Imagem: o Professor Jean-Luc Marion, da Academia Francesa. Fotografia de Aymeric De La Toune. Fonte: Wikimedia Commons.
Ensaio de Andreas Gonçalves Lind, SJ. Revisto por Miguel Ribeiro.
No passado dia 1 de outubro, o Prémio Ratzinger 2020 foi atribuído ao filósofo francês, Jean-Luc Marion. Em representação da Fondazione Vaticana Joseph Ratzinger e na qualidade de presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, o cardeal Gianfranco Ravasi recordou que este prémio procura reconhecer leigos católicos cuja obra promova a “razão alargada” que Bento XVI tanto apregoava. A fenomenologia de Marion merece, portanto, este reconhecimento ao ensinar-nos a pensar a presença e a manifestação de Deus após o anúncio nietzschiano da sua morte definitiva.
De facto, ao assumir o método fenomenológico, na esteira de Husserl e de Heidegger, Marion revela-se capaz de se distanciar dos ditames da metafísica tradicional. E, dessa forma, ele é capaz de interpretar a crítica de Nietzsche não tanto como a afirmação de um ateísmo inultrapassável, mas sobretudo como uma desconstrução de todas as noções idolátricas de Deus.[i] No fundo, “a morte de Deus” mais não é que o “fim da metafísica”, o perecer dos seus conceitos, dos seus deuses. Com efeito, enquanto pensador que filosofa às marteladas, tal como ele próprio afirmava, Nietzsche apenas destruía, ou tentava destruir, todos os ídolos. Trata-se, no fundo, de abandonar toda a abordagem que tem como ponto de partida a definição racional de essências abstratas que não provém da vida, nem são capazes de a gerar ou estimular. Segundo Nietzsche, essencialmente platónico, o deus metafísico dos filósofos parece ter-se reduzido, ao longo da história ocidental, a uma conceção teórica e abstrata, afastada das vivências concretas que nos são dadas a experienciar neste mundo. E é por isso que conformar a nossa vida aos ditames desse deus é matar o que de melhor existe em nós. Sendo, pois, omnipotente, omnisciente, Ato puro, Infinitamente Bom ou transcendente, esse Deus facilmente se separa da concretude que caracteriza as nossas vidas. Trata-se de um deus conceptualizável que se pensa de uma forma puramente abstrata. E, não obstante a sua racionalidade, esse deus dificilmente se manifesta nos fenómenos aos quais temos acesso neste mundo. É por isso que Nietzsche procura destruir toda esta metafísica que cria um deus abstrato ao qual devemos conformar toda a nossa existência. Não se trata de uma simples desconstrução, pois a martelada contra a metafísica realiza-se em prol de um vigoroso enaltecer da vida que em nós habita e que desejamos no mais fundo de nós mesmos.
É neste contexto que Marion observa, não sem perspicácia, como a desconstrução nietzschiana abre subtilmente o horizonte a novas formas de pensar Deus, para além da “questão do ser”.[ii] Radicalizando a lógica interna ao princípio husserliano, ainda com resquícios de metafísica, segundo o qual “a tanta aparência, tanto ser”, Marion propõe o novo princípio « autant de réduction, autant de donation » (isto é, “tanto de redução, tanto de doação”).[iii] O que surge num horizonte de fenomenalidade, ou seja, o que aparece, situa-se necessariamente na dinâmica da doação. O que se mostra dentro do horizonte da fenomenalidade à qual temos acesso tem necessariamente de ser dado, de se dar, e é nessa lógica de uma dádiva primordial que todo e qualquer fenómeno poderá tornar-se completamente inteligível. Por isso, é legítima uma filosofia, ou mais precisamente uma espécie de fenomenologia, que se desenvolva a partir da lógica interna da doação, do dom dado, acolhido, integrado, devolvido…
Enquanto Derrida, afastando-se da fenomenologia da doação, desconstrói a noção de ‘dom’, a partir de uma gratuidade tão desinteressada que o faz desaparecer, tornando-o mesmo impossível em qualquer horizonte de fenomenalidade, Marion mostra que aquilo que é dado, o doador no seu gesto de dar, assim como o destinatário no acolhimento de receber, nunca desaparecem simultaneamente de cena.[iv] Além disso, apesar de não exigir reciprocidade, a gratuidade da doação não significa ausência da satisfação que o doador e o destinatário podem sentir no ato de dar e receber o que quer que seja.
Dessa forma, presente em todo e qualquer fenómeno, a lógica da doação distingue-se inexoravelmente da dinâmica intrínseca às trocas comerciais. Presente em todo o fenómeno possível, o ato de dar e receber mostra como o que é dado não se reduz a um objeto tangível, visível ou conceptualizável. Trata-se, pois, da própria energia, da atenção prestada ao outro… numa palavra: no amor imaterial que, uma vez dado, jamais terá retorno no sentido de regresso à situação que precedeu a doação.
Esta lógica da doação está intimamente ligada à noção, que o próprio Marion engendrou, de “fenómeno saturado”. Enquanto Husserl considera que a consciência subjetiva desempenha sempre um papel fundamental na criação do sentido do fenómeno, Marion considera a possibilidade de uma “saturação” que nos é dada viver. Neste caso, o termo “saturação” não deve ser compreendido num sentido pejorativo, dado que em Marion esta noção se refere apenas a fenómenos cujo sentido não é construído pela atividade da consciência subjetiva: o sujeito limita-se a acolher uma plenitude inesgotável de sentido que nunca se reduz totalmente ao que a consciência abarca e pode construir. Torna-se assim possível, para Marion, conceber uma manifestação cujo sentido ultrapassa sempre as capacidades internas da consciência subjetiva. Como um fenómeno de tipo “saturado” revela-se o experienciar-se a si mesmo enquanto corpo afetivo, o amar uma pessoa, um ideal ou até o próprio Deus.
