A Influência Desestabilizadora do Desejo Sexual e da Música Instrumental em A Sonata de Kreutzer, de Tolstói, Tiago Ramos

Imagem: Ilustração de Inês Madeira (@insmadeira) sob fotografia de Tolstói.

Ensaio de Tiago Ramos. Revisão de Miguel Ribeiro.

Aconteceu no começo da Primavera a bordo de um comboio. Uma passageira e o seu companheiro, um advogado, conversam entre si sobre o mais recente escândalo matrimonial a abalar os alicerces ortodoxos da elite social russa. A discussão depressa se deflagra pela carruagem. Alguns dos passageiros comentam aquela que acham ser a natureza do amor, a legitimidade do divórcio e a conduta dos europeus no que ao casamento diz respeito. A passageira que começou por falar de mexericos alheios defende que o casamento deve ter como fundação o amor entre os esposos. «O pior é que esta gente não percebe que casamento sem amor não é casamento»[i], reitera a passageira com convicção. Um velho comerciante riposta ao afirmar que a estabilidade de qualquer casamento depende da disciplina imposta à mulher por parte de seu esposo: «é preciso pôr a rédea a tempo à mulher, senão está tudo perdido»[ii]Rédea curta e medo são os ingredientes que o comerciante recomenda que todos os maridos utilizem para que as suas esposas se mantenham subservientes e o casamento saudável. Esta acesa troca de argumentos termina com a partida do velho e com a intervenção inesperada de um elemento que não pertencia ao simpósio improvisado. Podznyshev, que seguia atentamente o debate de soslaio, surpreende todos ao garantir que o muito discutido amor foi o veneno que o levou a matar a sua esposa. A gravidade do silêncio que assalta os passageiros nos momentos seguintes leva-os a mudar de carruagem. Permanecem apenas Pozdnyshev e o narrador, a quem o homicida relata os trágicos episódios que pautaram a sua vida romântica. 

O relato tecido por Podznyshev constitui a fatia dominante da ação de A Sonata de Kreutzer (1889), de Liev Tolstói. O sujeito enunciador – aquele que narra a experiência a bordo do comboio, descrevendo, entre outras coisas, o comportamento febril de Podznyshev à medida que este recorda o trajeto do seu malfadado casamento – impede que a narrativa se resuma a um monólogo confessional. Ademais, o narrador anónimo interrompe, ocasionalmente, o seu interlocutor com observações que têm como fim contestar algumas das asserções feitas pelo homicida. Neste sentido, o narrador desempenha um papel semelhante àquele preenchido pelos pupilos que interpelam Sócrates nos diálogos de Platão[iii]. À luz do paralelo traçado, Podznyshev ocupa a posição de Sócrates, o grande educador de Atenas. Num plano formal, a estrutura do diálogo, que atravessa a narrativa quase por inteiro, é análoga àquela empregue por Platão. Ademais, a própria qualidade pedagógica do tecido literário aproxima A Sonata de Kreutzer dos diálogos platónicos. Podznyshev floreia o relato do seu casamento com longas considerações acerca da essência da sexualidade humana e o poder que a música instrumental exerce sobre as paixões[iv]. É acerca de tais ponderações que este breve ensaio se debruça.

Podznyshev começa por remeter o seu interlocutor para os anos que antecederam o seu casamento. Este período da sua vida, que corresponde aos verdes anos da adolescência até ao momento em que o protagonista ultrapassa os trinta anos de idade, é fundamental porque é durante esta fase fundacional que Podznyshev se familiariza com o prazer e a sordidez do sexo, assim como com os sortilégios sirénicos do género feminino. O protagonista detalha a sua primeira visita a um bordel e comenta a sua conduta com as mulheres antes do casamento. Longe de se descrever como um bon vivantmulherengo, Podznyshev condena a libertinagem que pautou o seu comportamento, classificando-o de deboche. A reprovação da sua atitude passada é complementada por uma dura crítica à educação, promovida pela alta sociedade russa, que inculcava aos homens uma maneira de agir devassa: «Afirmam que a depravação faz bem à saúde, e também eles contribuem para organizar uma depravação correta e asseada.»[v]. Os médicos, ao aconselharem os homens a envolverem-se em relações pré-maritais e extraconjugais de maneira a permanecerem saudáveis, e o governo, ao licenciar prostíbulos, estariam, segundo o protagonista, a institucionalizar a depravação moral do espaço social. 

