O Mistério do Solar de Monchique, Sebastião N. Viana

Imagem: Serra de Monchique. Fotografia de Aires Almeida, tirada a 13 de Fevereiro de 2011. Fonte: Flickr.

Conto de Sebastião N. Viana. Revisão de João N. S. Almeida.

Foi há muitos anos quando quase sem forças rezava a São Cristóvão por esses trilhos endiabrados que vão desde a Serra de Monchique aos Montes da Fóia. Não sei por quantas horas andara, mas era de noite, e com a noite tudo se silenciara, menos o vento que continuava intenso, devassando as copas das árvores sem piedade. Às vezes surpreendia-me com os bufos que se quedavam imóveis, seguindo-me com aquele olhar misterioso, ululando à distância de trevas como que chamando pela morte que eu via, aparecendo com o seu capote rasgado, entre os contornos mais rebuscados de alguns ramos, pronta para me separar do mundo. Mas… eu já não tinha forças nem para temer a morte, nem para ansiar pela vida, ia-me arrastando entre lodaçais e arbustos como se fosse esse o meu único desígnio, até que avistei à distância, no topo de um pequeno monte, um grande solar. Agradeci imediatamente a São Cristóvão, achava-me salva e nesse instante foi como se voltasse a sentir toda a vida que não tinha a fluir em mim, sentia todos os medos e todas as dores, sentia a fome e a sede e sobretudo sentia a morte com a sua respiração ofegante e fria, aproximando-se com a foice em riste…

            Contornei o grande muro que circundava o solar até trespassar o pequeno corredor de metro e meio que dava para um pátio verdejante. Havia flores, de todos os tipos, ao serviço de uma leve briza que todas ia tolhendo, arrastando-as depois, desbotando-as e rendendo-as aos azuis dum luar tão cheio, tão melancólico, tão perdido. Ai de mim, se me perco neste luar que creio que imaginei, romanceando o que se viria a passar. Segui pelo trilho que atravessava o pátio e dei por mim defronte de duas portas de mogno, fechadas uma sobre a outra, uma espelhando a outra, e tanto numa como noutra repousava, ao centro e em metal, um touro de aspecto feroz com os chifres em arco repousando sobre um focinho já gasto, ora pelo passar dos tempos ora pelos viandantes que o confrontavam – quanta gente teria aquele olhar opalino visto chegar? Hesitei uns segundos, e por segurança escolhi o puxador que me parecia menos gasto, respirei fundo e fechei os olhos decidida a bater, mas não cheguei a bater, abatida abati sobre o soalho, prostrada diante de um homem alto, bem vestido, de olhar sereno com uma face retangular e uns cabelos longos, com um sorriso descolorado, mas gentil, que me estendia a mão com a peculiar: 

– Oh, uma convidada tardia? 

– Procurava um sitio para passar a noite, e algo para comer. – Disse, aceitando a mão. Subimos umas escadas de mármore, e seguimos por um corredor largo, passando pelas grandes janelas que todo o corredor percorriam. Foi uma travessia solitária, segui-o em silêncio, escutando o eco dos nossos passos e observando o movimento ocioso dos ramos de um limoeiro, que cintilavam em tons prateados, sussurrando palavras meigas com o sentimento de outras eras em que num simples movimento haveria toda uma pintura, todo um rio de cores prontas a desaguar num coração enternecido. Era, enfim, como os quadros pintados a óleo que na parede havia – as luzes da lua e do candelabro davam-lhes um ar soturno – e que, sem perceber porquê, me faziam sentir tanto saudade como pena, tanto do que foi como do que nunca poderia ter sido. Mas até então eu sempre tivera em mim uma alma sensível; quando vivíamos juntos em Coimbra, o Papá costumava dizer que me arranjaria um belo moço, acabadinho de sair do curso de direito, que rimasse em hendecassílabo e me batizasse de sua Beatriz – e ria muito -, adorava quando eu me fingia despeitada e tentava contra-argumentar, mas no fundo eu haveria de me continuar a chamar de Leonor. Agora apenas Leonor… E foi Leonor que sussurrei ao meu guia, antes de cruzarmos a porta entreaberta ao fundo do corredor, temendo pelo embaraço de me sentir inexistindo. 

