Quatro poemas de Rodrigo Pereira
I
SE O QUE EU ESCREVO FOSSEM PALAVRAS
Se o que eu escrevo fossem palavras,
Elas teriam um som
E derramaria tinta sem entraves
No papel, pelo meu dom.
Se o que eu digo se escrevesse
Faria um livro com mil canetas
E alguém o leria até que adormecesse
Por não encontrar nenhumas letras.
Se eu fosse um escritor,
Já um livro teria escrito
Falaria de muito amor
E achá-lo-ia mui bonito.
Se eu fosse a própria escrita
Tornar-me-ia num alfabeto
E correria o mundo numa visita
Envolta num rubor secreto.
Mas mais que tudo, se eu fosse um pensador
Já me teria atirado da ravina
Sem sequer pensar na sina
De alguém meu seguidor.
II
QUEM SOU EU?
Eu sou o raio de luz que incendeia o gelo,
O som que desperta os mortos,
A brisa quente que apaga o fogo,
O tremor que faz cair as montanhas,
A força que faz o mar recuar,
Sou o olhar mais profundo que vê através da opacidade,
Sou o diamante que brilha na escuridão,
E mais que tudo: sou a complexidade da simplicidade
E a simplicidade da complexidade.
Este sou eu.
Sou água em ebulição dentro de um congelador,
Sou uma ave que voa sem levantar voo,
Um peixe que nada sem barbatanas,
A dança da morte,
A cor da água e o badalar dos sinos parados,
O sonho dentro do pesadelo,
Um vulcão em convulsão que liberta vida
Uma gota no oceano e um oceano numa gota
E a bússola que aponta o zénite,
Um olho que está cego por ver o que não quer.
Um ouvido que rebenta por não querer ouvir.
Uma mente que teme o que não sabe.
Sou a fragrância do vazio e a voz do infinito.
Sou o ouro sem valor mas prata com fulgor.
Sou o tudo e o nada. A maré e a vaza.
O som do silêncio. A luz da escuridão.
Sou a chuva da tempestade e o sol do deserto.
Sou a verdade da mentira e a paz na guerra.
Sou o começo do infinito e o fim dos tempos.
Sou o mil dentro de um.
Sou isto e aquilo, aqui, aí, ali, além, acolá, no horizonte.
Sou o possível no impossível.
Sou o que sou, e só…
Não valho nada por isso.
O segredo? É o amor,
Que induz à perfeição as coisas mais imperfeitas.
Ele torna a sombra em luz sombria e a luz em sombra luminosa.
Ad triumphum.
III
A expressão duma outra natureza
É o olhar, a paz
O sossego, a tranquilidade,
A arte, o sorriso
O olhar, a voz
A água, o ar
O vento, a chuva,
A música e o silêncio.
Uma viagem, um caminho
Uma paz, só um pouquinho.
O ar que trago dentro de mim
Foi o que tirei lá no campo, assim.
Trago em mim a luz
O sabor, o som que recolhi,
Na vegetação que me conduz
Numa rota mágica que escolhi.
Faz-me falta aquele ar
O silêncio e a paz.
Sinto falta de encontrar
Um sossego que tanta falta me faz.
Quero subir essas montanhas,
Cheirar uma árvore,
Dormir e acordar nas terras castanhas,
Sentir que eu me revigore.
Quero sair do barulho,
Sair da agitação
Encontrar o orgulho
Dentro da minha imaginação.
Ricos daqueles que isto têm
Pobres dos outros que o achavam
Sejam lembrados os que provêm
De algures onde até meditavam.
IV
SEM FÉ
Foi-se-me a fé, a crença e a esperança.
Agora seja feita a minha vontade,
Que não espero por outra idade
Para ver o que o que não avança.
Que interessa a boa eternidade,
A enganosa castidade,
O frutuoso e promissor juízo,
Se por ele espero e não o concretizo?
Porquê crer em Quem não se apresenta,
Se a espera se mostra ela inglória
E a presença é ela insatisfatória,
E vivo parado esperando por quem se ausenta?
Porquê viver em esperanças irrisórias,
Em águas paradas, e palavras desperdiçadas,
Em ares vazios e iras de maus gentios?
Para quê sonhar, se o sonho não vive?
Tu é que vives, vive o hoje, o agora
Desapega-te do sonho e da fé,
Porque a oportunidade não está à ré,
E ontem já passou, o amanhã ainda não chegou,
Hoje chego aonde quero,
Porque a esperança nos bloqueia,
Nos faz parar à espera de uma plateia,
Sonhada e desterrada num sonho mero.
Porque o real acontece, e esse se vê,
Porque as provas tardam em chegar,
Porquê continuar a esperar?
Agi e deixai a fé de parte por sua mercê.
Hoje parto, arranco e corto a fé,
Porque se algo existir e me quiser
Comigo virá ter para o que der e vier,
E me tocará e aí estarei ao seu pé.
Já não creio mais no obscuro,
No invisível e no infinito,
Porque não é preciso preocupação a duro,
Com aquilo que me punha aflito.
Quereis acreditar no mistério?
Quereis ficar preso à ilusão,
E perder toda a sensação
Do mundo lá fora que é a sério?
Se em algo acreditar é preciso
Primeiro defini-lo será façanha,
Depois procurar a prova ou aviso
E desfazer o escuro com manha.
Que dias perdidos hoje os vejo
Aqueles que passei
E que agora não sobejo,
Aqueles míseros que felizmente deixei.
Hoje sou livre,
Livre do pensamento,
Forte só por mim,
Porquê esperar pelo salvamento?
Vou ter forças assim,
Para poder ser dono de mim
E conjurar ao mal,
Os horrores que existem no real.
Epílogo:
Ne alterum diem quidem perdam
(Não hei-de perder nem mais um dia).
Ignota non desiderantur
(Não se deseja o que não se conhece).