O aristocrata censura a cultura de promiscuidade sexual que corrompe a sociedade russa altamente ortodoxa; em particular o comportamento pervertido dos homens que, como ele, pertencem à elite. Os homens privam as mulheres de dignidade ao cobiçá-las e torná-las meros objetos de desejo, argumenta o protagonista. Todavia, o viúvo não se abstém de atribuir uma quota-parte de responsabilidade ao género feminino. Podznyshev assevera que as mulheres se aproveitam dos procedimentos sociais debochados dos homens: «Dizem as mulheres: “Então, quereis que nós sejamos apenas objectos de sensualidade. Está bem, então, como objectos de sensualidade, vamos escravizar-vos”.»[vi]. As mulheres da alta sociedade, tidas como respeitáveis, vestem corpetes justos, vestidos com os ombros e peito descobertos, utilizam maquilhagem e servem-se da música e da dança tal como as coquetes o fazem para seduzir os homens[vii]. Ao invés de exigirem um tratamento condigno, «as mulheres fizeram de si próprias um instrumento tão forte de influenciar a sensualidade que o homem não pode comunicar tranquilamente com a mulher»[viii].

O comportamento ostensivamente sexual das mulheres em sociedade é tido por Podznyshev como um atentado à segurança pública. Ao apelarem à concupiscência as mulheres suscitam nos homens «amor sexual, carnal»[ix]; a paixão que a personagem considera ser «mais forte» e «maldosa»[x]. Com o anteriormente referido em mente, constata-se que, quando Podznyshev alude ao amor entre um homem e uma mulher, refere-se sempre a uma conceção de amor carnal. À semelhança do que Arthur Schopenhauer propõe em A Metafísica do Amor[xi] (1818), o protagonista descreve, ao relatar o momento em que se apaixonou pela sua futura esposa, como o desejo libidinal do sujeito atua sobre aquele que é contemplado tal qual um filtro deturpador que torna o objeto de desejo mais encantador do que ele realmente é: 

Uma noite, depois de termos dado um passeio de barco e quando, sob o luar, regressávamos a casa, indo eu sentado com ela no coche a admirar os caracóis do seu cabelo e a sua figura esbelta dentro de um vestido justinho de jérsei, decidi que era ela a escolha certa. Nessa noite parecia-me que ela percebia tudo, tudo o que eu sentia e pensava, e que sentia e pensava coisas extremamente sublimes. Na verdade, acontecia apenas que o jérsei lhe ficava muito bem, tal como os caracóis, e que, depois de um dia passado ao pé dela me apeteceu uma intimidade ainda maior[xii].

Podznyshev garante que quaisquer «sentimentos elevados» que um homem possa expressar por uma mulher não passam de uma mentira fabricada pelo amor carnal[xiii]. Tal ânsia libidinal faz com que os casais caiam na armadilha do casamento. De acordo com Podznyshev, apenas flores do mal podem brotar da semente pérfida do vínculo contratual estabelecido entre dois esposos. O matrimónio nada mais seria que um meio de legitimar a exploração das mulheres por parte dos homens. A perspetiva do protagonista afasta-se do quadro idílico sugerido pela passageira no começo da narrativa e aproxima-se da definição de casamento proposta por Immanuel Kant: «the union of two people of diferent sexes for lifelong possession of each other’s sexual attributes»[xiv]. À vista disso, Podznyshev caracteriza o casamento como tendo um fim igualmente pervertido àquele que os homens solteiros perseguem nos bordéis. O protagonista confessa, ao relatar os primeiros dias após a lua de mel, como depois de o seu desejo libidinal ter sido satisfeito o filtro, que outrora fizera de sua esposa a encarnação da perfeição em pessoa, desapareceu. O que restou foi apenas o contrato de suposta exclusividade sexual[xv]

O estado de paixão esgotara-se com a satisfação da sensualidade e ficámos em frente um do outro na nossa verdadeira relação mútua, ou seja, como dois egoístas absolutamente estranhos que queriam tirar o máximo de prazer um do outro.[xvi]

