Imagem: (acima) Orestes Perseguido pelas Fúrias (1852), de Carl Rahl (1812-1865), óleo sobre tela, Niedersächsisches Landesmuseum für Kunst und Kulturgeschichte, Oldenburg, Alemanha. (abaixo) Cinco Artistas em Sinta (1877), de Cristino da Silva (1829-1877), óleo sobre tela, Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa, Portugal.
Texto de Rui Moreira Menezes
Os Fazedores de Letras não podiam deixar de ser o sítio ideal para esta recensão ver a luz do dia. O jornal dos estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa tem um historial de servir de rampa de lançamento a vários jovens poetas e de apoiar vigorosamente ‘novas letras’, tanto no que diz respeito ao seu carácter inédito como à idade dos seus autores[i]. Neste caso, já não podem servir de rampa de lançamento, porque o autor que aqui me ocupa lançou, em Dezembro passado, o seu primeiro livro, mas podem ainda ser paladinos de escrita fresca a clamar por afirmação. E é isso que eu venho fazer: dar a conhecer um poeta ‘acabado de nascer’ e exortar a que seja lido. To wit:
Mesclam-se neste primeiro livro, publicado por uma pequena editora – Apenas Livros –, vários temas e dons poéticos: ironia mormente gentil, experiências depressivas, crítica social e política, um certo olhar sonhador sobre o mundo e uma queda para o turn of phrase filosófico à mistura com corações partidos. E todos esses temas e dons, ainda que muitas vezes apenas aflorados gnomicamente neste livro – que tem algo do carácter sintético da poesia japonesa – indiciam tanto uma profunda consciência a eclodir para o mundo na forma como também um coração de “uma só cara” (para citar Freitas Mendes) que transmuta em palavras as feridas de flechas desferidas pela vida. É certo que, como Oscar Wilde afirmou, por vezes a sinceridade mata a arte no berço (deixamos de lado as evidências do mesmo na poesia de Wilde, por exemplo na sincera “Balada de Reading Gaol”[ii] e (?) no De Profundis[iii]), mas estou em crer que tal não é o caso deste poeta.
Comecemos pela crítica social e política; citamos, a propósito, o ‘poema em prosa’ “Portugal, um rectângulo de quadrados” (p. 12):
“Os quadrados são cubos de gelo muito frios. Derretem-se pela hierarquia, na esperança de que um dia sejam eles os quadradões do pedaço. Os quadrados reconhecem-se uns aos outros. Encaixam na perfeição. Dão-se usos e empregos, entre si. O tétris é o jogo do poder.
O quadrado novo pode originar-se relativamente tarde na vida, mas uma vez quadrado, não há volta a dar, é quadrado ao cubo. Os quadrados têm quatro faces: uma aponta para norte, outra para sul, uma leste, outra para oeste. Assim, os quadrados vão mudando de face. O maior pecado quadrado é a impertinência. Os quadrados são geometricamente perfeitos daí serem mais narcisos que o meu gato.
O maior medo de um quadrado é ser ridículo, aos olhos das pessoas. Aos meus já o são. Se tivessem alma não seriam quadrados, porque a alma só tem uma face. Se tivessem ideias não seriam quadrados porque as ideias dos homens, como o Mandela e o Zeca Afonso, destroem os quadrados.
Os quadrados são opacos e parecem sólidos, como se fossem de betão cinzento como o Estádio da Luz. O pesadelo decorrente é seres pichados às cores, como as meias listadas de uma menina criativa. Quando se encostam tapam as faces umbrias do quadrado ao seu lado. Os quadrados não podem cheirar uma flor, Saint-Exupéry, porque são quadrados. Vão-se com a luz, como os monstros que vivem debaixo da cama de uma criança e os ogres do [sic] Harry Potter. São unidimensionais, e no bando dos objectos, gostam das moedas de ouro. Nunca viram os quadrados mealheiros?
