Texto de Alexandra Cleanu. Fotografia do quadro “Arrufos”, Belmiro de Almeida, 1887. Revisão de João N.S. Almeida.
Mais de um século antes de William Gass introduzir, no final dos anos sessenta, o conceito de metaficção, já Camilo tinha aplicado, à semelhança de Machado de Assis, a autorreflexão da literatura nos seus romances. Com efeito, os investigadores em letras definem a metaliteratura como um qualquer texto pertencente a um determinado género literário, que trata de textos de outros géneros literários, como também as obras de um género literário que se voltam para si mesmas, ou seja, para a essência do género onde elas próprias se inscrevem, refletindo sobre o próprio processo de escrita e de ficcionalidade. (Lead)
O subgénero literário da obra sob análise é-nos revelado pelo próprio subtítulo — “Romance filosófico” — definindo-se pela elaboração de máximas ou de teorias filosóficas dentro de uma história ficcionada, e sendo considerado um dos melhores subgéneros romanescos, uma vez que ilustra a dimensão antropológica e filosófica embebida na vida das personagens. De mencionar, também, que Camilo Castelo Branco escreve este romance como forma de parodiar os romances românticos da altura, caracterizados por enredos repletos de aventuras amorosas convertidas em grandes paixões, que culminavam em finais felizes ou na manutenção da fidelidade dos amantes por meio da morte.
Os dois primeiros prólogos
Antes de iniciar a história propriamente dita, o autor introduz três prólogos no romance O Que Fazem Mulheres, sendo que os dois primeiros preparam o horizonte de expetativas do leitor, e testemunham o compromisso do autor perante o mesmo.
Em “A todos os que lerem”, Camilo recorre a uma abundância de frasesexclamativas, e propõe um conteúdo exagerado, prometendo “uma história que faz arrepiar os cabelos” e o despertar lacrimogéneo de todo o leitor: “Há-de chorar toda a gente, ou eu vou contar aos peixes, como o padre Vieira, este miserando conto”.
Já em “A alguns dos que lerem”, prólogo muito mais curto, ocupando apenas uma página, o escritor demarca muito bem as fronteiras entre aquilo que o público deseja e aquilo que o autor lhe irá apresentar. Esta introdução servirá, também, para definir o projeto e a intenção do romance, o porquê da composição da obra. Com efeito, “as excelências da mulher” que Camilo irá esboçar, “a verdade de Ludovina”, constituem o embrião da novela que o leitor está prestes a ler. Ainda neste prefácio, o autor aproveita para mencionar a condição moral que o irá guiar no relato da história, nomeadamente o compromisso com a veracidade dos factos: «Não será uma ação meritória amoldurar em formas verosímeis a virtude, que os pessimistas acoimam de impraticável neste mundo?».
Como consequência desse compromisso, a partir deste momento, Ludovina e romance tornam-se sinónimos e, cada vez que o leitor (ou uma das personagens) desconfiar das virtudes de Ludovina, o próprio valor do livro será posto, naturalmente, em causa. Do mesmo modo, quando Camilo convida o leitor a acreditar nos dotes morais dessa mulher, está, implicitamente, a pedir que este acredite na veracidade do livro que compôs:
Se me rejeitam a verdade de Ludovina, se me dizem que a este inferno do mundo não podia baixar tal anjo, sabem o que é esse descrer? é apoucamento de alma para idear o belo; é o regelo do coração que rebate as imagens ainda aquecidas do hálito puro da divindade.
Capítulo avulso
“Capítulo Avulso” é o terceiro prólogo do romance O Que Fazem Mulheres e é o único capítulo que aparece duplicado. Atendendo ao desejo de Camilo, expresso no próprio subtítulo- Para ser colocado onde o leitor quiser– o editor imprime o fragmento de texto na sequência deixada pelo autor, nomeadamente, após os dois primeiros prólogos, e duplica o mesmo de forma solta, avulsa, para, literalmente, o leitor o colocar onde quiser.