Lembro-me de que o que a saleta não ganhara em tamanho também não perdera na magnânima, as paredes eram forradas com mobília, havia um móvel para exposição de copos, duas estante de livros, um sabre por cima de um pequeno cofre, e vários castiçais, entre inúmeros objectos de caracter miscelânico que se acumulavam por cima do restante mobiliário, cada um competindo por um lugar de maior importância, tentando ser um elemento de ordem para todo o caos a que ali se assistia. Ao centro da sala havia uma mesinha para revistas com tampo de mármore e pés dourados, imitando as patas de um leão, e em redor várias poltronas de motivos vegetalistas com um tom rosado que descaía ligeiramente para o bege. Um homem de idade lia tranquilamente um tratado sobre astronomia, duas mulheres palravam alegremente e um homem mais novo afinava um violino, e todos pararam assim que me viram entrar. As senhoras levaram as mãos à boca, tanto por pasmo como por curiosidade, o homem mais velho franziu a sobrancelha, como que ordenando a quem me trazia que explicasse o meu propósito, o jovem fitou-me pensativo durante alguns segundos e depois continuou a sintonizar o violino. O homem que me trouxera chegara-se à frente, pronto a explicar a ordem de coisas que me levara a um espaço tão intimo e tão pachorrento quanto um serão familiar. Foi abruptamente interrompido, se começara a sibilar um início de frase, o sujeito separa-se do predicado nas brumas do pensamento e descera, em seco, pelo esófago. O seu amo adivinhara-me as necessidades e achara por bem que, antes de falarmos, me dessem algo que vestir e algo que comer. Tornámos pelo corredor por onde viéramos, agora umas poucas gotas salpicavam os ramos do limoeiro, com certeza não haveria briza, os tons em que os ramos cintilavam estavam agora menos rutilantes, tomando um tom menos prateado, mais basso, menos material, quase como se o limoeiro se quisesse desvanecer. Mas não poderia ser, isso seria impossível, seria com certeza da perspectiva com que, mirando de uma janela do primeiro andar, fitava os ramos que estremeciam de timidez ao toque adulatório das gotas, cada vez mais pesadas, cada vez mais ansiosas, descendo dos raminhos aos ramos, dos ramos aos caule, e por fim enfiando-se na terra, deixando-se consumir por aquela que insipidamente violentavam. Não seria, com certeza, a primeira ou a última vez que se assistiria a um espectáculo semelhante… 

Nesses pensamentos me quedei, tão perdidamente cismando, como que desejando ver-me a mim desvanecida no silêncio dos belos tempos de outrora. E em tal beleza toda a minha alma se perdia, como que em palavras de amante, sussurradas com desejo ardente, numa noite de estio. Ah, lembrara-me, então, daqueles momentos em que havia uma laranjeira defronte da casa onde morávamos, foram tempos tão felizes… tão nostálgicos, tão intensos, morávamos então em casa do pai da prima Ricardina, o senhor Casimiro Sanches, Deus o perdoe, que a árvore não dera fruto excepto… Ai não pensemos nisso agora. 

Foram tempos ociosos em que os meses se tornavam em dias, os dias em horas e as horas se dissipavam nos últimos momentos de um suspiro. A Ricardina tinha na altura uns 13 anos, dois anos a menos do que eu, costumávamos começar o dia com o cantar do galo, aproveitando as primeiras horas para fazer as pequenas tarefas que nos cabiam e as outras para correr pelos campos até que fosse hora de jantar[1] e da hora de jantar até anoitecer palrávamos alegremente à sombra de um choupo. Na altura, tudo acerca do mundo nos fascinava, os pequenos riachos que circulavam pelas redondezas, os campos de trigo e joio que pareciam tão pacíficos, as flores de toda a espécie, deixando-se arrastar pela briza, as árvores que apoiavam soturnos bufos, o pôr do sol e as estrelas que vinham com a soberania do astro saudoso, era tudo tão simples e no fundo tão cheio de mistérios… 

O Sanches era um homem irrepreensível, ganhava o pão que nos punha na mesa com os tostões que resultavam da venda, tanto de gado como de hortaliças. Nunca quis ajuda, excepto quando, ocasionalmente, necessitava deste ou daquele biscate, coisas simples que não se comparariam às dores que a lavoura lhe traria. Tanto o Papá como o irmão do senhor Sanches costumavam ajudar, mas nunca trabalhavam tanto como o Sanches, podia dizer-se que não tinham muito gosto pelo trabalho da terra… embora outro não conhecessem. O momento mais complexo do dia era o serão, contavam-se lendas e histórias antigas, jogava-se à bisca ou fazia-se meia enquanto, na lareira, a madeira ia estalando aconchegada por entre os lençóis infernais. Nessa singeleza, eu era feliz, fora talvez o único momento em que fui feliz, em que tive paz na minha vida, mas toda a paz que poderia ter tido ardera, ramo por ramo, até me ver diante do espelho basso, no quarto de vestir. O quarto de vestir era pequeno, não haveria mais de dez passos entre a porta de entrada e a janela que dava para uma lua que ia crescendo esverdeada por entre as sombras do guarda-vestidos que se abria nos dois espelhos em que se viam reflexos distorcidos do que eu viera a ser: os meus cabelos, que foram levemente cor-de-castanha, estavam escurecidos, os meus olhos amendoados, outrora resplandecendo em tons negros, amarguravam-se, raiados de um vermelho cansado, o nariz que sempre fora estreito parecia mais largo, os lábios tinham perdido o vigor, apresentando as cores de um melão muito maduro mas muito seco, como se lhe tivessem sugado toda a água. As minhas mãos, encardidas e repisadas pela travessia que fizera, pareciam um pouco maiores. Tanto as calças de fazenda como o blusão de lã estavam encardidos, rasgados e irremediavelmente destruídos, não havia nada a fazer senão aceitar a caridade daquela tão amável família, e aceitar uma muda de roupa. Mas ai de mim! Que até me parecia pecado, manchar roupas tão belas com um corpo tão maltratado, mas se o corpo podia ter uma segunda oportunidade para ser belo, também eu poderia fazer um esforço para arranjar um propósito; escolhi um vestido verde, com uma tira roxa pela cintura e um tecido branco que, irrompendo da gola, cobria os ombros. Assomei-me novamente, notava-se ainda ao fim da coxa o artelho que esfolara umas horas antes, por isso vira-me obrigada a colher a custo os colãs negros que estavam dobrados ao fundo do guarda roupa. Por fim, calcei  umas sapatilhas e saí. 