Como alternativa ao casamento, que fomenta o ciúme e paixões vis, Podznyshev promove a ideia de que as relações entre homens e mulheres se devem estabelecer no princípio do celibato. Homens e mulheres devem negar todos os impulsos sexuais e juntarem-se enquanto irmãos através de um amor altruísta, desprovido de prazer ou paixão. Nesse momento, o narrador interrompe o interlocutor e relembra-o de que a humanidade cessaria de existir se todos seguissem as máximas propostas por Podznyshev. O homicida responde que «de acordo com todas as doutrinas eclesiásticas, virá o fim do mundo, e de acordo com todas as doutrinas científicas tem de acontecer a mesma coisa»[xvii]. Deste modo, segundo o protagonista, o mais belo ocaso que a humanidade pode vislumbrar é um em que o ser humano, a agir como um só, se liberta dos grilhões das paixões que o prendem. Como supramencionado, o testemunho de Podznyshev tem uma dimensão pedagógica e, de acordo com Dominic Pettman, a lição a retirar do relato do protagonista é a seguinte: 

The lesson to be learned revolves around the value of “continence,” not only regarding women in general but even toward one’s own wife. Celibacy is presented as an ideal to which all civilized human beings should aspire, in order to more faithfully follow Christ’s teachings; for carnal appetites – even the lawful kind, sanctioned by marriage – lead to sensuality, which leads to infidelity, which leads to jealousy, which potentially leads to irreparable violence. [xviii]

A origem da infelicidade do casamento de Podznyshev, de acordo com o testemunho do próprio, residia nos termos pervertidos nos quais a sua relação conjugal assentava. O protagonista admite que não tinha qualquer preocupação com o bem-estar de sua esposa e que apenas a via como um veículo que facilitava a satisfação dos seus desejos carnais. No entanto, a razão que o motiva a cometer o crime passional, que agora tenta penitenciar através da sua confissão, é o suposto[xix] adultério de sua esposa. Podznyshev cria uma narrativa que cruza o potencial mefistofélico da sexualidade humana com os encantos enigmáticos da música de maneira a justificar as ações violentas que perpetrou. O retomar das aulas de piano, por parte de sua esposa, é tido como a decisão determinante que desencadeia a sequência de eventos que culmina com o aparente adultério. A prática da arte musical, «a mais esmerada volúpia dos sentimentos»[xx], «loosens the husband’s control over her body and renders her vulnerable to another man’s lust »[xxi]. A música, no entender do aristocrata, tem uma faculdade desestabilizadora que pode desnortear o indivíduo, tornando-o recetivo a influências externas que podem ter desígnios malévolos:

A influência que a música exerce nas naturezas sensíveis, sobretudo o violino, enfim, aquele homem tinha tudo, não diria para despertar o amor dela, mas para a vencer, sem a mínima hesitação, para a esmagar, para a torcer como uma corda, para fazer dela tudo o que lhe apetecesse[xxii].

Os compositores musicais propõem-se a organizar o caos da inefabilidade da música tendo em vista, através da linguagem hermética dos sons, comunicar com aqueles que ouvem as suas composições. A ausência de referencialidade e a dificuldade de apreensão de significado, inerente à música instrumental, fazem com que a índole moral da arte musical seja dúbia[xxiii]. Como a citação anterior deixa transparente, tal como o desejo libidinal[xxiv], a música tem a capacidade de destabilizar o comportamento humano. No limite, a música instrumental tem a capacidade de fazer com que um indivíduo se desvincule dos seus princípios morais e passe a agir de acordo com a vontade subjacente à composição musical[xxv]:

A música faz­ -me esquecer de mim próprio, da minha verdadeira situação, transporta-me para outro espaço qualquer que não é o meu: a música parece que me faz sentir o que na verdade não sinto, que me faz compreender o que não compreendo, parece que, com a música, posso fazer o que na verdade não posso. Explico-o assim: o efeito da música é como o do bocejo ou do riso; não tenho sono mas bocejo quando olho para alguém a bocejar; não tenho motivos de riso mas rio quando ouço alguém a rir-se[xxvi].