Francisco Nunes é o protagonista, e o seu monólogo ocupa a maior parte deste capítulo, o restante sendo reservado aos comentários complementares do próprio autor. Após a leitura íntegra do romance, concluímos a total ausência desta personagem no decorrer da intriga, o autor resumindo-se apenas a anunciar a sua morte, no final do livro. Apesar de ser colocado no espaço extradiegético, o seu gesto, aparentemente irrisório, irá desencadear o clímax da narrativa que o autor está prestes a contar. Surge então a seguinte problemática: o capítulo avulso deve ser considerado autónomo em relação ao todo, ou deve ser visto como um capítulo integrante da narrativa? Ora, na sua relação com o livro propriamente dito, enquanto suporte material, o capítulo afirma-se como semi-independente. Apesar de impresso num formato avulso, este aparece igualmente inscrito de forma “presa” ao todo, segundo a ordem deixada por Camilo.
Em termos da compreensão da narrativa, o capítulo avulso mostra-se igualmente semi-independente. O leitor até pode, na verdade, subverter a leitura e deixar o capítulo avulso para o fim do romance, mas irá confrontar uma lacuna ao chegar ao capítulo VIII. Isso leva-nos a concluir que o pedido de coparticipação que o autor sugere ao leitor através do subtítulo do terceiro prólogo é ilusório, pois se este não for lido até ao capítulo VIII, o leitor não irá perceber quem é este Francisco Nunes e qual a sua relação com a diegese.
Recordemos que as saídas frequentes de Ludovina aos bailes, bem como a carta anónima que defendia a infidelidade desta, começaram a germinar dúvidas no interior de João José Dias quanto à fidelidade da sua esposa. Desse modo, a conversa deste com os policiais, juntamente com o charuto encontrado no jardim, foram os combustíveis que fatalmente incendiaram a desconfiança de João José Dias. Foi precisamente o charuto, única prova real, palpável, com que esta personagem se convenceu de uma suposta infidelidade por parte da sua amada Ludovina: «-Eis a prova da minha desonra!». No final de contas, a traição confirma-se, mas ela é o reflexo da personagem de Angélica, e não da jovem Ludovina. Não nos esqueçamos, apesar disso, que a ponta queimada do charuto não pertencia ao amante da senhora. Qual será, então, o grau de importância atribuído a esse objeto, atirado aleatoriamente por Francisco Nunes no jardim do barão de Celorico? Muito provavelmente, sem o miserável charuto, João José Dias nunca teria tomado a decisão de procurar e assassinar o suposto amante de Ludovina, o leitor nunca teria tomado conhecimento da infidelidade de D. Angélica e a loucura do brasileiro teria sido evitada, tal como a reclusão das duas personagens femininas no convento. Por conseguinte, não é a personagem Francisco Nunes que intervém ativamente no desenlace da história, mas o seu gesto passivo de atirar a ponta do charuto, constituindo a ponte de ligação entre o capítulo avulso ao todo narrativo. Por outras palavras, o todo fica suspenso do avulso, depende dele para se completar ou corrigir, e não se completa ou corrige senão acolhendo-o num lugar algures, no interior de si mesmo.
A propósito disso, lembremos a advertência da coletânea de contos Papéis Avulsos de Machado de Assis, cujo parágrafo inicial afirma: «Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa». A distinção entre hospedaria e família distingue dois tipos de compilação – a primeira exprime uma junção mais aleatória; a segunda, descrita nas palavras de Abel Barros Baptista como «o regresso deles à origem comum do seu engendramento e por força dessa origem comum». É claro que em O Que Fazem Mulheres não se trata de um conjunto de fragmentos autónomos que se compilam num livro, mas antes de um só fragmento que parece estranho ao todo, e que, ainda assim, encontra o seu lugar neste. Vejamos, também, o significado de avulso, segundo Abel Barros Baptista. Na opinião do autor de Autobibliografias, o capítulo ou o papel avulso é aquele que foi arrancado ao todo, ou, ainda, «a folha que nunca integrou nenhuma coleção, nenhum conjunto, e que nunca se destinou ao livro». Será “Capítulo Avulso” um conjunto de anotações destinadas à composição não deste romance, mas de outro? Será este uma parte de texto que integrava já outro romance e que foi arrancada? Ou será um fragmento que sempre foi destinado ao romance em que acabou inserido, e cuja composição foi intencionalmente criada como “estranha” ao todo? Perante a impossibilidade de verificar tal suposição, resta-nos afirmar que, independentemente da origem desse capítulo, Camilo Castelo Branco reforça o caráter de “avulso” ao integrar a ficção de Francisco Nunes no livro sobre Ludovina, e ao atribuir-lhe a função de “motor” diegético, sem o envolver ativamente na intriga.
