meia dúzia de monopolistas. Utilizadores como produtos e mercadorias, controlados por perfis que sabem mais sobre si do que eles mesmos. Resultados de pesquisa individualizados fornecem a confirmação das ideias de cada um, as verdades coletivas tornam-se cada vez mais raras. Todavia, a manipulação é o contrário de liberdade e razão; é uma obstrução à liberdade porque procura impedir a escolha sensata e humana entre variantes.
Também no debate em torno da inteligência artificial e da capacidade de pensamento das máquinas teria Hegel ainda algo a nos dizer. Os computadores determinam ganhos e perdas nas bolsas, armas autónomas transformam-se em decisores em conflitos armados e a «eternidade aumentada» promete a vida eterna, o parceiro falecido sentado ao nosso lado no sofá sob a forma de avatar. Uma reminiscência do espírito e do pensamento autoconsciente, o indivíduo pessoal (das persönlich wirkliche Individuum) ou também a relação entre pensamento e linguagem poderiam enriquecer o debate.
Mas uma outra discussão que assinala igualmente presença no ano do jubileu, inevitável na era de um mal compreendido «politicamente correto», é a questão do racismo e do eurocentrismo em Hegel, que marcou aliás a cerimónia de celebração do 250.º aniversário em Estugarda. Dina Emundts, presidente da Associação Internacional Hegel, encontrou as palavras certas para esta contenda: «Ser racista e, ao mesmo tempo, exigir direitos humanos para todos não é uma contradição. Tanto Kant como Hegel fizeram-no.» (Welt, 11.09.2020). Direitos humanos para todos, esta é uma das componente mais importantes do legado de Hegel.