Nisto fitava novamente o corredor que fito estava nas trevas das brumosas neblinas de oeste, que interpelando contra a soberania lunar, tudo jogaram numa irremediável diáspora de suspiros fugazes que, levantando um cortinado, escapavam por uma janela que se deixara aberta. Naqueles momentos em que nos ausentamos do mundo que conhecemos, tudo nos intriga, até aquilo que parece mais simples e mais quotidiano adquire uns ares exóticos, até uma corrente-de-ar nos poderia embutir de curiosidade: foi o que aconteceu, segui-a e debrucei-me sobre o parapeito da janela e parecera-me ver alguém transportando um saco de batatas. Não consegui voltar a relancear, sentia deslizar-me pelos ombros o toque de alguém, seguido de um sussurro, que não consegui entender. Voltei-me e lá estava ele, o rapaz que sintonizava violinos, olhando-me com um sorriso ardente e dizendo por fim:

– Sabe, sua excelência, onde ficou a outra rapariga? 

Eu fingi não compreender o galanteio e tornei, mudando de assunto:

– Não, olhe, estava à procura do outro senhor, por acaso não o viu?

E, Ele, chegando-se um pouco mais perto:

–  Já deve de ter ido para a sala de jantar, venha, eu levo-a lá, já estão à espera.

Dizendo estas coisas, aproximou-se com serenidade, deslizando as mãos pelos meus braços, até que as minhas mãos estivessem completamente cobertas pelas dele. Conseguíamos sentir a respiração um do outro, ele estava bastante quente, fitando-me com o que me pareceu ser paixão. Esta talvez fosse uma boa altura para descrever a cor dos olhos dele de um modo romanesco, mas como se descreve romanescamente que alguém sofre de heterocromia completa? Com efeito, ele tinha um olho negro e outro azul escuro, cores nada galantes, que para dizer a verdade tão pouco o tornavam menos atraente. E como ele continuasse a aproximar-se e eu não conseguisse recuar, ora hesitante, ora por curiosidade, decidi perguntar-lhe o que se passava. Sorriu, e avançou em direção à janela com um jovial: 

– Está a começar a chover, não convém deixar janelas abertas.

E depois, voltando-se para mim, acrescentou franzindo a sobrancelha. 

– Não foi o que lhe pareceu? 

            Sorri e virei a cara, tal como daquela vez em que o Sanches acabara de chegar para o almoço e, como me visse cismando em frente da janelinha, achou que eu estava pensando em alguém, ficou tão feliz que não ousei desmentir, apenas sorri e voltei-me de novo para a janela com um suspiro leve. Nessa altura mirava as gotas que penetravam por entre as ramagens, imaginando uma aventura num sitio distante. Sempre imaginara os belos inícios de aventura, mas nunca chegara a ver-lhes o fim, nunca conseguira. Pelos vistos tivera de esperar para ter uma aventura de que já imaginava o fim, sem que nunca tivesse pensado o inicio.

            Caminhámos vagarosamente, lado a lado, por corredores mal iluminados, muitas perguntas fiz e muitas mais fiquei por fazer, contudo tirando que Miguel Bastos era a sua graça pouco mais consegui apurar. Apesar da confiança que apresentara, parecia-me agora um pouco tímido, caminhando com o olhar fixo algures num dos muitos mosaicos que preenchiam o tecto, mesclando-se numa taciturna indefinição cromática em que todos os pigmentos pareciam mais um tom de grisalho. Por entre a aura de mistério que pairava sobre o Bastos começara a tomar forma um outro Bastos – desconhecendo o objecto, dera-lhe atributos de um outro objecto que nunca existiu ou existiria, criando a ideia de Miguel Bastos e corporizando-a na figura real de Miguel Bastos, um erro fatal a que ninguém com coração consegue escapar… Tanto me fascinou essa ideia, que só recordei novamente a que viéramos quando o olhar do Bastos voltou a cruzar o meu, com um tosco: “É aqui.”. De facto, quando fora a última vez que comera? Não o conseguiria precisar.

