Texto de Inês Lagartinho. Fotografia de Sérgio Medeiros.
Da minha janela
Todos os dias, pela manhã, independentemente da hora e das rotinas do dia, o meu olhar era como um imane, parecia mecanizado, a minha visão era logo direcionada àquele pedaço de monumento que conseguia ver da minha janela.
Era como um ritual inconsciente, mas que me alimentava a alma.
Eu gostava do que via, era uma arquitetura barroca e soberba; contudo, remexia com os meus sentimentos, um misto de vazio, medo, luxúria que despertava em mim uma curiosidade inabalável. Daquele sítio eu conseguia ver várias clarabóias onde incidiam os raios de sol. Havia um pequeno varandim de ferro. Viam-se ainda arcos e pequenos bancos, e um piano, arpas e corredores que se ligavam entre si. Ao redor do monumento a natureza tinha abusado da beleza, com árvores gigantescas que serviam de casa às mais diversas espécies de aves e em dias de calor serviam de sombra a quem ali passeava. A esta beleza a mão do homem juntou e harmonizou, com bancos de pedra, repuxos no meio dos lagos e jardins muito cuidados. Havia ainda um parque infantil que fazia a delícia dos mais novos. Da minha janela
Aos domingos e feriados religiosos eu podia ver rituais de fé assistidos por uma hierarquia religiosa, mas que nem todos viviam com a mesma crença. Havia ali algo entre as noviças, havia uma de semblante triste, deixava transparecer dor, que eu queria entender. E, aos poucos, fui captando a motivação através dos olhares, da postura da tristeza, da atitude das mais novas. Não podendo entrar naquele sítio para perceber o que ali se passava, dei por mim a imaginar uma pequena história que agora vos vou contar.
Da minha janela
Felisberta, uma noviça com pouco mais de vinte anos, tinha o sonho de servir a Deus.
Pele clara, sobressaía um olhar meigo e quente, cabelo encaracolado num castanho brilhante que coincidia com o seu olhar.
Usava uma camisa roxa com uma saia aos quadrados. Nunca se esquecia de pôr o seu crucifixo ao pescoço. Tinha entrado para servir a Deus por sua grande vontade.
Quanto à noviça Teresa, sentia-se revoltada pois não estava ali por vontade própria. Tinham sido os pais a decidirem a sua vida; mas quis o destino que a noviça se tivesse apaixonado. Um amor lindo, correspondido, mas que os pais não queriam. Meteram-na no convento, na esperança de fazer dela uma freira e de a desviar do seu grande amor. Teresa usava uma camisa branca com uma saia às pregas e um crucifixo ao pescoço. Tinha cabelo liso, castanho e curto, olhos pequenos, nariz fino e uns lábios carnudos.
Apesar da dor, a noviça era de uma extrema educação e passividade. Da sua boca não saia agressividade nas palavras. Mostrava, assim, um coração puro.
Era na penumbra da noite que tudo parecia ainda mais cruel, as lágrimas mais pareciam pedaços de Coração despedaçado. Junto ao candeeiro escrevia cartas de amor para o seu querido. Amor proibido, mas que ela fazia questão de deixar imortalizadas no papel.
Da minha janela
Ao final da tarde, como um ritual religioso, o seu amado sentava-se no banco virado para o monumento. Prostrado, triste, com um olhar fixo, ficava horas a olhar para as janelas, como quem espera um milagre divino.
O amor do jovem era tão genuíno e puro que, sem saber como, pois nunca o tinha feito, acabava por orar a Deus, pedindo-lhe que mudasse o destino e que a sua musa pudesse cair-lhe nos braços, que pudessem amar, ter uma família. “Misericórdia Deus”.
O relacionamento entre as noviças Felisberta e Teresa era de muito respeito, e era preciso tempo para se conquistarem uma à outra.
A amizade crescia entre ambas e, com o passar dos dias, Felisberta começava a perceber que Teresa não estava bem.
Sentia-a triste, abatida e desmotivada, apesar de cumpridora das suas tarefas. Felisberta queria conquistar a confiança de Teresa, pois sabia que a sua amiga não estava bem.
Certa noite, e já desconfiada que Teresa ficava muito tempo acordada, resolveu surpreendê-la e, sem pensar duas vezes, entrou com uma chávena de chá na mão pelo quarto de Teresa e viu o seu rosto coberto de lágrimas, enquanto nas suas mãos trémulas segurava a caneta e preparava-se para escrever para o seu amor.
Felisberta, calmamente, rodeou a amiga com um forte abraço e murmurou ao ouvido “confia em mim” e foi isso que Teresa fez. Mais calma, contou-lhe a sua história de amor.
(Tinha conhecido o seu grande amor na vila quando, pela altura das festas do Santo padroeiro, o circo chegou. Era um jovem trapezista musculado, de cabelo louro, com um olhar profundo que, ao cruzar-se com o seu, fê-la suspirar e sorrir como já se conhecessem desde sempre. Os dias seguintes foram de encontros e de trocas de promessas de amor.)
