Imagem: Ilustração representando a terra sob a forma do vírus COVID-19. Fonte: Pixabay.
Texto do Prof. Doutor Pedro Zuzarte, médico psiquiatra, doutorado em Medicina e Professor Auxiliar da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
O estado actual da pandemia e o regresso ao estado de emergência é uma infeliz necessidade, que reflete a triste constatação que grande parte da população ainda precisa ser mais responsável, educada e ter mais respeito pelas autoridades competentes.
Em última instância não vai ser a qualidade dos cuidados de saúde a ditar o controlo da pandemia, mas o que cada um faz individualmente para impedir a propagação do virus.
Os recursos hospitalares lidam com as consequências da infeção, não contêm a sua propagação. Isso depende sobretudo das acções individuais de cada um para prevenir contágios. E é aqui que falhámos.
Desde o levantamento do primeiro estado de emergência que fomos observando durante meses notícias sobre festas e ajuntamentos ilegais, manifestações de todas as ordens, agrupamento de multidões por encontros políticos, negacionistas e religiosos, eventos desportivos sem respeito pelas regras básicas de distanciamento como o exemplo do Grande Prémio de Fórmula 1 no Algarve aos quais se soma, para ser equitativo as falhas das próprias agências reguladoras que permitiram alguns destes eventos ocorrerem. Mas bastou olhar para cafés e bares durante estes meses, onde foi visível a progressiva negligência das medidas recomendadas de distanciamento físico e desvalorização no uso de máscaras. O que está agora a acontecer, infelizmente, não é uma surpresa.
O primeiro estado de emergência foi inevitável. O actual (e os próximos) é o preço a pagar pela falta de responsabilidade individual no combate à pandemia. Mas também pela falta de pensamento crítico que permite ver além dos populismos, negacionismos, teorias de conspiração e demagogias. Para além do facto de se ignorar (por vezes até desafiar) as regras básicas de conduta determinadas por quem é especialista no assunto. Regras crescentemente ignoradas nos últimos meses, e agora o resultado está à vista.
Mas o que se está a passar não era inevitável!
Temos países que mostram claramente ao dia de hoje, no pico da pandemia, como a interrupção da transmissão individual conteve o problema. O (infeliz) exemplo da China que impôs a dita “responsabilidade individual” por meios coercivos e ditatoriais – que obviamente ninguém desejaria que fosse a nossa realidade – mas que nos faz refletir sobre este assunto. Há uma razão pelo qual no país originário da pandemia, o país mais populoso do planeta (!) a situação está sob controlo. E permitam-me cortar aqui algum argumento conspiratório de que “devem ter uma vacina secreta e faz parte de um plano maléfico da China para dominar o mundo”. Vamos então refletir sobre o (feliz) exemplo da Nova Zelândia. País onde não foram preciso medidas ditatoriais para que o respeito às medidas políticas e sanitárias fosse acatado globalmente. A contribuição individual de cada cidadão naquele país faz com que, ao dia de hoje, no pico da pandemia a nível mundial existam APENAS TRÊS casos reportados em todo o país. (E pelo que consta, existem torres de 5G na Nova Zelândia…)
No extremo oposto temos o suposto país mais “evoluído” do mundo: os Estados Unidos da América. Também o país mais evoluído na demagogia, negacionismo, teoria da conspiração, e manipulação de informação. País onde observamos durante meses ações criminosas no desafio às autoridades sanitárias competentes, de movimentos anti-máscara até incentivos feitos por certos grupos para a invasão de hospitais para “provar que a Covid-19 é uma fraude conspiratória”!
Temos então que ao dia de hoje o país líder do mundo em todos estes aspectos, é o país líder também nos contágios à escala planetária, com uma mortalidade avassaladora e com algum dos números mais devastadores sobre a pandemia Covid-19 a nível mundial.
Numa sociedade em que cada um se julga uma autoridade de saúde com as opiniões que debitam nas redes sociais, e num mundo onde parece que cada um precisa de ver com os seus olhos para crer nas informações passadas pelos especialistas, então devia bastar olhar para estes dados óbvios e refletir sobre eles.
Mas quem ainda precise de ver para acreditar, talvez devesse fazer voluntariado pelas unidades de cuidados intensivos do país, ou nas linhas de atendimento, rastreamento e orientação dos infectados por Covid-19 que explodem nos dias de hoje. Algo que infelizmente só vai piorar se as pessoas não mostrarem algum grau de contenção e colaboração com as medidas recomendadas por quem tem essa competência. Medidas agora que infelizmente tem de ser impostas e já não recomendadas!
Não interessa muito o que não se fez, mas o que se fará. Veremos como corre daqui para a frente.
Entretanto os profissionais de saúde estão cansados e estamos apenas no início da segunda maratona. Não tenho dúvida que se vai manter a luta que, talvez contrariamente ao que muitos pensem, nunca parou. Espero que cada um reforce também a sua luta pessoal. Os cuidados de saúde não vão ser suficientes para o que aí vem, se não existir responsabilidade individual.
7 de novembro de 2020