            Entrámos, alinhavam-se vários castiçais a uma das pontas da longa mesa de mogno que ocupava a sala de jantar, assistindo com um olhar quase fusco à palra acesa que as irmãs levavam por entre a oriental plumagem do leque que uma delas, a Margarida, trouxera de uma viagem às Índias. Assim que nos viram aproximar, fizeram uma pausa, olhando-me de alto a baixo com algum espanto, pensei que deveria de me apresentar e de agradecer, mas, antes que pudesse fazer uma saudação, já se tinha precipitado sobre mim uma torrente de perguntas, umas a seguir às outras, sem qualquer interrupção. Pasmei, sem folgo, diante de tão prodigiosa habilidade, e tentei formular um sorriso enternecido, penso que resultou, fizeram um intervalo – talvez para respirar -, era agora ou nunca, teria de aproveitar essa oportunidade para me apresentar, e assim fiz, proferi o meu nome naquele pequeno silêncio, mesmo antes de desabar sobre mim uma nova torrente, composta por todo o tipo de elogios toscos, os quais não se esperam de ninguém. O homem que primeiramente me guiara pousou diante de mim uma tigela de sopa, ricamente enfeitada, fumegando um maravilhoso aroma   que me fazia esquecer todas as perguntas e todos os elogios toscos. Sorri novamente, proferindo metade da frase de agradecimento dali a cinco colheradas de sopa, – era sopa de cogumelos com gambas. Estranhei comer por ali uma sopa tipicamente nortenha, mas ao fim e ao cabo, não seria difícil de arranjar cogumelos naquela altura do ano, e sendo que o sabor sempre compensava, as dúvida esfumaram-se. Enquanto comia, tentava, sem sucesso, trocar olhares com o Bastos, o Bastos estava demasiado envolvido na actividade delicada de inspecionar os mosaicos do teto, olhando por vezes para uma das três grandes janelas que repousavam timidamente na outra ponta da mesa, e por outras para as velas que continuavam ardendo de tédio, como se estivessem a prestar atenção às conversas da Margarida e da Emília, que parecendo ingénuas me faziam sentir culpada por não ser capaz de acompanhar. 

            Num desses momentos íntimos em que ambos fitávamos as velas, vendo que a sopa estava quase terminada, o Bastos ergueu a voz, havia algo que precisava que eu fizesse e como eu dissera que faria qualquer coisa… eu não me importaria, de certo, de tratar da jardinagem enquanto por lá estivesse, por lá comesse e por lá me vestisse, é que o antigo jardineiro tivera um acidente, e precisavam de alguém com urgência. Perante um pedido deste género não havia como recusar, e mesmo que houvesse, ao recusar eu não teria senão desgosto. 

Comecei no dia seguinte, pela manhã, mais ou menos na mesma altura em que, por uma das janelas do primeiro andar, pela mão do Bastos ia escapando uma Sonata. Na verdade, até me alegrava de cuidar do jardim. A regar, a conversar, a cheirar, e a esculpir passei toda uma manhã, o limoeiro pareceu-me mais vivo quando lhe cortei umas pernadas secas. Todo aquela sensação de inexistência que na noite passada me transmitira parecia-me, naqueles momentos, uma sensação de carinho que, em muitos mimos, devolvi como se cuidasse de um familiar idoso. A forma com que sacudia as pernadas mais altas enternecia-me, como se me quisesse dizer algo mais do que um simples obrigado, como se me quisesse fazer um pedido ou um aviso. Senti o mesmo quando, a pedido do Sanches, cortei algumas pernadas à tal laranjeira, senti-o de forma diferente, recordo que fora ou por Junho ou por Julho. Logo que terminara a cirurgia senti um certo carinho melancólico que não compreendi de todo, até que, pela mesma altura, o pobre do Sanches visse umas plantações arruinadas por corvos que não fizeram caso dos espantalhos que por lá se tinham posto. As plantações foram o menor dos problemas que se seguiram: foram um início. Durante meses, nada cresceu nas plantações, conseguimos comer graças ao gado que era abundante, aos potros e às mulas que iam nascendo bem e aos asnos que se iam vendendo por muitos tostões. A mesa continuava com as chouriças do costume, os ovos do costume, com o pão quente que se cozia a cada três ou quatro dias e com a água pé dos Silvas que se fazia espumar nas canecas de vinho, exceptuando quando era dia de festa, pelas festas haviam sempre reservados uns bons golos do Colares.

 Apesar de estar tudo como de costume, o Sanches perdera o brilho nos olhos, na verdade eu até o compreendia, a horta que ele tanto estimara, e em que tanto trabalhara durante os últimos meses fora destruída, nem as abóboras sobreviveram, quanto mais os morangueiros, ou as plantações mais frágeis?  E depois, com aqueles calores em que tudo seca, até a vontade de labutar,  não fazia sentido começar uma nova sementeira. Contudo, que a sua actividade se restringisse à compra, venda e criação de gado, era-lhe insuficiente, e durante meses não houve dia em que não o víssemos sentar-se à mesa, olhando melancolicamente para as chouriças que se sentavam ali em meia-lua, entre as canecas, como sempre se sentam as chouriças desde que Deus disse: “Faça-se a chouriça” e a chouriça fez-se, tão perfeita e imutável como a conhecemos nos nossos dias. Um fenómeno que se foi intensificando à medida que o tempo passava, até chegar àqueles tempos em que, já da ombreira da porta, assim que as via naquela posição perfeita de meia lua,  tomava  logo pressa em tossir os suspiros apropriados. E então,  se se sentasse em frente de alguma, agarrava-a de imediato e começava a desfazê-la furiosamente, entre as mãos, como que em sinal de desafio: por algum motivo as chouriças deveriam recordá-lo dos animais e da colheita perdida, e tanto se entristecia depois de ver as chouriças desfeitas que tivemos de arranjar um cesto para as esconder, para lhe mostrar que até as chouriças tinham medo dele. Mas esse arfar de sentido de vida perdido não aparecia  só em presença de chouriças, tudo o cansava e tudo o aborrecia, até a bisca feliz ao final do dia se tornara numa bisca macambúzia, em se expeliam cartas, umas caindo fora da mesa, outras voltadas para baixo, poucas com o vagar que lhes era devido. Nem quando perdia, nem quando o acaso lhe consagrava a vitória se alterava, todo ele permanecia imóvel e empedernido à espera de fechar os olhos e cair no sono profundo.

