Imagem: Retábulo do Condestável (1464-1465), têmpera sobre madeira, da autoria de Jaume Huguet, na Capela Real de Santa Ágata, Barcelona, Catalunha.
Ensaio do Prof. Pe. Isidro Lamelas, OFM. Revisão de Miguel Ribeiro.
Começamos por lembrar a discrepância semântica que há entre o conceito de liberdade hodierno e as múltiplas nuances que o mesmo termo apresenta na antiga cultura mediterrânica greco-latina e judaico-cristã.
Os autores cristãos empregam o termo libertas sobretudo em contexto religioso, introduzido, nessas múltiplas semânticas, significados novos. Falam, em primeiro lugar da liberdade de Cristo e em Cristo que consiste em exercitar a mesma caridade de Cristo.
Ama et fac quod vis! Ama e faz o que quiseres. Esta sentença de S. Agostinho exprime de forma genial o conceito cristão de liberdade, onde o primado do amor é condição prévia da verdadeira liberdade. Esta é, antes de mais, um exercício imposto pelo amor enquanto vocação máxima do Homem.
Por outro lado, quem lê os primeiros autores cristãos não pode deixar de ficar surpreendido pelo espaço que neles ocupa a defesa da liberdade enquanto marca distintiva da condição humana.
Justino, herdeiro do intelectualismo ético grego, sabe que a história é regida pelo lógos, dinamismo positivo de todo o agir e existir que requer a liberdade (cf. I Apol. XLII,1-XLIV,11; II Apol., VII,3-9). Racionalidade e liberdade são realmente os pontos fortes da Apologia deste primeiro filósofo cristãos do século II: «Deus, desde o princípio, criou o género humano dotado de razão, e capaz de escolher livremente a verdade e de comportar-se bem, motivo pelo qual não há desculpa para todos os homens diante de Deus: Pois todos nasceram racionais e capazes de discernir» (I Apol. XXVIII,3, cf. I Apol. X,4).
A defesa do livre arbítrio constituirá um dos pilares da teologia cristã e seus pioneiros Ireneu, Orígenes (De principiis, III)e outros Padres da Igreja, na luta contra o determinismo imposto pela antiga koinê religiosa ou pelo gnosticismo. Lemos no Evangelho de Filipe: «Há poderes que querem dominar o homem como escravo» (14).
Contra este tipo de “credo” e a inflexível necessidade do destino (ανάγκη) os primeiros autores cristãos anunciam a novitas de Cristo como o fim de todo o tipo de tirania: «Desde então – assegura S. Inácio de Antioquia – desfez-se toda a magia; suprimiram-se todas as cadeias do mal. Dissipou-se toda a ignorância; o primitivo reino ruiu, quando Deus se manifestou humanamente para a novidade de uma vida eterna» (Efés. XIX,1-3).»
Mas que trouxe, de facto, ao Homem este triunfo de Cristo sobre o velho reino?
Em primeiro lugar, a liberdade passa a ser o elemento que mais aparenta o ser humano com o seu Criador. Para Gregório de Nissa, o Homem é imagem de Deus precisamente enquanto livre e imitador da liberdade divina: «a liberdade é a semelhança com aquele que é soberano, semelhança que nos foi dada por Deus desde a origem» (III,102).
Esta inequívoca defesa da liberdade como algo de intrínseco à nova visão antropológica, teve inevitáveis consequências no modo de conceber a religiosidade.
No ano 212 d.C. Tertuliano dirige um veemente apelo ao procônsul de África, Scápula, tentando convence-lo a desistir da perseguição contra os cristãos, demonstrando a injustiça de tal atentado contra a elementar ética humana:
«É um direito humano e um poder natural (humani iuris et naturalis postestatis) que cada um renda culto à divindade conforme seu desejo: a religião de um não prejudica nem afeta a do outro. Não é um ato de piedade impor a religião a seguir, uma vez que deve ser a livre vontade e não a força a mover-nos, assim como também se requer que os sacrifícios se façam do ânimo livre (ab animo libenti). Não prestarás qualquer serviço aos teus deuses obrigando-nos a fazer-lhes sacrifícios. Na verdade, eles não querem sacrifícios de quem é obrigado» (Ad Scapulam, II,2).
