Editorial da Edição Nº 83

Imagem: Ilustração de Inês Madeira (instagram.com/insmadeira), que colaborou connosco nesta edição.

Texto da Direcção d’ Os Fazedores de Letras. Revisão de Miguel Ribeiro.

Apenas um pouco mais de quatro meses passados desde a publicação da edição nº 82 d’ Os Fazedores de Letras (9 de Julho de 2020), eis-nos com uma nova edição à porta e confrontados de novo com a exigência de reflectir sobre o processo que nos trouxe até aqui, sobre o que trazemos agora a lume e sobre o caminho que se segue. Creio que podemos todos dizer que estes meses têm sido de uma aprendizagem contínua, e certamente fazemos deles um balanço, no geral, muito positivo. Neste editorial, queremos dizer algo sobre essa aprendizagem, as reacções, respostas e comentários que nos chegaram e sobre algumas questões que entretanto se levantaram. Queremos também falar brevemente de alguns acontecimentos maiores que tiveram lugar entre Julho e Novembro de 2020 – que não se cingem à pandemia, ainda que hoje, por vezes, de pouco mais se fale. Lembraremos, ainda, um princípio básico que defendemos e procuramos, na medida do possível, encarnar. E queremos, por fim, falar um pouco do conteúdo desta edição nº 83.

Falemos, então, do primeiro ponto. É sabido que Os Fazedores estiveram largamente inactivos, paralisados por dificuldades técnicas e problemas internos, desde meados de 2019. Em Janeiro de 2020, começou a reconstituir-se uma equipa que pudesse dar continuidade ao jornal e foram-se encomendando textos e sondando possibilidades. No entanto, devido aos supramencionados problemas técnicos, só a 26 de Junho passado recuperámos o acesso ao nosso site. Tratou-se, a partir de então, de agir com celeridade: foi marcada a data de 9 de Julho para a publicação da nova edição e trabalhámos arduamente durante esses catorze dias para que esta consistisse numa rentrée tão triunfal quanto possível. Em termos de qualidade, foi certamente um sucesso, ainda que continuemos a sonhar fazer sempre mais e melhor. Estatisticamente, também foi um sucesso com o público, equiparável ao melhor do que se havia feito até então em 2018/2019. Mas era – e continua a ser – preciso transformar uma pequena vitória num triunfo definitivo e assegurar que não se perde a guerra depois de se ganhar a primeira batalha.

Nesse aspecto, estamos a trabalhar em vários planos, melhorias e novidades que anunciaremos a seu tempo. Mas estamos, também, muito satisfeitos com o apoio que a comunidade da FLUL e da Universidade de Lisboa no seu todo nos têm dado – basta lembrar que a edição que agora se apresenta, o nº 83 (!), teve mais submissões e incorpora mais textos do que qualquer um de nós se lembra de alguma vez ter sido o caso. Recebemos, também, um promissor encorajamento para perseverarmos em defender as causas que adoptámos; a este respeito, aproveitamos para agradecer publicamente a todos os leitores que nos escreveram saudando a nossa cobertura da guerra em Nagorno-Karabakh.

Houve, no entanto, também algumas críticas, algumas delas muito acerbas, a que achamos que devemos uma resposta considerada. Sem dúvida, o que suscitou mais críticas foi a nossa incorporação de conteúdo “cristão” e/ou “católico” – a este respeito, podem-se ver as reacções, no Instagram e no Facebook, à nossa partilha nas redes sociais de uma notícia do Catholic Herald sobre a nomeação de um bispo católico russo e de uma crónica de Frei Bento Domingues, O.P., do Público. A desproporção e violência dos comentários a esses dois posts patenteiam o quão intolerante pode ainda – ou pode já – ser mesmo uma comunidade como a FLUL. É igualmente de notar que essa intolerância vem, muitas vezes, de pessoas que se dizem paladinas da tolerância e da diferença. (Cremos que não é especialmente polémico dizer isto, ainda que possa ser algo inabitual). Supomos que a hostilidade demonstrada nessas ocasiões venha, em igual medida, da suspeita de que Os Fazedores de Letras se possam estar a tornar “católicos” e de uma profunda e teimosa ignorância acerca daquilo que significa ser cristão ou cristão católico – de que outro modo se poderia objectar à divulgação de uma crónica de um frade mendicante conhecido por ser progressista e de esquerda?