Cinco páginas que é melhor não se lerem
“Cinco páginas que é melhor não se lerem” é o fragmento de texto que se encontra entre o capítulo XIV e XV. Ocupando apenas cinco páginas escritas, o autor comenta, recorrendo à sua habitual e deliciosa ironia, uma das leis do Digestodo Imperador Justiniano, e que se refere precisamente à definição de pai, segundo o direito romano: «Pater is est quem nuptiae demonstrant», princípio que define o marido como pai do filho nascido durante o casamento. Nas palavras de Camilo, o estatuto de pai civil define o homem que «tem tudo que é paternal, mas não é pai». A conclusão apresentada no corolário do fragmento é a seguinte: «Melchior Pimenta era um dos pais presumidos na intenção do Digesto, na lei citada…no cap. Paternidade e filiação legítima”».
Este excerto, que Camilo não intitula de capítulo, é uma excrescência do capítulo anterior, cuja última página revela um diálogo emocionante entre António de Almeida e Ludovina. Temendo que o ferimento causado por João José dias pudesse ser fatal, o enfermo António de Almeida despede-se da jovem Ludovina com um beijo na face, proferindo: «lembra-te sempre da situação em que te deu o seu último beijo…teu pai». O dramatismo emergente desse diálogo desperta no leitor a ânsia de umsuplemento explicativo, e é assim que Camilo desenvolve cinco páginas de texto onde comenta a legitimidade de pai segundo o código romano, aludindo à ideia que o leitor já tinha assimilado pela última fala de António de Almeida no capítulo XIV — Melchior Pimenta não é o pai biológico de Ludovina, mas Pater est…
Este fragmento de texto, à semelhança de outros que integram o romance, interrompe o fio da história, e surge como efeito de uma interrupção da própria ordem do livro. Por outras palavras, o excerto em causa integra-se numa sucessão de capítulos, enquanto resiste ao todo que a sucessão forma, definindo-se como interrupção cuja relação com a sucessão se torna ambígua. Ademais, ao atribuir-lhe um caráter inútil, através do título —Cincopáginasqueémelhornãoselerem — o autor apenas reforça a própria utilidade do capítulo inútil, e que se traduz, precisamente, na sua capacidade de interrupção que suspende a série e que neutraliza o programa.
Não é de ignorar tampouco o formato em que o fragmento nos é apresentado. Segundo o bibliógrafo D. F. McKenzie, «a essência do sentido de uma obra se revela no pormenor da sua apresentação formal». Debruçando a nossa atenção sobre o livro, observamos que o final do capítulo XIV é seguido por uma página em branco, seguida por uma página que contém apenas o título do fragmento, sendo esta igualmente seguida de outra página em branco. Finalmente, o texto aparece “fechado”/coberto por outra página em branco, que o leitor tem de abrir do lado contrário, para revelar a parte escrita. Após a inscrição de cinco páginas escritas, o autor recorre a mais um intervalo de cinco páginas em branco até iniciar o capítulo XV.
