Conto de Luís G. Rodrigues
A manhã estava cansada como sempre. Os carros passavam, os táxis businavam e os aviões faziam aquele barulho ensurdecedor que não parece apoquentar ninguém. No cerne de tanto movimento exausto, estava o Comediante, mais uma vez a caminho do seu escritório, ajudando no processo exaustivo que torna a manhã tão cansada. Neste caminho encontrou, como é costume, o velho do café que embirra em nunca lá entrar e que, simultaneamente, pede o quer aos gritos e senta-se numa mesa que o dono deste café arranjou para ele. Estranho, passa por ali todos os dias e o bizarro desta situação continua a fazê-lo pensar, continua a perguntar-se o porquê de tal ação tão caridosa para com alguém tão rude e mal-educado, que pede a sua meia de leite berrando com a mesma força que Baco fazia para os portugueses serem mal-sucedidos. Continua o seu caminho, de modo a não chegar, mais uma vez, atrasado ao emprego.
Como é natural, todas as distrações que encontra no caminho são uma ótima desculpa para não pensar em si mesmo. Aliás, alguém na sua situação (provavelmente) preferiria até não pensar de todo. Não existir. Tudo o que está a viver demonstra ser, para ele , algo imensuravelmente insuportável e asfixiante. No entanto, como poderia ele lidar com uma vida já tão preenchida de tudo mas, de momento, sem nada?
Chega ao trabalho e, para surpresa de ninguém, é olhado de lado. Algo a que ele já se habituou desde o escândalo que o afastou da glória, da fama, do dinheiro, do palco, dos risos, da escrita e das piadas. Outros tempos aqueles em que olhar para o comportamento de um indivíduo no café seria apenas matéria para um texto humorístico ou uma simples tentativa de humor de observação. Mas esses dias já lá vão. Agora tudo o que faz resume-se a um analgésico orgânico criado pela sua própria mente que, habituada ao tipico distanciamento que o humor tanto proporciona, se vê obrigada a lidar com o Mundo da forma que melhor conhece: desconstruir tudo.
Senta-se na secretária onde, não por vontade própria, tem estado durante os últimos 6 anos, isto é, está claro, quando não se encontra no seu apartamento a beber desenfreadamente o seu whisky rasca, que compra na mercearia mais próxima de casa, gerenciada por uma velhota , ao que parece, última fã do grande cómico, já que lhe vende a bebida a metade do preço, embora perca com isso.
Ao olhar para a sua secretária despida de qualquer interesse, nota a pasta deixada pela asssistente do chefe. Abre-a e repara na cansativa densidade de que padece. As imensas páginas antes escritas por si, são agora linhas de trabalho nada tortas e muito menos direitas, suprimidas de qualquer valia ou ou interesse que alicie a mente de quem foi, outrora, muito maior que a Vida, muito maior do que lhe era inerente, não por ter fama e dinheiro, mas sim porque era feliz a fazer os outros felizes. De modo egoista? Sempre. Contudo, o seu egoismo era mutado num produto de felicidade alheia, que, ao chegar ao público, crescia e não morria. Hoje em dia, está morto. Naturalmente não no seu exterior, porque respira, porém, o seu interior está pequeno e arrisca a não estar mais. Folheia as folhas como destino fadado de eterno tédio e miséria pessoal. Mas folheia.
Vê o que tem a fazer e faz, até porque quanto mais rápido fizer, mais depressa terá a possibilidade de se ir embora e ajudar como quem não atrapalha. E atrapalhar era o que fazia melhor, muito por culpa da Comédia. É óbvio que a Comédia não o atrapalhava a si, atrapalhava quem o ouvia e não tinha outra solução senão rir dos jogos de palavras, das batotas lógicas no racíocinio, da fascinante forma como entregava as piadas sempre no “timing” certo. Era dos melhores do Mundo em Portugal e lá fora era, sem réstia de dúvida, apenas o Melhor. Portugal sempre o confinou à pequenez de o retratar como “Melhor do Mundo” até já na altura em que o Mundo era dele. A ironia presente na ação inócua do tratamento persistia em ser mais aguçada que a do próprio Comediante. A vida é isso mesmo, ironia aguçada e ação inócua de quem tenta lidar com ela.
Na tentativa vã de ser eficiente, o Comediante trabalha de forma célere e pensa no whisky que o espera. Tecla de forma agressiva durante uns longos quarenta e cinco minutos como quem está zangado com todos e resolvido com ninguém , muito menos consigo mesmo. Resulta. Despacha-se, de certa maneira rápido, e pede ao seu chefe amigo para se retirar, pois já acabou a tarefa que lhe fora designada.
