Imagem: Sobreviventes do Genocídio Arménio resgatados e enviados para Jerusalém em Abril de 1918. Fotografia proveniente dos arquivos da Armenian General Benevolent Union.
Texto da Direcção d’ Os Fazedores de Letras
Na sequência do que dissemos no nosso Editorial #82 sobre aquelas que serão, a partir de agora, as principais causas políticas e sociais internacionais assumidas e defendidas por este jornal, achamos que devemos aos nossos leitores mais umas palavras sobre as mesmas. Relembrando, as quatro causas que aí mencionámos foram as seguintes: (1) pugnar pelo reconhecimento, por parte do Estado Português e de outros estados que ainda não o fizeram, do Genocídio Arménio de 1915-1923 e, a par disso, (acrescentamos) dar visibilidade e expressão à cultura, língua e história da Arménia, em colaboração com a FLUL e a sua leitora de Língua e Cultura Arménia, Lia Khachikyan e, idealmente, em colaboração com a Fundação Calouste Gulbenkian e outras instituições; (2) lutar pelo reconhecimento do direito do Tibete e do povo tibetano à independência e auto-determinação e pela concretização dessa mesma independência; (3) trabalhar para sanar as tensões culturais geradas pela Guerra Fria, privilegiando o diálogo com estudantes, intelectuais e artistas, da Europa de Leste e da Rússia, conscientes de que esses países são parte inalienável da Europa maior, de matriz greco-romana e judaico-cristã, à qual pertencemos e nos orgulhamos de pertencer; (4) a luta pelo respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos humanos inalienáveis, sobretudo nos contextos geográficos e socio-políticos em que estes são mais frequente e implacavelmente postos em causa, como seja o caso da República Popular da China. Comecemos por ordem.
O Genocídio Arménio de 1915-1923 é uma página horrível e vergonhosa da história da Humanidade, em que morreram – entre execuções sumárias, campos de trabalhos forçados e marchas da morte – entre 1 milhão e meio e 2 milhões de homens, mulheres e crianças arménias, tragédia só comparável, na dimensão e na obstinação de um governo de eliminar uma minoria do seu território, ao Holocausto na Alemanha nazi e à Grande Purga e progroms da União Soviética no tempo de Estaline. No entanto, interesses económicos, cobardia e hipocrisia têm feito com que a maioria dos países, mesmo no Ocidente, não tenha ainda reconhecido o Genocídio e a culpa dos governos turcos otomanos que lhe presidiram e o arquitectaram. Lembremos que foi preciso esperar até 2019 para os Estados Unidos o reconhecerem formalmente, em decretos passados pela Câmara dos Representantes e pelo Senado entre 29 de Outubro e 12 de Dezembro (neste ponto, é de notar que, por exemplo, o Presidente Obama, apesar de em 2008, durante a campanha, ter prometido reconhecer o genocídio se fosse eleito, uma vez eleito renegou rápida e caracteristicamente a promessa). Pretendemos, por isso, em espírito de continuidade com a tradição d’Os Fazedores de protesto a favor dos direitos humanos e da autonomia dos povos, pugnar pelo seu reconhecimento pelo Estado Português, de modo a que este deixe um exemplo aos outros países. Neste sentido, além do nosso jornalismo de divulgação dos factos históricos e da colaboração no apoio ao florescimento do intercâmbio cultural entre a Arménia e Portugal, propomos endereçar cartas – incluindo uma carta aberta a ser assinada por quantos quiserem fazê-lo – ao Senhor Presidente da República, ao Senhor Primeiro-Ministro, ao Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros, ao Senhor Presidente da Assembleia da República e a quantas personalidades políticas (e outras) julgarmos necessário.