Quanto à suspeita de que o jornal dos estudantes da FLUL se está a tornar católico, devemos, em boa verdade, dizer que não corresponde à realidade. O que somos é, de facto, pluralistas que acham que é saudável o diálogo honesto de opiniões diferentes e que lidam bem com o facto de haver quem não partilhe das nossas crenças, persuasões, intuições ou opiniões. Claro que admitimos que temos publicado bastante conteúdo escrito por cristãos ou acerca de temas cristãos – mais do que alguma vez sucedeu na história d’ Os Fazedores, de cujas edições, entre 1993 e 2015, o cristianismo esteve maioritariamente ausente – mas tal sucede apenas por ser nossa intenção ajudar a devolver à universidade liberal em que acreditamos uma componente que é sua desde o século XIII: a contribuição intelectual e pastoral activa de pessoas cujas vidas foram moldadas por e consagradas a Cristo. Não deve ser novidade para ninguém instruído que as universidades, desde o seu início e durante uma grande parte da sua história, foram lugares privilegiados de encontro, diálogo e aprendizagem mútua entre as esferas religiosa e laica da sociedade e que em particular os frades mendicantes franciscanos e dominicanos (bem como, mais tarde, os jesuítas) deram um cunho característico ao clima universitário e impulsionaram o ensino ministrado nas universidades, europeias e não só. Isso ainda hoje se verifica, em lugares tão diferentes quanto Oxford (onde há dois permanent private halls assegurados um por frades dominicanos e outro por monges beneditinos), Cambridge (onde muitos frades, por exemplo do convento dominicano de São Miguel Arcanjo, foram e são ainda professores e tutores) ou, claro, Roma – já para não falar de lugares fora da Europa. E, como já dissemos (cf. Editorial nº 82), basta citar o exemplo da nossa própria Faculdade de Letras, onde franciscanos como o Pe. Cerqueira Gonçalves ou o Pe. Costa Freitas, já para não falar do jesuíta Pe. Manuel Antunes, foram professores e estrelas brilhantes numa constelação multicolor. A nosso ver, a amputação do elemento cristão da cultura universitária (ou da mais vasta cultura europeia, como bem observou o Papa Bento XVI) apenas pode resultar numa desfiguração dessa cultura e em perdas civilizacionais trágicas e, como tal, não é desejável. Poderá ser algo ingénuo esperar que a lição da História, o bom-senso e a boa-vontade derrotem imediatamente a ignorância e os preconceitos néscios que alimentaram e alimentam muito da modernidade e pós-modernidade, mas há que travar o bom combate.

Como isto dá a entender e já noutros lugares reiterámos, a única coisa que queremos ser é um jornal diversificado, interessante, polifónico, de qualidade e que abranja, pelo menos, todas as artes liberais e, idealmente, todas as áreas disciplinares da Universidade de Lisboa. Como tal, a nossa abordagem pretende ser marcada pelo rigor, pela qualidade e mérito dos trabalhos, pela diversidade e polifonia das vozes e, claro, pela salutar coabitação pacífica, civilizada e frutuosa de opiniões divergentes e saberes multímodos. O repto que lançamos a todos é: venham participar no diálogo, mesmo que discordem radicalmente dos outros participantes. Neste aspecto, senão noutros, somos irredutivelmente democráticos e, à falta de melhor palavra, cosmopolitas. É, pois, com uma mistura de surpresa ingénua e fastio sabedor, mas com equanimidade, que vamos recebendo notícias de certas reacções ao nosso trabalho. Mas elas em nada nos demovem de continuar a trabalhar na direcção que consideramos certa.

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Falemos agora um pouco de três acontecimentos que tiveram lugar desde que foi publicada a edição nº 82, um dos quais esteve muito presente no nosso trabalho e dois outros que pouco ou nada mencionados foram: a guerra em Nagorno-Karabakh (Artsakh), as eleições americanas e o regresso, em Portugal (e noutros países) ao estado de emergência. Começámos a partilhar, nas nossas redes sociais, notícias sobre a guerra entre as forças arménias e azeris poucos dias depois do início do conflito armado a 27 de Setembro. Não só faz parte dos nossos princípios políticos (cf. Editorial #82 e Complemento ao mesmo) apoiar e promover iniciativas que visem o reconhecimento do Genocídio Arménio de 1914-23 e divulgar a cultura arménia como, também, reconhecemos plenamente a justeza da luta dos arménios de Artsakh pela auto-determinação e independência, que apoiamos. Nesse sentido, não podíamos nem quereríamos furtar-nos a partilhar as notícias da agressão azeri e da guerra e do sofrimento daí resultantes. Prentendíamos, com isso, também, alertar o público português para a questão e, idealmente, galvanizar o entusiasmo humanitário da comunidade da FLUL para acções de solidariedade e/ou para futuras iniciativas relacionadas com esta causa que pretendemos promover. Achámos, também, completamente apropriado, dada a história d’ Os Fazedores de Letras, que entre 1993 e 2002 se bateram desassombradamente pela independência de Timor, estimular as consciências para esta causa igualmente premente. Aproveitamos aqui a oportunidade para lamentar a inércia, a cobardia e a inconsistência da comunidade internacional, que nunca reconheceu o direito dos arménios de Artsakh à independência e à auto-determinação e que, aparentemente, preferiria que a região continuasse a fazer parte do Azerbaijão, com as consequências potencialmente genocidas que daí poderiam advir e para garantir que não cessaremos de trabalhar em prol desta e de outras causas humanitárias.

