Texto de Rui Antunes. Imagem de Mayankmakhija9.
Antes do mundo ser o nosso mundo, antes sequer de lhe ser semelhante, nele havia um pequeno reino. As suas fronteiras não se estendiam para lá da densa floresta que o rodeava. No centro havia uma pequena povoação que circunscrevia o monte onde, ao contrário de tudo o resto, assentava, no cimo, um forte e imponente castelo. Parecia frio, cinzento, austero e intransponível. Impunha respeito e contrastava, com o seu rigor e firmeza, a natureza leve e calma que o circundava.
Nessa fortaleza reinava o mais cruel dos reis. Partilhava das mesmas características do seu castelo. Fora feito à sua imagem, à sua medida. Ainda assim, conseguiu o próprio ser mais vil e frio do que o forte. Era alto como um gigante, tinha longas barbas que cobriam parte do seu rosto, sendo, em cima, desprovido de qualquer tipo de cabelo. No olhar trazia uma noite sem estrelas, e sem esperança de amanhecer. Entroncado e imponente, com mãos de caçador, de um hediondo ser que a outros tira a casa e aprisiona. O nome, ninguém o sabia e nem se atreviam a perguntar, tal era o medo que lhe tinham. Era conhecido apenas por Rei.
Um ser desprezível. Tinha como paixão vaguear pelas florestas que rodeavam o reino e caçar animais. Não os comia nem os fazia de enfeite para as paredes do seu tenebroso covil. Era algo mais, algo anti natural, algo muito pior do que partir em direção ao que quer que seja que nos espera após esta vida. O Rei capturava animais para os aprisionar em seu castelo. Extirpava deles o seu bem mais precioso, aquilo que com eles nascera, aquilo que a natureza concede a todos de forma igual, o direito de serem livres. A liberdade dos pobres animais era arrancada tal e qual uma batata o é da terra. Sem dó nem piedade, colhia o direito natural dos indefesos animais, sorrindo. Com o gozo de os olhar, a adrenalina de os perseguir e o prazer da recompensa de ter mais um troféu vivo para a sua coleção. Um sorriso mesquinho de quem tinha prazer em causar sofrimento e em apreciar tão medonho espetáculo.
Dentro da sua coleção estavam: os lobos que o olhavam com raiva, com sangue na boca, com a desconsolação de ter perdido a alcateia, de ter perdido tudo. Os veados, que o temiam, que vivam na angústia de não saber quando iria ser o seu último dia vivos e o primeiro dia pendurados numa parede. Os javalis, os mochos, os coelhos e tantos outros que ele aprisionava viviam, ou melhor, sobreviviam como podiam. Na esperança e na crença da ínfima possibilidade de dali saírem vivos e voltarem para a floresta, voltarem a viver.
Contudo, o seu maior prémio estava na sua torre mais alta. Era uma que sobressaía de todo o castelo, com apenas uma entrada e uma saída, guardada vinte e quatro sobre vinte e quatro horas por guardas, exímios arqueiros que alternavam entre si fazendo turnos. Era a sua mais intimidante obra. Tinha uma pequena janela por onde apenas o sol conseguia espreitar lá para dentro. Mas, o que haveria ali de tão especial? Qual seria a sua grande conquista que tão perto do céu se situava?
Ah! Era a mais bela ave que já havia rasgado o céu. Um pequeno pássaro. Todo preto, como a calma noite onde ele voava sem asas. Com uma pequena mancha branca que se destacava, qual solitária estrela que traduz a calma noturna no seu brilho. Estava debaixo do bico colorido com a força do fogo que na sua alma queimava. Nos olhos, tinha toda a esperança do universo pintada em tons de castanho pingado com mel. Parecia sorrir por entre o bico, parecia ter nele toda a felicidade, todo o optimismo que extrapolava aquela horrenda situação.
Atroz cenário. O pequeno mas muito nobre pássaro encontrava-se de asas amarradas, dentro de uma pequena gaiola onde mal se conseguia mexer. Virado para a janela aberta para poder contemplar o céu que já não mais podia tocar com a ponta das suas asas. Situação desenhada pelo próprio Rei de forma a causar o máximo de dor e de sofrimento ao pequeno pássaro. Nem sequer dentro da gaiola o permitia esvoaçar, prendendo-o com cordas e colocando-o virado para o janela, que traduzia o mundo sem filtros para assim ele puder ver o céu, para o torturar com o seu desejo mais profundo, voar. Desumano. Tirar a liberdade do pequeno ser não lhe havia sido suficiente. O sofrimento que ele lhe causava era necessário ao seu bárbaro regozijo.
Liberdade que voou do próprio pássaro de forma cobarde. Nem sequer se deu ao trabalho de enfrentá-lo numa “caçada justa”, se é que isso sequer existe. Não, o todo-poderoso e cobarde Rei escondeu-se no meio da noite, quando as estrelas menos brilhavam e a lua estava escondida, e atacou-o quando ele se encontrava indefeso no seu ninho. Durante o seu sono. Enquanto estava na aparente segurança do seu lar.