-Permissão garantida meu caro. Até amanhã- disse o chefe, nada supreendido com a solicitação.
– Até amanhã- devolveu o Comediante de forma seca e áspera, quase como senão precisase daquele trabalho para beber.
Regressa até casa pelo mesmo caminho que fez à ida. Caminha sem se ver a si mesmo, com esperança de que não o vejam a ele. Todos os dias vê o mesmo Mundo que já lhe pertenceu, igual ao que era. Nada mudou. Quem mudou foi ele. Ou mudaram-no. Só ele sabe.
Abre a porta de casa, prepara um lanche no qual se inclui um copo de whisky e um copo daquele vinho de pacote que se usa para cozinhar. Enche a banheira velha merecedora de um reparo abismal e, num ato de quem sabe o que vai fazer a seguir, procura na sua larga estante de livros a coletanêa que tem os seus poemas preferidos. Pega nela e retira a página designada ao seu gosto. Coloca a página no extremo da banheira para que esta não se molhe e não fique mole, sem leitura possível. Fecha a torneira perra e deita-se na água que não paga há três meses. Ele está pronto. Sabe o que vai fazer e ninguém o vai impedir. A Vida já o cansava e tirav-lhe mais do que dava. Pareceu-lhe justo tirar algo à Vida, nem que fosse a própria. Lê o poema para si e deixa-se levar pelo que é já cá não estar. Batem-lhe delicadamente à porta e ele ouve. Não liga porque provavelmente é o vizinho a pedir o dinheiro da renda e há de ir embora porque está habituado a que não lha abram. O Comediante concentra-se e volta ao que fazia. Batem mais uma vez à porta. Desta vez o Comediante repara que aquele bater não é do senhorio, visto que é um bater suave e despreocupado. Cogita sobre o que fazer e decide ir abrir a porta. É uma mulher mais para o lado jovem do que o velho, elegante e com um cabelo preto invejável.
-O que quer?- questionou o incomodado Comediante.
-Neste momento, apenas entrar.- respondeu calmamente a mulher misteriosa.
Há anos que ele não falava com uma mulher e muito menos recebia visitas de uma. Deixou-a entrar.
-Obrigado.
O Comediante, já sem qualquer resíduo da habilidade que antes tinha com o sexo feminino, vê-se algo nervoso e sem saber o que dizer. Numa tentativa de parecer cordial, oferece à mulher o lugar no sofá que costuma ser dele. Ela Aceita. Senta-se com uma postura invejável, quase parecendo que a Vida ainda não lhe tinha dado aquele súbtil curvar de costas que nos oferece a todos. Poderia até ser dito, de uma forma algo estranhamente suspeita, que a Vida não passara por ela ou, se passara, não se notava.
-O que faz aqui?- questionou o Comediante, desviando os olhos de forma incosciente e nervosa.
-O que faz você?- retribui a figura que invadia a casa do Comediante sem aviso prévio.
-Está em minha casa, acho que o mínimo que tem de fazer é responder à minha questão primeiro- diz o Comediante com uma voz certamente não típica de si, com falhas de volume e dicção.
-Está nervoso?
-Pois, talvez. Ainda não me disse quem é.
-Mas ainda há bocado chamava por mim- reflete esta mulher de forma enigmática, com o olhar de quem sabe de mais mas vai dizendo de menos.
-Não entendo o que diz. Eu estava sozinho como queria estar, não chamei por ninguém.
-Tem a certeza? Se preferir posso deixá-lo, mas penso que acabará por me chamar outra vez e não quero tenha o trabalho de sair da banheira nem de vestir esse robe vermelho totalmente ultrapassado que já nem lhe fica bem só para me deixar entrar. E para além disso, atente que o poema que escolheu para ser o último lido, está agora todo molhado devido ao seu movimento repentino na banheira.
-O que disse? Como sabe o que estava fazer? Quem é você?- respondeu o Comediante, boquiaberto e espantado com a situação que se desdobrava à sua frente.
-Sou o que você pensa que quer- remata a mulher, com calma.
-Não pode ser.
-Por hoje temos pouco tempo. Apareci assim repentinamente porque você não me deu alternativa. Sabe que sou ocupada. Amanhã talvez eu apareça outra vez, se for necessário. E parece-me que será.
Pálido e incrédulo, o Comediante não consegue responder adequadamente. Estaria ele já morto imaginando coisas? Definitivamente não. O que ele presenciava no momento é real, bem mais real talvez do que tudo o que já vira, como costuma ser o fim de vida.
-Amanhã falamos, então- despediu-se a Morte.