Teresa estava apaixonada e tudo ao seu redor era mais cintilante, até que teve de transmiti-lo aos pais; e foi aí que a sua vida desabou, pois não teve permissão para namorar teve de contar, ainda, com a repulsa dos progenitores, por se ter apaixonado por um “Zé ninguém”, um saltimbanco sem eira nem beira.
E daí até a meterem fechada num convento foi um ápice.
Felisberta ficou pensativa e triste pela amiga. Não era possível alguém ser tão penalizada por amar. Todos no convento perceberam que aquela noviça não estava feliz e, entre murmúrios e conversas mais cúmplices, acabaram por compreender que tinham de fazer algo para ajudar a jovem. Muitas foram as ideias para ajudar Teresa, mas nenhuma era brilhante.
Ficou dias a pensar como ajudar a amiga e, sim, tinha de contar à Madre, pessoa de princípios, de semblante sereno, muito reta nas suas decisões, ela era uma boa ouvinte e sempre com uma palavra de coragem e fé, que enchia os outros de esperança. Tinha um ar castiço, era pequena e gorducha. Andava com o cabelo tapado pelo lenço do hábito que envergava. Ao contar à Madre o que Teresa estava a sentir, esta sentou-se e, pensativa, reviveu a sua juventude, quando também se tinha apaixonado por um rapazola giro e simpático, mas, no seu caso, o amor e a convicção que tinha em servir a Deus era mais forte.
Sensível ao que se estava a passar, decidiu que iria conversar com a noviça, para perceber melhor e, se possível, interceder a seu favor.
No decorrer da conversa a jovem conseguiu conquistar o coração da Madre com a sua sabedoria divina. Porque até Deus tinha colocado as palavras certas na sua boca. A velha senhora, com muitos anos de conhecimento, viu que a pequena estava em sofrimento e que a sua vocação não era, de todo, ser freira. Além de que não via o porquê de os pais não aceitarem tão grande amor: “Não te preocupes minha querida, tudo tem solução.”
Da minha janela
Aquele dia era diferente, era um dia de decisões, difíceis para ambas as partes, o que havia em comum eram paixões antagónicas. Teresa apaixonada pelo seu amado e os pais apaixonados pela filha, pelo seu bem e o seu futuro.
Contudo, a conversa com a Madre, cujas investidas eram cada vez mais regulares, deixou os pais apreensivos, estavam desorientados; pensavam que estavam a fazer o melhor para filha, o medo de ela partir para viver a sua paixão com o artista de circo deixava-os com o coração a sangrar.
Não era essa a vida que os pais tinham um dia sonhado para a sua menina, fugia aos padrões ditos “normais” e aceites na família e na vila onde viviam. O falatório multiplicava-se sobre a conduta da menina, agora enclausurada e doente.
A decisão tinha que ser tomada, o amor que tinham pela filha entrava agora num reboliço de conflito do que é certo ou errado.
O amor que ela sentia pelo jovem do circo não tirava a sua fé, e a obrigação que a família lhe impunha não a fazia esquecer o seu grande amor.
Da minha janela
A manhã estava sombria, as árvores faziam um ruído melancólico, próprio de um dia de chuva miudinha, aquela que o ditado diz “molha tolos quando eu estou em casa”.
Poucas pessoas se viam; só mesmo aquelas que tinham a responsabilidade de chegar a horas aos empregos.
A porta do “meu monumento” abriu-se, coisa que não era habitual, pelo menos tão cedo.
A Madre, ao ver o tempo frio, arranjou melhor o seu casaco de malha e, em passo apressado, lá se dirigiu para o seu encontro misterioso. Chegou ao destino; este encontro, apesar de estranho, tinha de ser feito.
A Madre queria conhecer o amor de Teresa, de seu nome Lourenço, queria olhar-lhe nos olhos e ver o mesmo brilho que via nos olhos de Teresa, quando esta falava no amor que tinha por ele.
O acampamento parou, todos estavam admirados com a presença da Madre, mas Lourenço percebeu logo que algo se tinha passado.
Um medo invadiu-lhe o coração, será que a sua amada estava bem? Ficou doente? Onde estaria, foram perguntas repentinas feitas de joelhos em frente à Madre.
“A minha Teresa, por favor diga-me que está bem”.
A atitude tão genuína do rapaz deixava a Madre tranquila, pouco mais precisava de ver, e até o discurso que tinha ensaiado durante a noite ia por água abaixo. Resolveu tranquilizá-lo em relação ao estado de saúde da Teresa que, apesar de frágil e triste, não padecia de nenhuma doença carnal.
No acampamento todos estavam prostrados diante a postura da Madre, também eles queriam saber como podiam ajudar, agora compreendiam melhor a falta de motivação de Lourenço, mesmo em relação ao seu desempenho no circo.