Sendo também uma técnica encontrada em Machado de Assis, a interrupção por longos espaços em branco é, na opinião de Abel Barros Baptista, a primeira marca visível da intenção de protagonizar, não só o capítulo, mas também a organização do livro e a ideia de livro. Nesse sentido, afirma-se que o espaço branco intercalar é inseparável do protagonismo do capítulo, e acredita-se que a escrita que desorganiza o livro se dá a ver precisamente no branco da página. Assim, ao sugerir a não-leitura do texto, ao fechá-lo, ao encobri-lo por um monte de folhas em branco, o autor tem esperança de que o generoso conselho desperte a rebeldia do leitor, e o faça ir à procura dos elementos que Camilo pinta como irrisórios, mas que são, efetivamente, pontos chave do seu romance.
Errata pensante
O capítulo XI começa com algumas considerações críticas do autor:
Não sei se rasgue estas cinco páginas de manuscrito. Se alguém me assegura que entre vinte mil leitoras (orça por isto o número das senhoras que compram livros em Portugal), se me asseguram que entre as vinte mil há duas que me entenderam a parlenda, e me ficam desejando muita saúde e graça por servir a Deus, não rasgo as páginas, embora os homens me mandem, em portuguesíssima frase, bugiar. Quando comecei o capítulo, tinha de olho dizer à quarta linha, que, acerca de culpas de mulheres, jamais consulto homens.
À semelhança do que verificámos previamente acerca das técnicas de priorização de certos capítulos, o anúncio da supressão das páginas no capítulo XI funciona como procedimento de realce das mesmas. O fragmento de texto corre o suposto risco de supressão pelo conteúdo que desvenda, levando o leitor a uma leitura mais cuidadosa e, possivelmente, repetida, do mesmo. Visto ainda de outro modo, ao apresentar um excerto que aguarda decisão já não a aguardando, a obra revela a precariedade das decisões do autor, bem como uma certa autonomia que o livro exerce sobre si mesmo e sobre o escritor. Ademais, ninguém garante que “as cinco páginas de manuscrito” que o narrador refere coincidem com as três páginas tipográficas que o leitor tem à frente dos olhos, uma vez que haverá sempre cinco, dez, cinquenta páginas anteriores. Essa problemática provém, certamente, da própria constituição do livro como sucessão de segmentos, como sequência de páginas, o que nos leva a concluir que o anúncio da eventual supressão é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, a afirmação da impossibilidade de as suprimir, ainda que tenham sido efetivamente suprimidas.
Gostaria de destacar, neste ponto do ensaio, a importância da errata no romance camiliano, cujo conceito é definido por Abel Barros Baptista como «um plural neutro que designa tanto o conjunto dos erros, como o lugar da respetiva correção». Ela é, assim, o corpo suplementar do texto, a declaração formal de que o livro provisório aguarda a edição definitiva, em que ainda existe a possibilidade de uma nova errata a tornar provisória. Exemplos de erratas neste romance, são, por exemplo, as indicações que o autor deixa aos futuros editores:
Rogo aos escritores contemporâneos, e aos futuros sábios, alinhavadores de remendos alheios, que se escreverem a seguinte máxima:
Há maridos que não desconfiam das mulheres, mas não vão aos bailes para que os outros não desconfiem; escrevam por baixo- O comendador JOÃO JOSÉ DIAS.
Uma das características da errata, segundo Baptista, diz respeito à indicação de um “onde se lê” para apontar um “deve ler-se”, e na diferença entre um e outro mostra-se a distância do livro de si a si mesmo.
Torna-se particularmente importante salientar que o romance sob análise apresenta uma série de erratas inscritas no corpo do livro, durante o processo da sua elaboração, quando o escritor podia ainda corrigir, sem deixar vestígios. Esse aspeto leva-nos a sinonimizar a errata no romance camiliano como errata sem erro, ou erro intencional, onde o objetivo primordial torna-se o de transformar o livro noutro livro, sem tocar no que está escrito:
Errata sem erro nem correção, errata que produz apenas o efeito perverso das erratas, a insinuação de uma imperfeição multiplicada por n cópias, mais que isso, errata que afirma a impossibilidade de debelar a imperfeição, que sabota qualquer decisão possível quanto ao erro, que se guarda de apontar o erro para não prejudicar a errância.