A questão do Tibete explica-se mais facilmente, dada a sua semelhança com o caso de Timor, causa pela qual Os Fazedores de Letras historicamente se bateram logo desde a sua fundação em 1993. Até 1950, quando a China invadiu o Tibete, forçando, ao cabo de poucos anos, o seu líder espiritual e político, Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, a fugir e a pedir asilo à Índia, o Tibete era um país independente, com uma língua, uma cultura e uma história próprias. Não é preciso muita literacia histórica para reconhecer a justeza e a legitimidade da causa da luta pela sua independência. Em 1989, foi atribuído ao Dalai Lama, que montou em Dharamsala o seu governo no exílio e um centro de estudo da cultura tibetana, o Prémio Nobel da Paz, e desde então a causa do Tibete tem tido mais atenção. Mas a posição da China como uma potência económica mundial e a sua influência e poder de chantagear governos estrangeiros tem feito com que poucos ou nenhuns avanços efectivos se tenham verificado. Há muito que o Partido Comunista Chinês, que governa o país num sistema que não tem nada de democrático – nem de respeito pelos direitos humanos, como veremos mais abaixo –, exerce pressão para que os governos ocidentais fechem as portas ao Dalai Lama. No entanto, a situação parece-nos ser tanto mais gravosa nos tempos que correm, devido especialmente a duas pessoas públicas consagradas, indevidamente ou não, como “heróis políticos”, nos últimos 11 anos: o Presidente Barack Obama e o Papa Francisco. Lembremos a este respeito que, naquilo que foi uma notícia quase fugidia na imprensa – e, mesmo assim, só na imprensa não-americana[i] – quatro dias antes ser anunciado que Obama seria o recipiente do Prémio Nobel da Paz em 2009, foi noticiado, já depois da chegada da delegação tibetana a Washington, que a Casa Branca, explicitamente para agradar à China, tinha cancelado a audiência do Dalai Lama com o Presidente Obama[ii] (apesar de, devemos dizê-lo, este mesmo presidente ter vindo, mais tarde, a encontrar-se com o líder espiritual tibetano). Mais recentemente, em 2014, o Papa Francisco, que, de acordo com a opinião generalizada, é tipicamente caracterizado como uma espécie de heróico defensor dos pobres e oprimidos, recusou receber o exilado líder tibetano para não desagradar ao governo chinês e, deste modo, comprometer as negociações que então estavam em curso entre a Santa Sé e o mesmo governo sobre o reconhecimento da autoridade do Papa e a situação da Igreja na China, segundo declarações à imprensa por parte da Santa Sé[iii] e do Dalai Lama[iv]. Posteriormente, em 2015, o próprio Papa, da sua própria boca, contrariando as declarações do seu porta-voz, o também jesuíta Federico Lombardi, e do Dalai Lama, desmentiu ter recusado receber o Dalai Lama por medo de ofender a China[v] com o inevitável apelo ao protocolo No entanto, só o medo de desagradar à China explicaria porque, depois de ter feito as declarações citadas pelo The Telegraph, o Papa Francisco não o convidou para a reunião de líderes religiosos em Assis organizada pelo Vaticano em 2016[vi] – a não ser que admitamos que o Papa tem alguma coisa contra budistas. Tal cobardia moral daqueles que são, provavelmente, os dois líderes mais respeitados do Ocidente devia, em nosso entender, consigná-los ao opróbrio que as suas acções justamente merecem e, se os governos – ou os líderes, até os da Igreja, como notou São Tomás de Aquino – falham, cabe aos cidadãos corrigi-los e à imprensa dar-lhes voz, uma responsabilidade que este jornal assume e leva muito a sério. Claro que, dado o estado actual da política global, é muito improvável que vá haver significativas melhorias para a situação dos tibetanos num futuro próximo, como refere sombriamente o teólogo, filósofo, crítico literário e comentador David Bentley Hart no artigo já citado. Ainda assim, la noblesse – e a verticalidade – oblige a que aqueles de nós que, em sã consciência, vêem a justiça desta e de outras causas não fiquem em silêncio, por pouca ou nenhuma esperança que haja: como diz o título de um livro recenseado nesta edição, “por amor do meu povo, não ficarei calado”[vii]!