Podznyshev culpa o poder possessivo que a interpretação da sonata de Beethoven exerceu sobre si de maneira a justificar as suas ações bárbaras. No entanto, proponho uma leitura alternativa que considera a alteração de comportamento de Podznyshev como o resultado do protagonista tentar atribuir significado aos efeitos desestabilizadores que a música instrumental tem sobre si. O protagonista ao sobrepor a palavra (signo decifrável que nos remete para um significado) aos sons (ininteligíveis e de sentido ambíguo) visa estabilizar a ambivalência de significação que a interpretação da Sonata para violino e piano nº 9 teve sobre si. A narrativa que Podznyshev elabora, para fazer sentido do transtorno que sente, é a de que a cumplicidade que a sua esposa tem com o violinista, enquanto tocam a Sonata de Kreutzer, se deve a um desejo sexual mútuo. Certo dia, durante uma viagem que o tinha levado a sair da cidade, Podznyshev recebe uma carta de sua esposa; esta informa-o de que Trukhachevsky, o violinista, a tinha visitado. Furioso, pois assume que o adultério foi consumado, o protagonista retorna a casa e vê-los jantar sozinhos, longe dos olhos das serviçais. Consumido por uma cólera negra, Podznyshev esfaqueia a sua esposa por debaixo das costelas. O violinista, aterrorizado, foge e a mãe de seus filhos morre poucas horas depois.

Na tentativa de dominar o êxtase dionisíaco[xxvii] que a performance musical de a Sonata de Kreutzer cria em si, Podznyshev outorga logos (comummente associado ao espírito apolíneo) à composição de Beethoven; isto é, o protagonista, de forma a fazer sentido da inefabilidade dos sons que exaltam o seu ânimo, inscreve sobre a música tocada pela sua esposa e o violinista uma narrativa adulterosa. Contudo, ao fazê-lo, viola a natureza inefável da música instrumental e cai numa teia narrativa, tecida por si, que o impele a agir de maneira violenta: «Pozdnyshev’s tragic flaw, resulting in the murder of his wife, was his premise that music, in particular, Beethoven’s “Kreutzer Sonata”, dictates certain emotions which, in turn, inexorably bring about certain actions»[xxviii]. A interpretação da música através da palavra atribui aos sons propriedades que lhe são alienígenas e são essas projeções equívocas de significação que deixam o protagonista possuído e inclinado a agir violentamente: 

Tolstoy’s Kreutzer Sonata probes Russian readers and music lovers to reassess their views about the effect of music on their self-development and moral well-being. By presenting the character Pozdnyshev as a highly  intelligent Russian aristocrat who becomes disturbed by incomprehensible emotion triggered by his wife’s and Trukhachevsky’s performance of Beethoven’s music, Tolstoy suggests that Pozdnyshev recognizes some quality in the music that reveal the mental state of the composer[xxix].

Podznyshev reitera que, em sociedade, condutas deliberadamente sexuais deviam ser consideradas ilegais e propõe um modelo social no qual homens e mulheres vivem harmoniosamente, como irmãos, de acordo com um estado celibatário[xxx]. A prática de música, por suscitar estados alterados de comportamento, tal como o desejo libidinal, deve, segundo o protagonista, ser igualmente restringida: «Pode admitir-se que alguém hipnotize quem lhe apeteça, uma ou muitas pessoas, e depois faça com elas o que quiser? Sendo o hipnotizador, ocasionalmente, um homem imoral?»[xxxi]. Segundo o protagonista, do mesmo modo que na China a prática musical é administrada pelo estado e apenas exercida para fins específicos – assim o estado russo deve ter comando sobre todas as práticas de música. Podznyshev argumenta que a música deve ser tocada para fins específicos: marchas militares ou cerimónias religiosas. Sócrates, no livro IV de A República, formaliza um comentário análogo ao de Podznyshev ao declarar que devem ser proibidas as práticas musicais que divergem daquelas estabelecidas pela república (i.e; música como mero acompanhamento ao logos proporcionado pela voz humana): 

Acautelem-se o mais possível, com receio de, se alguém disser que os homens apreciam acima de tudo o canto que tiver mais novidade, se julgar talvez que o poeta quer referir-se não a cantos novos, mas a uma maneira nova de cantar, e que a elogia. Tal coisa não deve louvar-se nem entender-se assim, porquanto deve ter-se cuidado com a mudança para um novo género musical, que pode pôr tudo em risco. É que nunca se abalam os géneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade[xxxii].