A sua coragem superava o seu tamanho. Esvoaçou, bicou, tentou tudo para se soltar mas, todos os seus esforços foram insuficientes. Lutou bravamente até as suas asas serem atadas, até o seu bem mais precioso lhe ser arrancado por um vil e cruel ser que nada tem dentro dele, nada senão toda a maldade que possa existir em roubar o bem mais precioso que a natureza dá como presente a todos os seres vivos que chegam ao nosso mundo.
De volta à torre, lá estava o pequeno guerreiro. Apesar das piores circunstâncias em que ele se encontrava, nada podia abalar o seu ânimo. Era como um escudo impenetrável a qualquer lança de guerra, que ele usava para se proteger de todas as atrocidades que contra ele eram cometidas. Era um eterno apaixonado pela vida, e não havia ninguém que lhe conseguisse tirar de dentro dele aquela vontade de viver, da cor do seu bico.
Para além da vida, tinha ele outra paixão. Todos os dias, sempre sem se mover, via, com dificuldade, uma forma branca passar pela janela, até que um dia ele se questionou:
“ O que és tu? Tu que insistes em visitar-me neste atroz lugar onde a felicidade já foi esquecida. Que vens, quase sempre, ora mais notável de dia, fazer-me companhia, ora à noite, quando te escondes no seu véu enquanto me vês dormir. Tu que tens sempre uma forma diferente de te apresentares mas, apesar de por fora mostrares as mais díspares formas, eu sinto que a tua essência, essa mantém-se sempre a mesma. O que és tu? Quem és tu?”
Durante dias, sem mais para fazer, o pequeno voador questionou-se, ali encarcerado, sobre o que era aquela mancha branca. Porque é que ela o acompanhava? Sem nunca perceber bem o porquê, o seu desejo de a tocar ia começando a despontar com o passar dos seus dias em clausura. Com o aumentar do desejo, pensou ele, enquanto a olhava com ternura:
“ Voltas sempre sem nunca ir. Fecho o meu olhar contigo aí e quando acordo aí estás tu. Com uma forma totalmente diferente da que ontem tinhas. E daquela que, enquanto eu estava a voar pelo mundo imaginário que quando adormeço me chega, eu vejo. Ainda assim, com três diferentes formas em tão curto espaço de tempo, há uma coisa que permanece imutável. A tua essência. A tua alma. O teu espirito livre que te faz trocar de forma em forma sempre sem perder a identidade. Não importa se és maior ou menor, se tens aquela ou a outra forma, tu continuarás sempre a ser, tu. Isso é quase mágico. Parece um feitiço que te permite seres tudo o que tu quiseres sem deixares de ser tu. E que encanto ele me causa. Faz-me lembrar as flores. As flores de diferentes cores, tamanhos, cheiros e formas que compunham o campo mais belo que sobrevoei. É isso, és uma flor que voa. Uma flor que veio desse campo. Com um espirito selvagem tomar de assalto e aquecer o meu pequeno coração.”
Passavam-se noites e dias e nada mudava. Continuava ali, preso, naquele espaço minúsculo para tamanha alma. Nada, exceto o seu desejo. O desejo de se libertar, não para ser livre, era algo mais, era o desejo de se libertar para poder tocar a sua agora amada forma branca. E numa noite onde o sono não veio, onde o seu desejo tocou o seu expoente máximo, ele disse baixinho:
“ Hoje não vou. Hoje não viajo pelo mundo que me vem. Hoje fico a ver-te. Mas, digo-te que já me custa. Já me custa ver-te sem te tocar. O desejo de te sentir já supera em muitas vezes o meu tamanho, já supera aquilo que posso suportar. O meu ser é completamente esmagado por esta forte vontade de te tocar. Ainda ontem, enquanto mudavas de forma sem que pudesse reparar, naquele estranho mundo, eu estava livre. Voava à tua volta enquanto mudavas de forma. E o teu perfume? Oh! Parecia-me ser uma mistura de todos os perfumes das flores do tal campo que sobrevoei. Desejei por momentos não voltar aqui. Ficar lá onde era livre para te tocar. Onde podia seguir-te para todo o lado. Onde tu podias ser livre sem teres de ficar aqui, presa comigo. Ficar lá naquele mundo que apenas parece real, mas onde posso jurar senti felicidade. Onde posso jurar que te senti.”
Por entre o bico esboçou-se, com o encerrar de um olhar de amante, aquilo que parecia ser um tímido e final sorriso. Aquilo que pareciam ser os traços de uma alma feliz num corpo condenado à tristeza. Aquilo que parecia ser a despedida de uma bela, ainda que triste, história de amor.
Ainda assim, a esperança queimava nele como a lenha queima no inverno, aquecendo o seu pequeno corpo.
Quando o desejo da pequena ave já se havia tornado um fardo demasiado insuportável para esta carregar, deu-se. Na troca de turnos da manhã, com toda a maldade e promiscuidade, o guarda que saía deu um murro na gaiola do pequeno guerreiro para perturbar o seu profundo sono. Contudo, ao fazê-lo fez com que as cordas que lhe seguravam as asas roçassem num ferro quebrado e enferrujado que fazia de barreira a que ele dali não saísse. Ao mexer-se, com a turbulência de ter sido acordado, percebeu que estava liberto das cordas. Finalmente havia-se soltado daquela prisão anti-natural que o castigava sem que tivesse culpa.