Quanto às eleições americanas, apesar de alguns (mas não todos) de nós terem opiniões muito vincadas acerca do assunto, no geral optou-se por não participar na histeria colectiva e na enxurrada noticiosa e especulativa que temos conhecido nos últimos meses, em que só o COVID-19 foi tão fértil terreno de jornalismo e pseudo-jornalismo quanto Trump ou Biden (ou ambos). Chegámos a pensar em publicar algo escrito por várias pessoas de quadrantes políticos e preferências eleitorais diferentes, mas ainda não tivemos tempo, dado o trabalho que tem envolvido a preparação desta edição. Não está, no entanto, esquecido e, com o lento dénouement destas eleições, provavelmente ainda virá a tempo. Entretanto, propomos, ao invés, aos nossos leitores que leiam um dos (ou os dois) livros de Peter Frankopan recentemente traduzidos e editados em Portugal pela Relógio d’Água: As Rotas da Seda. Uma Nova História do Mundo (2018) e As Novas Rotas da Seda. O Presente e o Futuro do Mundo (2019).

Quanto ao COVID-19 em geral, como tudo já foi dito, desdito e redito desde Março e como continuamente somos bombardeados com informação, números e tragédias (como as situações absolutamente indesculpáveis que ocorreram em alguns lares), achámos por bem ter tanto a máxima contenção na partilha de informações relativas à pandemia quanto a preocupação de dar material de leitura alternativo aos nossos leitores. Aproveitamos, no entanto, a ocasião para saudar várias das Escolas da Universidade de Lisboa – incluindo a Faculdade de Letras – que permitiram que, dentro dos possíveis, se retomasse um pouco da normalidade da nossa realidade e que as pessoas pudessem voltar às faculdades e institutos, ainda que com a máxima cautela. Tal concessão realça, no entanto, a importância da responsabilidade individual de, sem sacrificar a nossa humanidade, fazermos todos os possíveis para não aumentarmos o risco de certas situações, o que implica os cuidados que todos conhecemos (cf. a este propósito, os dois artigos do Prof. Dr. Pedro Zuzarte que publicámos). Apelamos, no entanto, à calma, à não-cedência à histeria e ao cultivo de uma racionalidade equânime que é e sempre será tão importante. Devemos ainda realçar que, dada a situação pandémica presente, temos a firme intenção, antevendo que os próximos meses serão de grande contenção e se nos afigurarão a todos muito longos, de organizar mais iniciativas online/virtuais em que toda a comunidade possa participar. Mais notícias sobre isso em breve.

Lamentamos ainda que ninguém tenha correspondido ao nosso repto para escrever sobre a importância da liberdade de expressão para a democracia (era esse o valor fundamental que queríamos realçar e que procuramos encarnar). Os Fazedores de Letras estão apostados, como dissemos acima, em contribuir para um clima saudável e honesto de troca de opiniões e ideias e em ser aquilo que jornal deve sempre ser: um órgão de informação probo, plurívoco e estimulante e não, decerto, um escravo de interesses partidários ou ambições totalitárias.

Resta-nos, agora, falar um pouco desta edição nº 83 que ora apresentamos. Desde logo, gostaríamos de salientar a entrevista feita por Lourenço Duarte ao Prof. Pinto do Amaral e as ilustrações que Inês Madeira fez para nós – incluindo aquelas que fez de Tolstoi. De facto, não recebemos, infelizmente, artigos sobre Trotski ou sobre qualquer tema do nosso terceiro proposto em Setembro, mas recebemos três contribuições a propósito do trabalho de Tolstoi: o ensaio excelente de Tiago Ramos sobre A Sonata de Kreutzer, a recensão de João Freitas Mendes a Os Últimos Escritos e as já mencionadas ilustrações, que ficamos especialmente contentes por publicar neste que é o mês em que se comemoram os 110 anos da morte do autor de Guerra e Paz. De entre os ensaios que publicamos, gostaríamos ainda de salientar o de Joana Rebocho, sobre a necessidade de reforma do Direito Internacional, e o do Prof. Pe. Isidro Lamelas, OFM, que mais uma vez nos brindou com um excelente trabalho de sua autoria que revela a vasta erudição do autor. Contos como os de Inês Lagartinho, Grayson Elorreaga e Sebastião Viana (sem negligenciar os outros) darão, estamos certos, muito prazer aos leitores. Salientamos, igualmente, crónicas como as de Márcia Marto, Alice Rodrigues da Silva, ou a do Prof. Gerd Hammer. Nas recensões, chamamos a atenção para os textos de João Bray e Anaïs Silva. E, por fim, deixamo-vos entregues à nossa secção de poesia, cujas delícias também não são de descartar.

Esperemos que gostem e, claro, que estejam presentes no evento de lançamento online e que, quem sabe, venham a escrever para nós ou a trabalhar connosco no futuro.

            Saudações cordiais da

            Tomás Ferreira (Director),

Em nome da Equipa da Direcção d’ Os Fazedores de Letras