No decorrer do seu testemunho, acerca dos motivos que o levaram a cometer o homicídio de sua esposa, Podznyshev tece considerações a respeito da natureza da sexualidade humana e da música instrumental. Ambas são caracterizadas como forças inefáveis que desvirtuam a sanidade e a bússola moral do ser humano. Todavia, para além da advertência efetuada por Podznyshev concernente aos perigos demoníacos da música instrumental e do desejo sexual, o enredo desenvolve um outro aviso a respeito do risco de se projetar, sobre a inefabilidade dos impulsos sexuais e dos sons, propriedades de significação que lhes são adventícias. O espírito dionisíaco necessita da clareza de Apolo para se expressar e comunicar de maneira articulada e o espírito apolíneo precisa de Dionísio para fomentar a ordem no caos. A ameaça reside na possibilidade de equívoco que existe ao se empregar o logos para se expressar algo que pertence ao domínio do inexpressável. No caso de Podznyshev, a sua vã tentativa de articular o inarticulável, ao invés de lhe conceder estabilidade, faz com que o protagonista crie uma narrativa que o leva a cair nas malhas da loucura báquica de dionísio e, como resultado, cometa o pecado capital. 


[i] Tolstói, Liev, A Sonata de Kreutzer (Lisboa: Sociedade Editora de Livros de Bolso, 2010), 17.

[ii] Ibid., p. 14.

[iii] Cf. Knapp, Liza, «Tolstoy on Musical Mimesis: Platonic Aesthetics and Erotics in “The Kreutzer Sonata”». Tolstoy studies journal nº4 (1991): pp. 25-42. Neste ensaio, Liza Knapp, entre outras coisas, estabelece um paralelo entre A Sonata de Kreutzer e os diálogos platónicos, assim como com o modelo confessional de Rosseau.

[iv] Um outro paralelo entre os diálogos de Platão e o testemunho de Podznyshev; desta feita, não no que concerne à estrutura e ao desígnio pedagógico do diálogo platónico, mas aos temas debatidos. No livro III de A República, Sócrates e Gláucon discutem acerca da natureza dos prazeres do sexo e da música. Como veremos, as conclusões a que Podznyshev chega, acerca do papel desempenhado pela música e o sexo dentro de um contexto social, assemelham-se, em boa medida, às de Platão.   

[v] Tolstói, Liev, A Sonata de Kreutzer (Lisboa: Sociedade Editora de Livros de Bolso, 2010), 26.

[vi] Ibid., p. 39.

[vii] Ibid., p. 35

[viii] Ibid., p. 40.

[ix] Ibid., p. 47.

[x] Sócrates afirma que não existe nenhum prazer «maior e mais penetrante» que o sexo (Platão, A RepúblicaLisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 133). Todavia, o seu pupilo adverte que o prazer excessivo «não excita menos o espírito que a dor» (Ibid., p. 135). Embora Platão não promova o celibato como solução para o sobredito problema concernente às paixões carnais, tal como Podznyshev, no livro V de A República, Sócrates e Gláucon discutem um número vasto de medidas que têm em vista restringir a prática do sexo.

[xi]   «Neste caso, o impulso sexual, embora sendo de facto uma necessidade subjetiva, sabe pôr, com habilidade, a máscara de uma admiração objetiva, iludindo assim a consciência: pois a natureza precisa deste estratagema para seus fins» (Schopenhauer, Arthur, Metafísica do Amor e a Metafísica da Morte, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 10). 

[xii] Tolstói, Liev, A Sonata de Kreutzer (Lisboa: Sociedade Editora de Livros de Bolso, 2010), 37.

[xiii] Ibid., p. 33.

[xiv] Kant, Immanuel, Metaphysics of Morals (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), 277.

[xv] O pensamento de Pozdnyshev cruza-se com aquele de Schopenhauer: «aquela ilusão que o cega tão completamente desaparece logo que satisfeita a vontade da espécie, restando-lhe uma companheira odiosa» (Schopenhauer, Arthur, Metafísica do Amor e a Metafísica da Morte, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 46).

[xvi] Tolstói, Liev, A Sonata de Kreutzer (Lisboa: Sociedade Editora de Livros de Bolso, 2010), 52.

[xvii] Ibid., p. 48.

[xviii] Pettman, Dominic. «TOLSTOY’S BESTIARY: animality and animosity in the kreutzer sonata». Angelaki, nº18 (2013): p. 121. 

[xix] O grosso do texto que compõe A Sonata de Kreutzer corresponde, como supramencionado, ao testemunho tecido por Podznyshev a propósito da sua vida de solteiro e da relação que teve com a sua falecida esposa. Apenas temos acesso ao ponto de vista do protagonista. Desta forma, o relato de Podznyshev pode ser interpretado como duvidoso visto que rouba a voz e a perspetiva de sua esposa, que permanece sem nome e sem oportunidade de se defender durante toda a narrativa.  