Compreendemos, assim, porque razão Marion optou por se focalizar na análise do “fenómeno erótico”.[v] Pois é nesta experiência que melhor se manifesta a dinâmica da doação primordial. De facto, ao descrever a aproximação e o progresso do amor entre duas pessoas diferentes, facilmente reparamos que, muitas vezes, o ato de oferecer coisas materiais ao ente amado simboliza uma dádiva mais fundamental da ‘não-coisa’ efetivamente dada: o tempo, a afetividade, a fidelidade, a exclusividade de um cuidado ou de uma ternura especial… É por isso que fenómenos tais como a prostituição ou a pornografia pervertem o desejo que se revela no fenómeno erótico, pois reduzem a dádiva à inteligibilidade da mera troca comercial e à objetividade própria das coisas visíveis e quantificáveis.
Bem ao jeito de Bento XVI, Marion considera que uma separação dualística entre eros e ágape não permite tornar o amor real inteligível. Publicado em 2003, ou seja, dois anos antes da primeira encíclica do atual Papa emérito, Deus caritas est, Le phénomène érotique mostra a impossibilidade de o eros ser vivido sem ágape e vice-versa. Quando alguém se abandona completamente ao desejo de amar outrem e de ser por este amado, procura unir-se a ele. Estar unido ao ente amado, que por sua vez nos ama, é possuí-lo e deixar-se possuir por ele. O desejo do prazer experienciado na possessão do outro realiza-se no ato de a ele se abandonar completamente, até ao ponto de se ser fruído na carne do ente amado. E assim é em todos os atos de amor autêntico. Mesmo quando se age em prol de uma pessoa concreta ou de um ideal a alcançar, fazemo-los a partir de um desejo, de uma atração que sentimos relativamente a essa pessoa ou ao Bem que aspiramos.
Confrontamo-nos, então, com um tipo de sujeito que Marion explicitamente nomeia de ego amans. A partir desta noção, e em fidelidade para com as descrições de tipo fenomenólogo, Marion chega a uma conceção antropológica muito específica, que contraria a noção de um sujeito forte e autónomo. Não só não somos autónomos como não desejamos sê-lo. Não só somos frágeis, como a fragilidade é a condição que nos torna hábeis para amar e para sermos amados. O dom primordial resume-se na experiência de nos encontrarmos situados na contingência deste mundo e de sermos um corpo afetivo. Apesar da sua indelével finitude, a experiência de habitar um mundo a partir de um corpo que se faz de afetos, como o nosso, é-nos dada independentemente de o desejarmos. E, além disso, tudo o que possamos realizar nesta vida tem como condição de possibilidade a dádiva primordial de nós mesmos situados neste mundo e nas relações que tecemos com os nossos entes mais queridos.
Gerada ao interior da lógica do dom, antes de se sentir a si mesma na qualidade de um “eu posso”, a pessoa humana pode legitimamente relacionar-se com um Deus que permanece “testemunho” do amor que se vive aqui na terra e se revela como condição de possibilidade da plena realização do dom que se apresenta no fenómeno que somos.[vi]
A filosofia do dom chega a Deus da mesma forma que chega ao outro, isto é, à comunhão. Por isso, o célebre slogan, geralmente atribuído a Sartre, segundo o qual “o inferno são os outros” revela, ao interior da fenomenologia do dom, um contrassenso, já que o inferno se define por uma radical ausência de dom. Sem dom, ficamos sozinhos neste mundo. Matar o dom é enclausurar-se no solipsismo do próprio ser. Só se elimina o dom numa total ausência de um nós. É por isso que o inferno só pode ser a ausência de toda a alteridade: « l’enfer, c’est l’absence de tout autre ». É quando habitamos o mundo como ilhas isoladas que experimentamos o vazio da solidão. E é aí que o inferno nos mente: « l’enfermement »é « l’enfer me ment »[vii].
[i] Cf. Jean-Luc Marion, La rigueur des choses. Entretiens avec Dan Arbib (Flammarion : Paris, 2012), pp. 173-178 ; cf. Jean-Luc Marion, L’Idole et la distance (Grasset : Paris, 1977), pp. 49-105.
[ii] Cf. Jean-Luc Marion, Dieu sans l’être (Presses Universitaires de France : Paris, 1991).
[iii] Cf. Jean-Luc Marion, Étant donné : essai d’une phénoménologie de la donation (Presses Universitaires de France : Paris, 1997), p. 23.
[iv] Cf. Marion, La rigueur des choses, p. 132-135.
[v] Cf. Jean-Luc Marion, Le phénomène érotique (Grasset : Paris, 2003).
[vi] Com Marion, rasuramos o seu nome, não por blasfémia, mas por estarmos bem conscientes da incapacidade do nosso aparelho logico-conceptual em abarcar a plenitude divina.
[vii] Cf. Jean-Luc Marion, Prolégomènes à la charité (Grasset : Paris, 1986 [2018]), p. 42-43.