Quanto ao nosso terceiro ponto, não terá escapado a ninguém que, oficialmente, a Guerra Fria terminou em 1989, com a queda do Muro de Berlim ou, se quisermos esticar ao máximo as linhas históricas, dois anos depois, em 1991, com a queda da União Soviética. E, no entanto, por razões várias (só algumas das quais podemos aflorar aqui), o Ocidente continua, as mais das vezes, a tratar a Rússia pós-comunista como se esta fosse o inimigo e os países da Europa de Leste como se estes não fossem bem Europa. Ora, nada disto faz qualquer sentido. A Europa vai do Cabo da Roca aos Montes Urais, do Cabo Norte, na Noruega, a Malta e a Creta, da Irlanda ao Cáucaso. Como dissemos mais acima, a Rússia e os restantes países da Europa de Leste são parte inalienável da milenar civilização a que pertencemos, de matriz dupla greco-romana e judaico-cristã, como diz George Steiner, doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa[viii], no seu livro de 2004, A Ideia de Europa. Afastados de nós, primeiro, por pertencerem à oikoumene grega (por oposição à esfera de influência latina), que encontrou expressão política no Império Bizantino; depois pelo Cisma de 1054, em que a Cristandade Oriental se afirmou contra as ambições temporais do Papa de Roma; sujeitos, em muitos casos, ao domínio otomano durante vários séculos e, por fim, separados da Europa Ocidental pela Cortina de Ferro, estes países são, ainda assim, decisivamente, nossos irmãos culturais e espirituais. Rejeitar o diálogo com eles e o muito que têm para nos ensinar seria rejeitar uma parte do que faz de nós aquilo que somos e resultaria na desfiguração do todo de memória, história e cultura que, juntos, representamos. Por isso, urge trabalhar para colocar em diálogo todas estas vozes à espera de serem ouvidas, sentido para o qual Os Fazedores de Letras procurarão trabalhar, de modo a sarar as feridas do passado e construir um futuro melhor para todos nós.
Por fim, resta-nos atender ao quarto ponto. Comprometemo-nos a lutar pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos inalienáveis do ser humano. Vivemos num tempo em que, frequentemente (e para parafrasear o Pe. António Vieira), nos dão palavras quando precisávamos de actos. Um jornal é, claro, feito de palavras e a nossa espada é a caneta (ou o teclado do computador), mas as palavras podem, por vezes, gerar frutos falando ao coração das pessoas e as pessoas, essas, podem, em conjunto, transformar o mundo, tal como, no Evangelho (Mt 13), é dito da semente que caiu em terra boa. Pensemos no que falta fazer, nos problemas que os governos do mundo têm adiado resolver (ou que têm mesmo causado); pensemos, por exemplo, nas privações do continente africano, sujeito à rapina, não só de governos de outros países como também dos seus próprios governos, muitos deles criados a partir de movimentos de guerrilha sem qualquer legitimidade para governar, como em Angola e em tantos outros. África é apenas o exemplo mais óbvio, mas há outros. Pensemos, também, no Brasil de Jair Bolsonaro, um país de tantos recursos, tanta corrupção e tanta pobreza. As estes exemplos podíamos acrescentar outros, como o da Arábia Saudita, onde o luxo e a riqueza coabitam com a opressão das mulheres e crueldade extrema da seu pseudo-sistema judicial. Igualmente premente e preocupante é o caso da China, cujo governo combina o pior do comunismo e do capitalismo num regime totalitário sem qualquer respeito pelos direitos humanos: precisamos apenas de lembrar o seu tratamento dos Falun Gong[ix], dos muçulmanos Uigures[x], ou dos católicos[xi], já para não falar de jornalistas e activistas pró-democracia. Os desenvolvimentos dos últimos dois meses, tempo em que foi proposta, aprovada e entrou em vigor a nova lei de segurança[xii] outorgada pelo governo de Pequim à região autónoma de Hong Kong são também alarmantes, uma vez que ameaçam extinguir um dos últimos portos de abrigo da liberdade de expressão na China. Em face de tudo isto, é imperativo haver jornalismo de qualidade, que defenda as causas humanitárias e dê verdadeiramente voz aos povos e minorias desfavorecidos e oprimidos. É esta, são estas as missões d’ Os Fazedores de Letras, no que diz respeito a questões internacionais.