Alguns anos antes, em 197, o mesmo apologista de Cartago, recém-convertido ao cristianismo, já tinha adiantado análoga argumentação, dirigindo-se, então, aos magistrados do Império romano, responsáveis pelo julgamento dos cristãos acusados de “ateísmo”:
«Prestem uns, culto a Deus; e outros a Júpiter. Ergam uns, suas mãos suplicantes; ergam outros, ao altar da Lealdade; Durante as suas orações ponham-se uns a contar as nuvens (se é isso que deles pensais), e outros os caixotões do teto; Que uns ofereçam a seu Deus a própria vida; outros, a vida de um bode qualquer: vede, pois, não vá concorrer para a irreligiosidade a supressão da liberdade de religião (libertas religionis) e a proibição da escolha da divindade, de sorte que não seja lícito prestar culto a quem eu quero, sendo, pelo contrário forçado a prestá-lo a quem não quero. Ninguém, nem mesmo um homem, quererá que lhe prestem culto contra a vontade» (Apologeticum, XXIV, 5-6).
Não temos a certeza de que Tertuliano seja o primeiro autor da antiguidade a reivindicar a liberdade religiosa como um “direito natural” da pessoa, mas asseguramos que o cristianismo deu um contributo fundamental para a afirmação deste direito em termos tão claros.
Sabemos que a mentalidade greco-romana era naturalmente tolerante para a pluralidade de cultos e divindades estrangeiras. A conivência com esta pluralidade era quase sempre uma situação de facto. Era um facto que todos os povos prestavam culto a deuses vários e diferentes. Dentro do mesmo Império conhecia-se uma variedade de tradições, costumes e normas que convivem sem polémica.
Atenágoras, filósofo ateniense do século II que se converteu à nova religião do Crucificado, expõe nestes termos a situação:
«Em vosso império, certas pessoas usam alguns costumes e leis, e outras seguem outros, e a ninguém é proibido, nem por lei nem por medo de castigo, amar suas tradições pátrias, por mais ridículas que sejam. Desse modo, o troiano chama deus a Heitor e adora Helena acreditando que ela é Adrasteia; o lacedemónio cultua Agamémnon como se fosse Zeus, Filónoe, filha de Tindaro, como se fosse Enódia; o ateniense sacrifica a Posídon Ereteu, e os atenienses celebram iniciações e mistérios a Agraulo e Pandroso, iniciações que foram consideradas sacrílegas por terem aberto a urna. Numa palavra, os homens, conforme as nações e os povos, oferecem os sacrifícios e celebram os mistérios livremente. Quanto aos egípcios tem como deuses os gatos, crocodilos, serpentes, víboras e cães. Vós e vossas leis tolerais tudo isso, pois considerais ímpio e sacrílego não acreditar de modo algum em Deus. Nós, porém, somos odiados por causa do nome» (Petição em favor dos cristãos, 1).
Como vemos, o ambiente cultural e religioso em que o nome cristão foi singrando convivia bem com múltiplas religiões, repudiando o “ateísmo” e, por isso, também um Deus “anónimo” e estranho à tradicional pietas. Nessa, a libertas (religiosa ou outra) é, em primeiro lugar uma questão política e não de consciência. Ser livre significa fazer parte de um corpo cívico, comungando dos direitos e deveres reconhecidos pelas leis da cidade ou do estado. Os direitos dos indivíduos são, por norma, desconhecidos ou diluídos pelos deveres da cidade justificados por direito divino. Na cidade antiga, conclui A. Momigliano, «o cidadão é soberano nos assuntos públicos, e escravo em matéria privada» (Pace e libertà nel mondo antico, 1996, 122).
Paradoxalmente, o cristianismo parece ter tolerado o status quo social e político que negava aos escravos os mesmos direitos dos cidadãos, mas exigiu a libertação interior da dignidade e da consciência de todos os seres humanos sem distinção: Não há escravo nem homem livre! (Gl 3,28). O bilhetinho que S. Paulo escreve a Filémon (convertido por ação de Paulo), motivado pela fuga do escravo Onésimo, propriedade de Filémon, documenta bem a situação de liberdade social negada que conviverá com a liberdade interior exigida.
