Versos Soltos, Tomás Ferreira

Imagem: Copo de vidro da Boémia em duas camadas (datado de 1848) decorado com uma representação das Parcas, ou Moiras. Victoria and Albert Museum, Londres

Poema de Tomás Ferreira

Versos Soltos

Se a vida for uma longa estrada, vou nela como um cego,
escrevo sem saber porque escrevo, sem saber aonde me levo;
escrevo porque quero e nem sei o que é escrever.
Talvez escreva quem não sabe e quem o sabe se cale,
por ser a sua impossibilidade o único segredo da escrita.
Afinal, talvez eu escreva como todos os escreventes,
sem escrever de todo, garatujando apenas.
Mas, quem sabe, talvez escreva para aprender a escrever,
porque quero receber a magna dádiva de moldar
a matéria com a palavra. Hybris, hybris, destino fatal.

Talvez escreva para saber porque escrevo,
para me encontrar no seio do labirinto cretense;
talvez também eu queira matar um minotauro.
Talvez escreva para aprender a viver,
por ser a vida um mar incógnito, tempestuoso,
um mar de que me quero cartógrafo, cego.
Talvez sem ter consciência de mim nem do acto,
talvez dançando num palco ilusório.
Hybris.

Talvez escreva para dar sentido ao que o não tem;
talvez porque não sou nada,
não existo, só sou em artificial armadura,
como um Cavaleiro Inexistente.
Talvez escreva para tentar unificar
num propósito a dispersão ontológica de não ser;
talvez escreva para saber que existo,
para, existindo, ter sentido e direcção.
Mas malogra-se-me o desígnio:
porque o propósito precede o acto,
o sentido anteceder deve a experiência.
Onde, nas brumas, se acha a clareza de visão,
se tudo é um pântano nebuloso,
se tudo é insubstância, confusão?

Talvez, às cegas, apenas escreva para memória de mim,
apenas para registo do meu falhanço,
para preservar uma epopeia no berço frustrada,
para uma crónica de Queda somente.

Deuses, ó deuses cegos de Homero cego!
É esta a expiação da minha ímpia hybris cândida?
Toda a soberba finda rastejante, puída, exposta,
em queda todo o homem que olímpio se julga.
Talvez eu escreva porque tentar o impossível
e falhar seja razão única do meu viver.
Moira, ó Moira, quem és tu?

(2013/2014)