Meses depois chegou uma nova estação, e uma nova sementeira começava a tomar lugar na horta do Sanches, durante algumas semanas o Sanches parecia ter voltado aos seus modos habituais, mas lá pelo inicio de novembro tudo se lhes espumou, e voltou a amaldiçoar a vida e a terra de onde nada brotava, nem a laranjeira escapou às maldições do Sanches, só dera, uns anos antes, uma laranja e mesmo assim era tão ácida que parecia sidra. A tristeza do Sanches foi-se acumulando com o passar dos meses, até que, lá para Março do ano seguinte, ao voltar de uma venda de gado nos confessou ao serão: “Meus amigos, lamento dizer-vos mas vocês terão de sair daqui, a culpa não é vossa, mas já não consigo pôr comer na mesa, tudo o que tento corre mal, vim hoje da venda dos Barbadinhos e não fiz tostão, os bichos que levei morreram quase todos de doença, não sei que se passou ou que se passa comigo, mas não consigo viver assim.”. Todos olhámos tanto com tristeza como com compaixão daquele Jó que até já amaldiçoara a vida feliz, crendo que a felicidade que tivera era o maior dos seus males por não o preparar para aqueles tormentos, mas por muita pena que desse: que poderia alguém fazer para se proteger quando a ordem celeste estava perturbada? E com espirito perturbado de saudade prematura tentei, de imediato, encontrar uma solução para as lágrimas que a minha querida Ricardina, na alcofa ao fundo da sala, tecia  contra uma almofada. Não aguentava a ideia de me separar da irmãzinha do meu coração, e como o Papá adivinhasse os meus sentimentos propôs de imediato, naquela voz grave e decidida com que erigia todas as grandes decisões, que fizesse ele um investimento em novo gado e que cuidassem juntos dos futuros mantimentos. O Sanches  teimou que não achava bem que o ofendessem e que por isso não aceitaria. E teimou tanto que o Papá, que permanecera em silêncio, tornou repentinamente dando-lhe uma bofetada em cheio: “Sê burro, atão oferece o que tem e quando precisa não aceita o pão que lhe oferecem, sê animal, sê burro”. E antes que o Sanches pudesse responder, saiu, voltando meia hora depois com uma sacola de couro que atirou para cima da mesa. “Aqui está a minha poupança, venha falar comigo quando quiser que o gaste, ou então gaste como quiser e não me fale mais, que homem burro, anda Leonor, vamos embora”. E o Sanches não acreditando no que ouvira, disse agarrando o Papá pelo colarinho:

– Mas a estas horas da noite, vocemessê está-se a passar ó compadre? Não o admito em minha casa, oh sê labrego. 

E o Papá com um sorriso:

– Não admite o quê? Você pode admitir alguma coisa? – E deu mais uma bofetada ao Sanches, de maneira a que esse caiu sobre os tacos, aturdido e pasmado com a violência que, em sua casa, lhe dirigiam. – Se não me quer ver sair com a Leonor nos próximo quarto de hora, não seja burro; levante-se e agarre no saco que está em cima da mesa. Perante este ultimato o Sanches, entre lágrimas, levantou-se e confirmou a única decisão possível com um abraço de agradecimento ao Papá. Foi uma cena tocante, que durou apenas o quanto uns pensamentos podem durar, acariciei o tronco do limoeiro com complacência, o violino ainda soava pelo primeiro andar, faltava para a hora de jantar, a chuva tirara-me trabalho, recolhi ao quarto, e voltei a encostar-me ao travesseiro, apreciando a melodia que tal como a vida se ia agora enroscando em círculos pachorrentos numa despreocupação feliz. 