Sucede, outro lado, que o cristianismo não se apresentava como “mais uma religião”, mas como a “verdadeira religião”, que excluía outras divindades, incluindo aquelas sobre as quais assentava a salus do Império e do Imperador. Ainda assim, o Estado romano, por norma, pelo menos numa primeira fase, não persegue, por sua iniciativa, os cristãos. Estes são quase sempre vítimas da intolerância popular circunstancial e localizada. Até à perseguição de Décio (250) não se registam perseguições imperiais generalizadas e sistemáticas que abranjam todo o império.
Isto não significa, de forma alguma, o reconhecimento da liberdade de consciência no que toca às opções de cada indivíduo. Na verdade, a mentalidade antiga não era favorável à liberdade de consciência e de culto, uma vez que se baseava na sacralização do poder e da autoridade em geral. Por outro lado, a religião e a pietas não era um assunto pessoal e privado, mas uma dimensão fundamental da solidariedade social e lealdade institucional (cf. L. Padovese, Il problema della politica nelle prime comunità cristiane, 1998, 23-49). Neste contexto, a reivindicação da libertas religionis parecia atentar contra a pax deorum, ao renegar a religio tradicional e o pacto (pactitium) por ela assegurada entre os deuses e os homens. Na Roma-Estado composta de cidadãos cuja razão de ser primeira é a res publica, a religião, antes de ser uma questão de consciência, é uma questão de estado. Estado que, por sua vez, usava a violência como meio de manutenção do status quo. Num mundo em que a religião mantém um caráter prevalentemente público, na medida em que é expressão de uma identidade coletiva, ela diz respeito mais à sociedade que ao indivíduo. Mesmo a religião doméstica ou culto privado, tão importante na vita romana, a que preside o pater famílias, não existe a convicção, hoje dominante na sociedade “secularizada”, de a religião ser um facto de consciência e liberdade da pessoa.
Quando toda a atividade pública e privada era sustentada pela religião, e o próprio direito deriva dos deuses, até a noção de justiça era assunto religioso. O cristianismo, ao libertar o homem da tirania dos “deuses” que presidem a todas as realidades da vida quotidiana (cf. Tertuliano, De idololatria;Clemente Alexandrino, Protr. IX), cria o espaço para a autonomia das leis e justiça civis, bem como dos seus atores. Daqui derivava não só uma nova consciência civil e social, assim como uma nova conceção de sociedade e estado.
O martírio foi o preço a pagar por essa liberdade. Mas será o sangue dos mártires a criar as condições para um novo humanismo, baseado no testemunho e no respeito pela consciência interior. Na base dessa conquista, que tanto sangue e tinta fez na interminável troca de argumentos entre a novitas cristã e a “reação pagã” sempre agarrada aos mores maiorum, está este novo conceito de consciência, como no-lo ilustram os eloquentes diálogos entre os mártires e os representantes do Imperium:
«Culcianus dixit: ‘Iam sacrifica!’
Fileas respondit: ‘Non sacrifico’.
Culcianus dixit: ‘conscientia est?’
Fileas respondit: ‘Ita… quoniam quae ad Deum est conscientia eminentior est»
(Atas do martírio de Fileas, 3,20-34).
Assiste-se, na “igreja dos mártires” a uma autonomização dos âmbitos e a uma reivindicação eloquente da liberdade de opção que, pela primeira vez, impõe o primado do indivíduo sobre o estado: “A césar o que é de César, a Deus o que é de Deus”, e trouxe, como consequência, a uma verdadeira emancipação do crente face ao cidadão: “Deve antes obedecer-se a Deus do que aos homens” (Act 5,29; Orígenes, Contra Celso, VIII,76). «Nós honramos César, como soberano, mas só tememos e veneramos a Deus», exclama a catecúmena Donata, contemporânea de Tertuliano e uma das primeiras mártires cristãs da Igreja africana. Estamos em Cartago, no ano 180 (Passio sanctorum Scilitanorum, 9). O sangue destes mártires foi realmente semente de liberdade, ali (onde os Romanos continuam a impor a sua lei), como noutras partes. Num contexto em que a obediência às leis imperiais causava cada vez mais dificuldades à consciência cristã, este grito de liberdade vai-se ouvindo cada vez mais por toda a parte: Há que obedecer a Deus mais do que aos homens (cf. Eusébio, Historia eclesiastica, VII,11,5). Tal atitude não deve, porém, confundir-se com algum posicionamento subversivo ou apátrida de que os cristãos também chegaram a ser acusados. As Constituições Apostólicas (séc. IV) dissipam todas as dúvidas, ao mandar que os fiéis “sejam submissos aos Imperadores e demais poderes nas coisas que agradam a Deus» (IV,3). O problema é que no reino de César sempre aconteceu muita coisa que não agradava ao Reino de Deus.