[xx] Tolstói, Liev, A Sonata de Kreutzer (Lisboa: Sociedade Editora de Livros de Bolso, 2010), 57.

[xxi] Dame, Natalia. «The Search for Narrative Control: Music and Female Sexuality in Tolstoy’s “Family Happiness” and “The Kreutzer Sonata”». Ulbandus Review, vol. 16 (2014): p. 170)

[xxii] Tolstói, Liev, A Sonata de Kreutzer (Lisboa: Sociedade Editora de Livros de Bolso, 2010), pp. 89, 90.

[xxiii] No livro III de A República, Sócrates denota preocupação quanto à natureza inenarrável da música e, por conseguinte, reitera que a música instrumental deve apenas ser um complemento à vertente discursiva (logos) proporcionada pela voz humana: «o ritmo e a harmonia se adaptam à palavra, como há pouco se disse, e não a palavra a esses» (Platão, A RepúblicaLisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 131). Na república idealizada por Platão a música instrumental é proibida.

[xxiv] «Ela [uma mulher] influencia a sensualidade do homem e, através da sensualidade, domina-o de tal maneira que ele só formalmente faz a sua escolha, quem escolhe de facto é ela.» (Tolstói, Liev, A Sonata de Kreutzer, Lisboa: Sociedade Editora de Livros de Bolso, 2010, p. 40).

[xxv] A vontade, segundo Schopenhauer, é a essência de todas as coisas. O filósofo alemão conceptualiza a música como uma representação direta da vontade: «A música, portanto, de modo algum é semelhante às outras artes, ou seja, cópia das Ideias, mas cópia da vontade mesma, cuja objetidade também são as ideias. Justamente por isso o efeito da música é tão mais poderoso e penetrante que o das outras artes, já que estas falam apenas de sombras, enquanto aquela fala da essência.» (Schopenhauer, Arthur, O mundo como vontade e representação, São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 2005, p. 338). À vista disso, o que Podznyshev argumenta é que a vontade demoníaca inerente à Sonata de Kreutzerdomina o seu espírito.

[xxvi] Tolstói, Liev, A Sonata de Kreutzer (Lisboa: Sociedade Editora de Livros de Bolso, 2010), 54.

[xxvii] Cf. Nietzche, Friedrich, O Nascimento da Tragédia ou o Mundo Grego e Pessimismo (Lisboa: Relógio D’Água, 1997). No livro referido, Nietzsche elabora uma tese que estrutura a realidade em dois polos interdependentes: o espírito dionisíaco e o espírito apolíneo. As suas naturezas antagónicas fazem com que ambos se encontrem em constante conflito e em permanente reconciliação. À força dionisíaca associa-se o ciclo de destruir para criar. O carácter efémero dos elementos num mundo sempre em trânsito é dionisíaco. Destarte, o mundo, segundo o espírito dionisíaco, apresenta-se como um caos indomável.  O deus Apolo, por seu turno, representa a ordem e a claridade discursiva. Apolo encobre a tempestuosidade dionisíaca. É o espírito apolíneo que nos possibilita compreender o mundo ao atribuirmos-lhe leis e significados.        

[xxviii] Knapp, Liza, «Tolstoy on Musical Mimesis: Platonic Aesthetics and Erotics in “The Kreutzer Sonata”». Tolstoy studies journal nº4 (1991): p. 35

[xxix] Smith, Alexandra. «The Kreutzer Sonata, Sexual Morality, and Music», em Tolstoy and Spirituality (Brighton: Academic Studies Press, 2018), 133. 

[xxx] O modelo social assente no celibato proposto por Podznyshev evoca os princípios reiterados pelos membros do Skoptsy, uma seita cristã de origem russa que no final do século XIX contava com milhares de fiéis. Os elementos deste grupo religioso acreditavam que após a expulsão do Jardim do Éden, Adão e Eva tinham incorporado o fruto proibido em si, formando os testículos e os seios. Como corolário, a castração genital era praticada no que concerne aos homens, e a amputação dos seios no que diz respeito as mulheres, de maneira a que o estádio imaculado, anterior ao Pecado Original, fosse restabelecido. A luxúria era tida como a raiz dos males terrenos e a castidade como um ideal a alcançar. 

[xxxi] Tolstói, Liev, A Sonata de Kreutzer (Lisboa: Sociedade Editora de Livros de Bolso, 2010), 99.

[xxxii] Platão. A República (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001), p. 131.

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