[i] Cf. David Bentley Hart, “Obama and the Lama”, artigo primeiramente publicado no periódico First Things a 14 de Outubro de 2009 (podendo ser consultado online em: https://www.firstthings.com/web-exclusives/2009/10/obama-and-the-lama (consultado a 2 de Julho de 2020)) e republicado, com modificações, em David Bentley Hart, The Dream-Child’s Progress & Other Essays (Angelico Press, 2017)
[ii] Cf., por exemplo, a notícia no jornal britânico The Telegraph https://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/barackobama/6262938/Barack-Obama-cancels-meeting-with-Dalai-Lama-to-keep-China-happy.html (consultado a 2 de Julho de 2020)
[iii] Cf., por exemplo, a BBC News em https://www.bbc.com/news/world-europe-30455187 (consultado a 2 de Julho de 2020) e, já agora, o The Guardian emhttps://www.theguardian.com/world/2014/dec/12/pope-francis-denies-dalai-lama-audience-china-concerns (consultado a 2 de Julho de 2020)
[iv] Cf. The National Catholic Reporter em https://www.ncronline.org/news/vatican/dalai-lama-says-pope-francis-unwilling-meet-it-could-cause-problems (consultado a 2 de Julho de 2020)
[v] Cf. The Telegraph em https://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/the-pope/11357141/Pope-Francis-leaves-door-open-to-Dalai-Lama-meeting.html (consultado a 2 de Julho de 2020)
[vi] Cf. The Italian Insider em http://www.italianinsider.it/?q=node/4356 (consultado a 2 de Julho de 2020)
[vii] O livro, reminiscente do título e do espírito do escrito de Tolstoy de 1908 contra a pena capital (“Não Posso Ficar Calado”) chama-se, na sua edição original em língua italiana, Per amore del mio popolo non tacerò (Hong Kong: Chorabooks, 2018) e, na edição americana em língua inglesa, For Love Of My People I Will Not Remain Silent (San Francisco: Ignatius Press, 2019) e é da autoria do bispo e cardeal chinês Joseph Zen Ze-kiun e trata-se da versão escrita traduzida de uma série de oito conferências proferidas em chinês no Verão de 2017.
[viii] Em 2009.
[ix] Cf., por exemplo, os seguintes: Health Europa em https://www.healtheuropa.eu/forced-organ-harvesting-one-of-the-worst-mass-atrocities-of-this-century/97035/ , Reuters em https://www.reuters.com/article/us-britain-china-rights/china-is-harvesting-organs-from-falun-gong-members-finds-expert-panel-idUSKCN1TI236 e The Guardian em https://www.theguardian.com/world/2019/jun/17/china-is-harvesting-organs-from-detainees-uk-tribunal-concludes (os três sites foram consultados a 8 de Julho de 2020)
[x] Cf., por exemplo, o Público em https://www.publico.pt/2019/11/25/mundo/noticia/documentos-revelam-china-faz-transformacao-ideologica-uigures-xinjiang-1895053 (consultado a 8 de Julho de 2020)
[xi] Cf., por exemplo, a Catholic News Agency em https://www.catholicnewsagency.com/news/cardinal-zen-to-congressmen-china-wants-vatican-surrender-40990 (consultado a 8 de Julho de 2020)
[xii] Cf., por exemplo, os seguintes: BBC Brasil https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53236726 , The Guardian em https://www.theguardian.com/world/2020/jun/30/china-passes-controversial-hong-kong-national-security-law e Aljazeera https://www.aljazeera.com/news/2020/07/china-warns-uk-citizenship-offer-hong-kong-people-200702112103293.html , (todos consultados a 8 de Julho de 2020)