Por isso, pelo menos na Igreja pré-constantiniana, tal submissão política estava drasticamente limitada pelo primado da soberania do único Kyrios. Nesse contexto, os slogans acima mencionados pareciam atentar contra a pax deorum, ao renegar a religio tradicional e o pacto (pactitium) por ela assegurada entre os deuses e os homens.
O cristianismo pré constantiniano foi, qual fermento na massa, paulatinamente transformando a mentalidade e sociedade antigas, acabando por conduzir a essa grande conquista civilizacional que levou a que, pela primeira vez na história, se reconhecesse a liberdade religiosa, expressamente formulada e concedida pelas mesmas Instituições romanas (Édito de Milão de 313) que até ali tinham lutado com todas as armas contra essa reivindicação.
Não deixa de ser surpreendente que esta laboriosa separação das esferas do Estado e da religião, tendo sido introduzida pelo cristianismo, tenha sido tão depressa posta em causa pelo mesmo cristianismo que, depois de Constantino, se deixou muitas vezes aliciar pelos encantos da “santa aliança” entre César e Deus. Depois de 3 séculos de resistência pacífica e luta espiritual que nos legaram um progresso moral inquestionável, os mesmos intervenientes não resistiram à tentação de inverter os papeis.
O próprio Tertuliano que aqui apresentámos como paladino da liberdade religiosa foi um dos pioneiros do discurso intolerante contra os judeus, pagãos e “hereges”, chegando a afirmar: nobis vero nihil ex nostro arbitrio inducere… nec eligere uod aliquis arbitrio suo induxerit (De preascriptione hereticorum, V, 2. 3).
Um século e meio mais tarde e uma vez consumada a “conversão” imposta pelos sucessores de Constantino, o imperador Julião, conhecido pelo “Apóstata”, denuncia a contradição da atitude intolerante dos cristãos e seus chefes, em total discordância com os ensinamentos de Jesus e de S. Paulo (Contra Galilaeos, 205-206). É verdade que os pagãos não foram crucificados nem atirados aos leões, mas foram, mormente depois de Teodósio I (380), drasticamente condicionados e reprimidos na legítima manifestação das suas convicções religiosas.
Wilhelm Nestle, num aprofundado estudo sobre as objeções colocadas pelos pagãos à nova religião, resume este paradoxo nos seguintes termos: «Assim como não é verdade que a religião antiga, neste conflito, se serviu exclusivamente dos meios da coerção estatal (perseguições), também não é exato que o cristianismo tenha recorrido a meios puramente espirituais» (Die Haupteinwände des antiken gegen das Christentum).
Poderemos reconhecer que uma religião monoteísta, ao recusar outras divindades ou credos, contém em si o gérmen intrínseco de “intolerância”. Mas uma coisa é a intolerância de princípios, traduzida na indisponibilidade para ceder a outras crenças ou aceitar pactos com os “adversários”, outra coisa bem diferente é a intolerância de facto, que induz a adotar posições de força e a recorrer a medidas repressivas para impor a “verdadeira religião”. Como foi possível que o cristianismo, depois de séculos em que sobreviveu à violência das perseguições, e que ensinava que “Deus não exerce violência e que a violência nada tem a ver com Deus o qual prefere a adesão que brota da convicção interior» (A Diogneto, 7), tenha passado da intolerância verbal (face à idolatria e heresia), à violência contra os “outros”?
A resposta é complexa e requereria a paciência do leitor para mais um artigo da dimensão deste que já vai longo. Poderemos, porém, adiantar uma primeira e brevíssima resposta. Efetivamente, parte da explicação poderá residir nisto: os intervenientes continuaram, em boa parte, a ser os mesmos, e assim, a velha mentalidade que não desligava a religião da política continuava bem enraizada nos cristãos “apressadamente convertidos”. Mas também porque a afirmação da liberdade religiosa de cada individuo pregada pela religião vencedora não foi acompanhada pela necessária interiorização da ideia de tolerância e respeito pelas demais opções religiosas.