Todavia, ainda faltava libertar-se da gaiola que o enjaulava, que não o deixava partir para o mundo.
Ao perceber que o bem mais precioso do seu rei estava solto dentro da gaiola, o guarda que havia acabado de entrar apressou-se a chamar o seu soberano. Vendo a fuga do seu mais valioso troféu como uma possibilidade real, o Rei apressou-se até à torre, furioso e levando tudo à frente.
Impetuoso entrou pela torre adentro, batendo as portas, e com toda a fúria abriu as portinholas da gaiola, para poder voltar a atar as asas da pequena ave. Erro fatal. Cego pela raiva da incompetência de seus vassalos, esqueceu-se el-rei que a mais brava das aves estava solta. Mal as portinholas foram abertas, antes sequer de ele conseguir esticar a mão, o guerreiro imponente e veloz bateu as suas asas e voou.
Saiu disparado da janela daquela enorme torre em direção à sua forma branca.
Finalmente livre. As emoções percorriam-lhe o corpo. O sangue aquecia-lhe o coração. Este batia a uma velocidade maior que a dos trovões que rasgam o céu com a ânsia de satisfazer o seu desejo, de tocar a sua forma. De ser livre para a namorar. Para viajar com ela. O doce sabor da liberdade que lhe havia sido injustamente tirada estava agora reposta no seu bico, na satisfação do seu mais puro e único desejo, o de tocar a sua forma. Tão perto estava ele, tão perto de tocar a sua amada forma pela primeira vez. Todo o seu corpo tremia como uma criança nervosa. Com a mesma timidez e vergonha dos pequenos, avançava antagonicamente, com todo o ímpeto do mundo. Sobre os seus olhos, castanhos e pingados com mel, escorria, contrariamente ao doce do mel, o mais precioso e salgado dos líquidos, que traduzia não tristeza, mas finalmente felicidade.
Pouco depois daquele momento saiu também, assim como ele, disparada da mesma janela, pelo triste arco que o igualmente triste e cruel guarda empunhava, uma flecha. Rasgou o céu a uma velocidade estonteante e perfurou, em cheio, uma das asas do pequeno pássaro.
Tão perto de realizar o seu mais intimo desejo, aquele mais perto do seu coração, vê-o assim retirado, tal como a sua liberdade o havia sido. Que cruel vida. Viveu ele sem os dois bens mais preciosos. A liberdade e o sonho. Sonhou com a liberdade enquanto pôde, e quando foi livre isso foi-lhe retirado como se acordasse de um sonho para onde queria voltar. Enquanto se dava a fatal queda, enquanto não tocou o chão, ele pensou. Não, ele sentiu:
“ Sinto que te toquei. Sinto que, mesmo sendo privado do meu maior sonho, serei eternamente feliz. Para onde quer que vá a minha alma, nada apagará a felicidade que senti com apenas a ideia de que, de facto, era possível ser real sentir-te. Espero ir para aquele mundo, aquele onde te toco, onde voo livre. Aquele onde posso jurar que te senti. Mas, agora espero que ele seja real. Que tu sejas real. Sejas tão real como o meu amor por ti. Como o meu desejo de te tocar. Espero que me tires a liberdade de voar livre, para poder voar preso entre as tuas formas, para poder voar entre a tua felicidade. Para isso, eu entrego-te a minha liberdade. Parece-me justo, visto que te tenho no meu mundo, no mundo onde te toco. Até já, espero ver a tua alma com uma nova forma.”
Partiu o nosso pequeno e bravo guerreiro em sonhos. Sim, por muito mau que tal seja, ele nunca chegou a ser solto. Morreu de desgosto preso, enjaulado, com a sua liberdade atirada janela fora, que foi muito mais do que aquilo que ele teve direito. Uma morte ingrata para tão nobre alma. Quando ele fechou o olhar sorrindo para sonhar pela última vez, ele viu, ele sonhou, todo este episódio onde quase consegue realizar o seu mais profundo e sincero desejo. Será caso para dizer que se trata de um amor que nem nos sonhos mais selvagens será concretizado. O eterno amor proibido. O infinito desejo de ter aquilo que jamais se poderá sequer tocar.
Morreu de asas atadas. Morreu na gaiola enquanto sonhava com esta ação. Morreu preso, sem nunca ter saboreado aquele doce gosto de liberdade que ele trazia nos olhos castanhos pintados pelo mel. Morreu sem nunca ter tocado as nuvens, as formas brancas por quem ele será eternamente apaixonado. Morreu durante o sono. Morreu durante o sonho.
Quando morremos nos nossos sonhos, a nossa alma parte e deixa de ser nossa.
Desejo apenas que a sua alma continue a voar pelo infinito, por entre as nuvens de felicidade que ele tanto deseja, pois ele é o pequeno pássaro que voava de asas atadas.