Por conseguinte, as páginas iniciais do capítulo XI são juntamente provisórias e definitivas. Abel Barros Baptista chama a atenção para a importância do manuscrito na constituição da obra: «o original corrige-se de modo explícito, à semelhança do discurso oral, que também não admite apagamentos, apenas acrescentos corretores». Por outras palavras, o manuscrito original, antes de autenticar a reprodução, enfrenta a necessidade e a dificuldade de se autenticar a si próprio. A errata traduz-se, assim, como a metáfora entre o provisório e o definitivo, sem uma verdadeira solução.
Metáfora do livro e do Homem, a errata pensantedesigna a identidade de ambos, uma vez que esta só se constrói na sucessão das erratas, numa correção progressiva da sua configuração própria. É relevante sublinhar que não se trata aqui do livro perfeito, ou do homoperfectus, pois aí não haveria reedições: «a errata é a metáfora do livro impedido e adiado…o livro que não se apresenta como construção acabada e estável…mas como movimento instável em terreno precário».
Ainda relativamente à errata na ficção camiliana sob análise, observemos o excerto que encabeça o capítulo VIII:
Raivando contra si próprio, o barão de Celorico…O barão de Celorico! Personagem nova no conto? Novo! pois eu não disse já que João José Dias dera cinco mil cruzados às urgências do Estado, e seiscentos mil réis ao oficial maior da secretaria onde se fabricam os barões, e cinquenta moedas ao agente secreto das urgências do Estado e das urgências dos estadistas?
Se não leram isto já, perderam-se na tipografia quatro tiras de composição a mais rendilhada a buril clássico, a mais puritana da linguagem, com recheio de ideias substanciosas e gordura de pensamentos!
Finalizava o capítulo VII…
De facto, nada disso se lê no final do capítulo VII, pelo que o narrador faz um resumo dessas páginas, supostamente perdidas, para que o leitor possa perceber a continuação desse mesmo capítulo. Desse modo, o final do capítulo VII torna-se repetição de si mesmo no mesmo lugar. Uma página e meia depois, o narrador recupera o suposto início do capítulo VIII: «Raivando contra si próprio (cá estamos na cabeça do capítulo), o barão de Celorico…». De notar, igualmente, que uma das funções decisivas desempenhadas pela errata está no facto do capítulo que o narrador recupera diferir significativamente do livro que se propôs escrever, mostrando, assim, uma certa autonomia da obra.
Suplemento
«O romance já estava acabado» quando Camilo Castelo Branco decide acrescentar ao livro um suplemento de aproximadamente trinta páginas, prolongando a narrativa depois do seu fim anunciado. Neste fragmento, o autor revela as primeiras opiniões sobre a sua obra, os problemas com o seu editor na publicação do romance, dá a conhecer ao leitor o informador que lhe forneceu o contexto da história já contada, e, não em último lugar, mostra o impasse do próprio livro, uma vez que a integridade da sua heroína é posta em causa. A realidade supostamente extradiegética incorpora-se na diegese, para a completar. O autor chega ao ponto de incluir um prefácio neste suplemento, como se de outro livro se tratasse.
Passando para os aspetos técnicos, o suplemento apresenta-se como uma cláusula após outra cláusula. O texto final desdobra-se, para funcionar não apenas como cláusula do livro, mas também como resposta pelo mesmo. Ao confrontar as escolhas da diegese com as representações do mundo, Camilo Castelo Branco visa negar o óbvio, para oferecer uma unidade articulada, para reforçar a dignidade inabalável de Ludovina, levando-nos a acreditar, de início ao fim, não apenas nesta protagonista, mas nele próprio como escritor e na sua obra, contra todas as forças que ameaçaram essa dupla virtude. O que observamos no final de O Que Fazem Mulheres é a possibilidade de projetar retrospetivamente, sobre todo o livro, um fio condutor que lhe determina a unidade, e de o final se destacar como revelação de um princípio exterior de organização: a lei do livro, o livro pelo livro.