O rectângulo que somos, Portugal, é feito de muitos quadrados ordenados em fila indiana.”
Aparte gatos chamados Narciso e o facto de serem os ogres de O Hobbit – e não do Harry Potter– que não suportam a luz do dia, este texto – por sinal o mais longo do livro – é simultaneamente mostra de um talento engenhoso para jogar continuadamente com uma metáfora e tão bom como as melhores piadas (que já lá vão) de Ricardo Araújo Pereira, se estas se casassem com as dores de Zeca Afonso. É também, já agora, exemplo de que ainda há herdeiros espirituais de Camilo e de Eça de Queirós e do humor de auto-retrato sado-masoquista feito com uma elegância de que os poetas de intervenção raramente são capazes. Se fosse necessário acrescentar algo a isto, poderíamos citar os versos do seu “Quem diz não a um poeta?” (p. 11):
“O outro poeta tem uma via directa: as cartas. Tão bom livro se escreveu de forma epistolar. Quantos livros e doenças e zangas e amores se desfizeram; tudo pela carta, a Magna Carta. No séc. XX era a carta; hoje não sei.”
Esta é mais uma das coisas que o poeta não sabe – não será a última – e vem talvez salvar a tese das emoções de T. S. Eliot[iv], pois, como observa Freitas Mendes, agora que temos – nós, a Europa, o Ocidente – a “Magna Carta” da democracia, parece que a emoção dominante do tempo em que vivemos (que Eliot diria ser o que o poeta transmuta em verso), é não saber que coisa havemos de querer, além da auto-destruição. E assim os poetas sofrem; nisso, as democracias são como as ditaduras, os poetas sofrem sempre, mesmo aqueles que não escrevem (mas, lá está, talvez uma democracia seja apenas uma ditadura de quadrados eleitos endogâmica e rotativamente…não sei). Vejamos que a poesia pode ser também uma iteração daquilo em que, precisamente, não acreditamos ou que pensamos não estar a fazer, como em “’Noite de Natal’” (p. 15):
Adorava que a minha poesia
Fosse clara e simples
– poucas palavras enxutas e pontuação nenhuma
Que a vida tivesse um só sentido
E fosse sempre em frente
sempre ascendente
Gostaria de reduzir a complexidade das coisas
Mas não me sinto capaz de fazê-lo.
Aqui, aquilo em que o poeta se quer tornar é aquilo em que já se tornou, o que quer fazer é o que faz ao dizer que quer fazer. A poesia (a sua poesia) já consegue ser simples, e as coisas já não são tão complexas.
O tópico da depressão também surge e ressurge ao longo de todo este livro, ainda que, por vezes, só a intuição apurada, a sorte, ou quem já tenha tido depressão (ou um psiquiatra, caso haja misericórdia e se encontre um que tenha dotes interpretativos) consiga identificar ao certo de que é que se está a falar, tal é o carácter carrolliano ou dostoievskiano das realidades a que essas alusões se referem. Por exemplo os aparentemente simples versos “Eu, quem era dantes? / Se me lembrasse talvez percebesse / Quem não sou por ora, // Ou seja / Quem fui eu agora / Que fiz eu há instantes?” (“Sem memória” p. 18) ou os seguintes: “Nós não pagamos / se temos os dentes como os sonhos, / furados e tortos, / para quê o enterro / se já estamos mortos?” (“Abril é Novembro”, p. 19); notem-se, no entanto, as alusões políticas que também podem ser lidas neste último poema. Mas no tópico do negrume interior, os mais expressivos de todos são estes versos (de “Nem sequer há dúvida…”, p. 35):
Não consigo nada
Sinto-me preso,
Sozinho com gente feliz
Em volta
(a pior solidão
E a melhor definição dela)
O estranho é que ainda respiro
Estranho
Se isto é vida sem vida.
Aqui, como se diz umas estrofes antes, tudo é névoa e nem mesmo há dúvida “porque não há pensamento” (p. 35).