Senti passados instantes que alguém batia à porta. Levantei a cabeça, fitando o cuco silencioso que, repousando na parede defronte da cama, marcava a uma hora e um quarto, deixara-me dormir, não havia dúvida. Respondi que já ia, e num salto apressado, pousei diante do espelho, penteando-me sem muito aprumo, apenas para que se não notasse o pequeno delito que cometera logo no primeiro dia de trabalho. Abri a porta, simulando um sorriso eufórico, era o mordomo que conhecera na noite passada e que vim a reconhecer como sr. Paulo. Era hora de almoço e como não me vissem no jardim, mandaram-me procurar ao quarto, seria para se chatearem comigo enquanto almoçavam? Seria porque me supuseram doente? Não era, queriam que os acompanhasse ao almoço, tanto nesse dia como nos que se seguiriam. Surpreendi-me, vendo que a mesa já tinha um prato posto para mim, mesmo ao lado do Bastos. Acontece que apesar de trabalhar para eles, eram tão amáveis que não me supunham senão uma convidada. Senti-me escaldando, com certeza de que ruboresci de embaraço, todos os olhos se pousavam em mim, até os do sr. Paulo. Sorri e sentei-me, resolvi dissipar as atenções perguntando às irmãs pela história por de trás do leque índico, foi  uma boa resolução, as aventura do pai de Margarida desabaram sobre a sala de jantar, trazendo a todos uma sensação de desinteresse e de tédio. O sr. Teixeira, que antes conhecera como o homem que lia o tratado de astronomia, tentou interrompê-las, mas a tempestade era demasiado violenta, e depois das aventuras que tinham a ver com o leque, fizeram chover umas outras que tinham a ver com leques de outras pessoas, até o leque da rainha de Espanha tinha uma história importante e conhecida! E assim se passou o almoço em que quase me convenci de que em torno da História do Leque se havia desenvolvido uma ciência. 

Depois de almoço, fui sentar-me  perto do Limoeiro, apanhando umas gretas daquele gélido sol de inverno, que só vale pelas caricias suaves que nos faz, quase como se os raios fossem um véu invisível,  circundando o corpo e afagando-o de mimos muito mornos e muito suaves. E assim me quedei, nesses estrafegos ociosos em que uma pessoa suspira de contentamento, como se nunca na vida tivesse tido uma preocupação. Os mesmos em que todas as grandes resoluções da vida, como que irrompendo do coração, alagam as faculdades do pensamento, aparecendo primeiro como as imagens nítidas de uma memória e depois  avançando com a inquietação com que vão se alastrando, prologando-se em fantasias felizes e exigentes, que num estado de uma febril irreverência, tudo querem consumir em prol da imagem com que aparecem. E que resoluções tão belas as que na mente se me iam semeando, eram imagens minhas a fazer a jardinagem feliz enquanto o Bastos dançava com o violino em torno dos lílios e das margaridas, com as irmãs aplaudindo no fundo, por detrás do grande leque, que agora ainda parecia maior, e depois vinha o sr. Paulo trazer uns sumos no verão e ao colher os copos do tabuleiro eu e o Bastos olhávamo-nos e roçávamos as mãos um no outro com o pudor de quem está a ter intimidades secretas. Mas depois voltei à realidade, e senti-me tanto nervosa como culpada por ter imaginado coisas tão atrevidas com um homem que acabara de conhecer e que, tendo-se dirigido a mim de forma imprópria, me deixara enamorada. Definitivamente ele teria de ser o culpado, não poderia de haver outro, ele é que me seduzira de forma imprópria quando se aproximara para fechar a janela, eu teria de ser uma vítima, não podia ser de outra maneira. E com essas convicções me levantei, cerrando o punho sobre uma folha perdida, decidida a dali em diante, ser extremamente fria para com o Bastos. Mas… Oh! A minha decisão durou tanto tempo quanto o não vi. Ainda nessa tarde, enquanto estava sentada sobre as escadas, o Bastos apareceu, estendendo-me a mão e oferecendo-me um passeio pelas redondezas, como ainda não fosse de noite e como tivesse esquecido as resoluções púdicas, aceitei de imediato, tomando-lhe o braço. 

Andámos por um trilho de ervas secas até chegar a uma clareira em que havia uma grande pedra, erguida tal como  um monumento. O Bastos aproximou-se e tirou o chapéu, dizendo à medida que se sentava, junto à pedra, de costas para mim para mim: 

– É aqui que venho para enclarear as ideias.

Ele tinha um olhar sublime, de filósofo de outras eras. Aproximei-me e sentei-me também, tentando continuar-lhe o pensamento:

– Para fugir à penumbra?

E ele com um sorriso:

– Sim, para fugir da penumbra… Se soubesse o quanto, é difícil por vezes, escapar de nós mesmos…

Respondi segurando-lhe uma da mãos com as minhas duas, ele olhou-me enternecido com o olhar dorido de quem muito oculta. E suspirou:

– Se um dia… 

– Se um dia..? – Repeti, olhando-o, fixando o olho mais escuro, que a luminosidade de um sol  poente parecia ter ruborescido. 

            E ele voltando ao sorriso meigo com que na noite passada se aproximara de mim:

            – Não é nada, não se preocupe, voltemos num outro dia, que já está a escurecer.

            – Sim… Está a escurecer… – Tornei afagando-lhe o rosto. – Mas fiquemos só mais um pouco. Ainda agora chegámos… 

            Mas, à distância, os ramos iam-se preenchendo pelos pequenos vultos das aves diurnas, os corvos crocitavam como que enunciando o ressurgir da Estrela-da-tarde, e o vento ia-se tornando mais ríspido, de maneira que o Bastos, já de casaca abotoada, não me ouvira, erguendo-se imperioso e pronto a abalar. Levantei-me também, pousando-lhe sobre a cabeça o chapéu de que se havia olvidado. Agradeceu-me e fomos voltando pelo mesmo trilho, ele por diante com as mãos enterradas nos bolsos, eu por atrás com as mãos atrás das costas, visualizando aquele momento eterno em que cruzámos o olhar. Preocupava-me o que ficara por dizer, por alguma razão parecera-me que nunca voltaríamos a conversar em termos tão íntimos. Não estava completamente errada, no dia seguinte, o Bastos foi de viagem e por três longos meses pensei que nunca mais saberia dele. 