A virtude do Livro
No início do ensaio, mencionei que a virtude de Ludovina será proporcional à virtude do próprio livro, e Camilo assim o confirma, logo no início do romance, no segundo prólogo. No final, e contra todas as adversidades, o livro cumpre o seu fim: está acabado e mantém intacta a virtude de Ludovina: «Ludovina continua a ser a flor da criação, o espelho dos infelizes, o elo que prende a criatura ao Criador, o anjo que chora, esperando que os anjos a levem deste desterro». Note-se que o romance só acaba quando a virtude de Ludovina é seguramente e perpetuamente garantida, quando não há resto de dúvidas acerca da sua total reclusão.
Ao mesmo tempo, o papel do leitor é significativo na constituição do romance. À semelhança de Diderot, Fielding ou Laurence Sterne, o leitor torna-se um dos polos da dialética camiliana. O escritor coloca na narrativa o desvio, o obstáculo personificado na figura do leitor que não aprecia, ou que não acredita no seu trabalho, para afirmar e reforçar o valor do mesmo. Não devemos ignorar a insistência com que o autor, mais do que insinua, impõe ao leitor um juízo, positivo ou negativo, sobre cada uma das personagens: «D Angélica era um assombro de esperteza. A leitora já admirou a eloquência persuasiva com que ela abalou o coração da filha», «A Sr.ª D. Angélica é excelente mãe, no meu conceito; e no conceito de Sr. Melchior Pimenta, é excelente esposa», “As angústias deste homem condenam Ludovina? Não. Ludovina é inocente como os anjos”. Dito por outras palavras, na ficção camiliana, a própria relação autor-leitor será um dos elementos colocados ao serviço da afirmação da obra e do cumprimento intencional do seu criador.
Devemos ter em conta que, em qualquer ficção, persiste todo um suplemento de máscaras e de disfarces destinadas, por um lado, a suscitar perguntas, e, por outro lado, a evitar que o leitor direcione essas mesmas perguntas ao autor, em vez de ler o texto: «Se os espanta as excelências da mulher que vou debuxar, antes de mas impugnarem, afiram-nas pela natureza, interroguem-se, concentrem-se no arcano imaculado da sua consciência».
Do mesmo modo, não podemos esquecer que a figura de autor surge diretamente na narrativa, assumindo o estatuto de ente ficcional, isto é, ficando confinado à esfera da textualidade. Assim, surge a emergência da irresponsabilidade do escritor, ou melhor, da responsabilidade da não-resposta no que respeita o texto em que ele próprio é personagem.
Após relatar um episódio em que Ricardo de Sá aparece desfavorecido, Camilo refere,
«Isto, se eu o não contasse, era coisa que morria ignorada, porque o autor embrionário do SÉCULO PERANTE A CIÊNCIA nunca a diria». Esse aspeto mostra-nos, precisamente, que qualquer ficção, qualquer texto representa a voz de um ponto de vista, de uma única versão, pelo que não pode ser tomada necessariamente como verídica. Segundo Derrida, a chave do texto está naquilo a que este chamou de segredoexemplar, e que se resume ao texto que diz tudo e que, ao mesmo tempo, não deixa de dizer que o segredo ficará para sempre inviolável.
Embora o conceito de metaliteraturaseja pós-moderno, seria redutor confiná-lo num espaço temporal limitado, e O Que Fazem Mulheres é o exemplo de uma filosofia literária que reflete sobre si própria, e que se combina com a ironia e o espírito genial de Camilo, desafiando os limites e as convenções da escrita e do género romanesco, através de um discurso não linear, em pleno século XIX.
Bibliografia
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COELHO, Jacinto do Prado. Introdução ao Estudo da Novela Camiliana. 1º volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2001. pp. 92-103. Impresso.
COELHO, Jacinto do Prado. Introdução ao Estudo da Novela Camiliana. 2º volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2001. pp. 221-300. Impresso.
LOPES, Óscar e CARLOS, Luís Adriano. Ensaios Camilianos. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2007. Impresso.