Da minha janela
Decidida a mudar o futuro dos jovens, a Madre foi a casa dos pais. Recebida com carinho e até algumas mordomias, os pais prepararam um lanche com o melhor que tinham. Não eram abastados, mas viviam confortavelmente.
Falou muito direta e sem meias palavras, mas com o cuidado de não os ferir, pois sabia que Teresa era o bem mais precioso que tinham, que por ela iam até ao fim do mundo.
Voltou a declarar o sofrimento e mostrou o seu desagrado quanto à decisão que tinham tomado.
Falou das boas intenções do jovem trapezista e de como estava também a sofrer.
Da minha janela
O dia acordava devagar, com uma calma inigualável, o azul do céu era um manto que cobria a terra.
As árvores nem sequer abanavam, eu apenas ouvia os pássaros e as gargalhadas das crianças diziam-me que havia gente na terra.
Era dia especial, um dia de decisões, a grande reunião com os pais. Todos estavam nervosos mas todos queriam o bem dos jovens, o que tornava tudo mais fácil. Numa sala soalheira, onde o andar das pessoas chiava no soalho de madeira, uma mesa maciça e cadeiras imperiais.
As janelas eram esguias e altas, com reposteiro de flores, e um grande crucifixo na parede contrastava com coleções intermináveis de livros religiosos.
A Madre e a Teresa foram as primeiras a chegar. A religiosa-mor mantinha-se calma, com um semblante sereno e transmitia a Teresa segurança, apesar de esta estar muito nervosa, as pernas tremiam e não sabia muito bem o que fazer com as mãos, ora as apoiava na mesa, ora as traçava ou as levantava aos céus. A barriga doía-lhe e, por vezes, sentia o suor
a escorrer pela cara. Mas a ansiedade não impedia que estivesse segura daquilo que queria, tinha um discurso ensaiado mas o queixo tremia, ela achava mesmo que iria ser atraiçoada pelos nervos.
Segurou com força a caneca de chá que Felisberta tinha feito com muito carinho; mal tinha dado o primeiro gole quando os pais entraram pela sala.
O pai vinha com uma atitude mais calma, que transmitia alguma flexibilidade, porém, sem dizer uma palavra, mantinha as mãos nos bolsos das calças e olhar no chão.
A mãe dava-lhe o braço esquerdo, como sinal de apoio. Tinha um vestido de cetim às flores e, de mala enfiada no outro braço, esboçava um leve sorriso.
O último a chegar foi o Lourenço. Tremia tanto que quase se confundia com um terramoto.
O silêncio na sala era insuportável, trocavam olhares entre si, sem que ninguém conseguisse quebrar o gelo.
Foi então que Teresa se levantou e, em passos lentos, abraçou os pais. Uma mão na cintura da mãe e outra no pai, ambos a beijavam carinhosamente na cabeça e acariciavam-na.
Nos olhos de todos, o brilho das lágrimas não passava despercebido.
Teresa, ao afastar-se dos pais, troca com o seu amado um olhar tão cintilante, de um amor profundo completamente correspondido.
Naquele olhar estava tudo dito, não eram precisas palavras. Toda a sala se arrepiou perante a profundidade de tamanho amor.
A Madre quebrou o gelo, tossiu e pediu à Felisberta que trouxesse chá e biscoitos. Como ninguém sabia muito bem o que dizer, a sabedoria da superior, com sensatez, contornou tudo e todos e, muito subtilmente, foi direta ao assunto.
O pai foi sempre aquele que mantinha a caneca baixa, a mãe segurava a mão do marido como a dizer lhe “calma, a nossa filha tem de ser feliz”. O casal apaixonado trocava olhares entre si.
Pedaços de… nós
E a Madre falava desalmadamente, não dando muitas chances de intervenções e, assim, garantia a conversa sem discussões. A reunião foi toda conduzida pela Madre, de quando em vez interrompida com a necessidade de serem dadas algumas justificações. No ar pairava uma resolução, mas que era adiada com o “vou pensar, preciso de tempo” por parte do pai. Finando a mesma, cada um rumou ao seu destino.
Da minha janela
Os raios de sol entravam pela clarabóia e vitrais, o som das arpas e do piano e a alegria ao redor do “meu pedaço de monumento”, hoje, parecia-me diferente. Seria mais uma ficção minha? Na rua, à sombra das árvores, um grupo de malabaristas fazia as delícias das crianças, tudo estava animado.
A Madre, as freiras, as noviças estavam à conversa com o pai e a mãe de Teresa. Algo se passava, tudo reluzia de felicidade.
Debrucei-me mais um pouco e eis que pela porta grande Teresa e Lourenço saíam de mãos dadas. Todos estavam comovidos ao som de palmas e risos, todos queriam abraçar o casal de namorados. O amor venceu!
E eu, da minha janela, onde deixei que o meu olhar entrasse pela linda e majestosa janela do monumento, imaginei, vivi, o amor de Teresa e Lourenço.
“Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errónea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou E hoje é já outro dia.”
Fernando Pessoa