            Desde que o Papá e o Sanches decidiram fazer uma viagem para investir a sacola de couro que não houvera viagem que não me inquietasse; a ideia de viagem tomara, para mim, um simbolismo amaldiçoado. Lembro-me que foi durante um almoço, lá para inícios de outubro, quando revelaram que estariam fora por uns poucos dias. Felizmente não nos enganaram e não demoraram mais de semana e meia, eu estava, através da janelinha da sala, observando a Ricardina que se sentara, não havia muito tempo, sobre a cerca do curral, quando se começaram a escutar sobre o vento as gargalhadas dos dois homens felizes, chegando em cima de um belo macho, todo albardado de mantimentos para as próximas semanas. Tinham sido bem sucedidos, os vários tratos que fizeram no decorrer de dez dias culminariam em que entre duas e três semanas fossem chegando pastores com novo gado. O curral voltou a encher-se e o Sanches voltou a ficar alegre, tamanha era a alegria do Sanches que as chouriças puderam sair do cesto e voltar para a posição que naturalmente ocupavam, entre as canecas  e as tigelas, e como dantes sucumbissem perante aquele olhar enfurecido, agora sucumbiam perante o apetite normal do Hércules que todos conhecíamos. Mas a felicidade não era para durar muito tempo, o gado não se deu, e embora não seja hábito começar a criar pelos finais de novembro, não é costume que se perca tudo, ou  pelos grande parte. Os começos desta calamidade deram-se numa quinta-feira em que o Sanches começara o dia berrando agarrado a uma galinha infeliz, berrou ainda mais quando foi a hora do jantar, levantando-se com um olhar esgazeado contemplando a canja que sobejara na noite passada. O Sanches não podia comer a galinha, tinha de ser outra coisa, fritaram-se ovos para acompanhar as chouriças, mas ninguém deu conta de que os ovos também seriam proibidos, e então, o Sanches, levando as mãos à cabeça saiu como um louco, acreditando que o mundo estava contra ele. O Papá que durante todo esse tempo permanecera, de cabeça baixa, e em silêncio levantou-se anunciando que iria falar com o Sanches, mas a conversa nunca aconteceria, abrindo a porta, tal como uma das muitas folhas que pelo vento se deixam sacudir, também o Sanches se deixava sacudir, inerte, pesado, preso à árvore por uma corda que se enrolara à volta do pescoço. Foi ele, o último animal que deste azar morrera, não houve desse momento em diante uma galinha que não morresse de idade, porque ninguém naquela casa voltara a comer canja. E o mundo continuou, sem que a felicidade voltasse, até que por muitos acasos do destino, daqueles que não se podem reproduzir a não ser numa outra história, cheguei ao solar de Monchique, naquela noite que pensei não vir a contar. E como pude vir a contar, contarei também do verdadeiro mistério do solar de Monchique.

            Pelos três meses em que o Bastos esteve fora, nada de misterioso aconteceu, as irmãs continuavam a disparar orações, o sr. Paulo,continuava a ser um mordomo silencioso e correcto e o Sr. Teixeira continuava a ler tratados aborrecidos. Os dias passavam por mim ainda mais pachorrentos e ociosos do que de costume, começava cedo os trabalhos de jardinagem, mas agora cada vez com menos paixão, como se a ausência do violino que soara uma vez pelo primeiro andar – e que assumi que sempre soaria – fosse a ausência de vida, como se, sem ele, o trabalho de jardinagem deixasse de ter importância, fosse algo acessório e pouco interessante. Por ironia, nunca o limoeiro me parecera mais verde e mais vivo, e por isso nunca depois desses tempos passei tanto tempo descansando por baixo de uma árvore. E como passasse tanto tempo descansando, consumida pelos momentos inteligíveis que vivia à sombra do limoeiro, pensando em coisas que nunca aconteceriam, também não repararia em nada do que poderia ter acontecido e assim nesses três longos meses, que duraram apenas um pensamento, tudo permaneceu como seria de esperar. Mas este ritmo seria quebrado numa calorosa tarde de agosto com a volta do Bastos… Quando voltou senti-o diferente, senti-o mais próximo e menos reservado; até ao fim do mês fomos saindo muitas vezes, ele falando muito; da viagem, de histórias de amigos que tinha fora do país, de coisas que gostava, e até quando não falava, falava improvisando umas frases no violino. Eu gostava muito, e sentia-me mais próxima dele, mas por outro lado não me sentia bem, alguma coisa parecia diferente num mau sentido. Era como se a minha intuição me dissesse para ter cuidado, e tentei ter cuidado… tentei mostrar-me mais distante, mas, afastando-me eu, aproximava-se ele, correndo para mim com frases melosas e uns mimos diferentes.