Não quero deixar alongar demasiado esta crítica: quero antes que os caríssimos leitores vão já a correr a qualquer lado buscar este livro e o leiam, porque não é todos os dias que nasce um poeta para a chancela. Vou concluir com uma amostra das inclinações filosóficas de Freitas Mendes – o autor é Mestre em Direito pela Universidade de Lisboa mas é, afianço, um véritable humaniste num sentido que nos foi legado, não pelo Renascimento, mas pelo currículo liberal dos medievais, essas ditas bestas obscurantistas que criaram muito do que NÃO É obscurantismo na cultura ocidental, que só nos últimos séculos começou a desenvolver a sério o seu lado obscurantista. Basta notar que muitos dos pseudo-intelectuais de hoje seriam corridos de qualquer universidade medieval e que nenhum professor da Faculdade de Artes de Paris no século XIII permitiria que saísse impune o proto-neo-esquerdista que, entre os seus alunos, ousasse dizer que havia coisas sobre as quais não se devia falar ou tópicos que não era permitido discutir ou teses que se deviam aceitar sem ser examinadas. Mas deixemos Calíope, ou Clio, de lado, e fale o nosso poeta:
Um pessimista é o expoente do anti-utilitarismo.
Porque pessimismo é não agir.
Falar enquanto se está pessimista
É uma contradição.
Falar é um acto de optimismo
Daí que o pessimista só possa sê-lo
Verdadeira
E legitimamente
Em pensamento
(p. 27)
Ou…
Gosto mais de falar sobre o que não sei.
Se o conhecimento já é limitado
Porque havemos de limitar o limitado
Limitando-nos ao que já conhecemos?
(p. 26)
Num destes aforismos em verso, Freitas Mendes até parece impugnar o revisionismo analítico desse famoso abreviador de dicionários, o filósofo americano Richard Rorty (quer o intuísse, quer não), dizendo que a vida possui a semântica e não a semântica a vida (p. 23), ou seja, que da eliminação de palavras problemáticas não se segue a eliminação de “bocados de mundo” problemáticos, ou seja, de realidades problemáticas (de resto, a crer em Gustafsson[v], o revisionismo só sossegaria aqueles que, à partida, já não acreditam nos problemas denotados pelas palavras problemáticas, ou seja, que deixar de falar no Diabo só descansa quem não acredita em diabos).
Mas há verdade na teoria de Cleanth Brooks de que a paráfrase é uma heresia (apesar de útil em literatura, tal como em filosofia, sem querer com isto rortyanisar-me em revisionista parafraseador, ou noutra coisa pior); por isso, apenas digo para porem de lado a minha crítica e irem ler Porquê não sei ainda. Despeço-me com um vade retro de Freitas Mendes de que:
Banalidades
São generalidades
Que deviam ser banidas.
(p. 31)

[i] Cf., a este propósito a crítica de Tomás Ferreira a propósito do primeiro livro de José Bernardo da Fonseca, Se Ícaro voasse de noite (Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2018), publicado em Os Fazedores de Letras, nº 80, 5 de Fevereiro de 2019. Mas podiam rever–se, a este respeito, muitas das oitenta e duas edições d’Os Fazedores publicadas até ao momento, nomeadamente algumas das mais antigas, agora disponíveis em formato pdf no site do jornal.
[ii] [ii] Cf. o que diz a propósito Harold Bloom na introdução à edição revista de The Anxiety of Influence.
[iii] Cf., quanto à putativa sinceridade de que padeceria este escrito, Miguel Tamen, The Matter of the Facts. On Invention and Interpretation (Stanford: Stanford University Press, 2000).
[iv] Cf. T. S. Eliot, “Shakespeare and the Stoicism of Seneca”, in Selected Essays.
[v] Eminente exegeta sueco de Wittgenstein e crítico de Rorty.