            Foi então que, uma vez, decidida a falar-lhe, subi as escadas e dirigi-me pela primeira vez aos seus aposentos, era o inicio da manhã, e como não respondesse à minha chamada, resolvi entrar e arrependi-me de imediato. O quarto tinha duas salas, a primeira comportando a cama, o guarda-fato, a sapateira e uma pia com espelho, nada de que se pudesse estranhar. Percuti a segunda porta, e como não respondesse também esta me caberia abrir, e que veriam os meus olhos senão uma cena grotesca, que desafiaria a sanidade de uma jovem inocente negando-lhe para sempre a crença e as esperanças num futuro próspero num sitio como aquele. Era o horror, corpos mutilados, pendurados como porcos num talho; tive vontade de gritar, e gritaria se não sentisse aquela mão que eu agarrara com extremosos mimos a tapar-me a boca, silenciando o ato imprudente, a que ninguém jamais poderia acorrer. Resignei-me, derramando lágrimas ora de impotência ora de ansiedade, mas cedo parei, a serenidade e o carinho com que ele me segurava, tapando-me a boca com uma mão, e acariciando-me a barriga com a outra, enquanto se encostava a mim, dava-me uma certa proteção, uma certa paz, fazendo-me quase esquecer aquele cenário grotesco que estava diante dos meus olhos. Ele chegou a cara e, beijando-me a bochecha, indagava carinhosamente se já estava mais calma. Como acenasse afirmativamente o Bastos destapou-me a boca, sabia que eu não voltaria  a gritar. Ainda sem dizer nada, voltei-me para ele, de maneira a que lentamente, e sem interromper o silêncio, colheu com as pontas dos dedos o que restara de uma lágrima. E neste momento em que nos olhávamos fixamente, tal como dois amantes, eu levantei a voz, ainda num tom de soluço, eu queria saber o porquê. Ele sorria, estranhando que fosse a primeira vez que eu me preocupava com aquilo, como se eu já tivesse conhecimento do que ali se passara, como se eu devesse de saber. E infelizmente eu sabia, sem nunca ter dado conta, levei as mãos à boca quando me apercebi de que só poderia haver uma solução: por apenas um motivo ele me faria essa afirmação, e indagando eu perguntei, quase em tom de suplica:

            – Mas… será que, será que… Não pode ser, isso seria horrível, vocês… não o fariam pois não?

            E ele avançando sobre mim:

            – Não importa, pois não? É apenas um passatempo e os jantares nunca lhe couberam mal, pois não? Você ama-me, minha Beatriz.

            E eu, recuando, com as mãos sobre os lábios:

            – Beatriz Quem lhe disse isso? Não posso, deixe-me sair, não acredito que… Não pode ser! Por favor, deixe-me ir. 

            Mas ele, avançando a passos mais largos, tomou os lábios que com tão grande zelo eu defendia, e amoleci deixando-me cair, sibilando laboriosos “Não pode ser…”. De certo, não podia ser e levantei-me com uma outra força, mirando-o nos olhos e exigindo que me deixasse ir. Ele não respondeu e continuou a observar-me, até tornar as costas para mim e dirigir-se à porta que abriu sem hesitar, com aqueles gestos confiantes e secos que lhe eram próprios. 

– Eu queria-lhe tanto… Mas acabou-se… Vá! E reze para que nunca mais nos vejamos. – Disse, tornado a cara. E eu saí, e fugi passando pelo limoeiro que jazia estendido, um vendaval o arrancara da terra. Sem pensar, fugi na direção da clareira, onde passámos momentos tão felizes, e assim que vi a pedra em que nos sentámos parei e quase resolvi voltar atrás, por breves instantes, quase considerei voltar à vida que até ali levara. Desejei, com todas as minhas forças, nunca ter conhecido o segredo do solar de Monchique,  pela ignorância eu daria tudo, mas isso seria impossível, agora que conhecia não podia desconhecer. E voltei a chorar lágrimas, agora de paixão e de saudade dos momentos da jardinagem feliz. Fui-me quedando nesses devaneios, agora inúteis, até sentir a suave pancada do sr. Paulo, que viera para me indicar a direção da aldeia mais próxima. Agradecendo, acenei com um dorido:

            – Diga adeus ao Miguel, esqueci-me… 

            Ele respondeu: 

            – Com certeza.   

            E fugi por entre os arbustos, correndo na direção indicada, tentando esquecer tudo o que acontecera, em cerca de uma hora cheguei à aldeia da Foia, onde colhi as informações necessárias para fugir para mais longe. Mas, por mais que fugisse, nunca me pude olvidar daqueles olhos, um de cada cor, fitando-me através das trevas que no meu coração se depositaram. Um negro como o breu, outro azul, cintilando como uma colher envenenada de esperança, sempre ali, dirigindo os meus pensamentos, à espera de me consumirem por completo. 

Fim.


[1] Era costume, naqueles tempos, almoçar-se logo ao despertar, jantar-se por volta do meio dia e cear-se ao fim do dia. O pequeno almoço não fazia muito sentido.