Enquanto o Comediante a via de costas, imponente mas graciosa, não sabia o que pensar acerca do que tinha acabado de acontecer. Tudo lhe parecera demasiado místico para quem nunca acreditou em coisas do género e, na expectativa de que a sua mente o estivesse a trapacear, dirigiu-se para o seu quarto, onde se deitou na cama guinchante que há tantos anos detinha. Tentou dormir.
Será absoltutamente escusado dizer o óbvio. Não dormiu. Passou a noite inteira de olhos abertos à espera de um regresso esperado, apenas para outra altura, já que o encontro estava marcado. Um encontro com a Morte. Este, ao contrário de todos os outros, era anunciado e incentivado não por uma desgraça, por um acidente ou por uma doença trágica mas sim pela consequência de estar vivo e preferir estar morto. Diga-se de passagem que a sua vontade de cometer suícidio tinha sido apoquentada pela própria Morte. Mais uma vez, irónico.
O facto de não ter dormido não podia ser impeditivo de marcar presença no trabalho e, por essa razão, levantou-se da cama, ainda com o robe vermelho vestido, e foi até à casa de banho para tomar um duche. Ao rodar a torneira, apercebe-se da folha onde estava escrito o seu poema de eleição e apercebe-se também que já não é legível, como tinha sido mencionado pela sua visita. Não obstante este detalhe mórbido, repara que a torneira já não escorre água. Que surpresa. Desiste então da sua higiene pessoal, como havia desistido já de comer de forma saudável ou fazer exercício e veste-se incomodado ainda por causa da noite anterior. Talvez tenha sido da sua distração mas, ao olhar-se ao espelho após se ter vestido, repara que está mais mal vestido do que de costume, problema que estava longe de ser a sua principal preocupação. A sua camisa azul com uns vísiveis nove anos de uso e as calças beges já descoloradas, quase brancas, não podiam ser alvo do seu foco. Se realmente a Morte o tinha contactado, ele tinha outras coisas em que pensar.
Abre a porta de casa. Desce as escadas à pressa para não encontrar o vizinho, cuja porta ele ouve a ranger, e sai do prédio decadente em que vive.
Atravessa o caminho do costume mas não repara em nada. Está preso nos seus pensamentos, algo que há muito não acontecia. Já não olha para o velho que o incomodava. Já não repara no olhar seco de toda a gente, agora igual ao seu. Pelo caminho, enquanto olhava para a calçada histórica, averiguava o que devia fazer quando a Morte regresasse ao seu minúsculo apartamento. Certamente que tentaria falar com mais pompa e circusntância, não queria chatear a Morte.
Chega à entrada do escritório onde exerce funções que há uns anos atrás eram apenas alvo de comédia para os seus manuscritos bem humorados. Entra. É olhado de lado, todavia, não repara nisso. Caminha em direção à sua secretária e tropeça no caixote do lixo de um dos seus colegas de trabalho.
-Olha por onde andas, pá!- soltou o colega, com um tom nada amigavél.
-Desculpa, desculpa- escusou-se o Comediante, não olhando o sujeito nos olhos.
Recompõe-se e tenta remediar a confusão que causou. Talvez por ser ainda cedo e não ter dormido nada de noite, o Comediante estava particularmente cansado e a fazer tudo muito lentamente. Irritado com esse facto, o seu colega, num daqueles atos de descontrolo que só se percebem ridículos passado meia hora, olha para os olhos do Comediante e decide por bem soltar a fúria que provavelmente estaria arrecadada dentro de si há algum tempo.
– Quem te viu e quem te vê han…Já nem pegar na merda duma esfregona consegues. É dos remorsos? Pões-te a pensar na rapariga que assediaste? A pensar em tudo o que perdeste por causa de um impulso doente? Vai para casa e morre, não fazes falta.
Todos os colegas olham para a situação espantados e com medo do que se pode seguir.
Cansado, zangado com a vida, injustiçado pelo que aconteceu e com uma vontade enorme de descarregar uma ira aglomerada, o Comediante parte para a violência. Salta para cima do colega e dispara-lhe socos violentos na cara. O colega tenta retribuir mas está no chão e de atlético, tal como o Comediante, tem muito pouco. O chefe tenta separar ambos e acaba por conseguir empurrar o Comediante contra a sua própria secretária, afastando-o assim da luta.
-Vai permitir isto chefe?- diz o colega inundado em sangue.
O chefe olha para o seu amigo Comediante com um olhar não de raiva, não de incompreensão mas com um olhar de quem já não pode aguentar o incomportável peso que é ser a última ajuda do Comediante.
-Vai-te embora, por favor. Desculpa- pronuncia o chefe amigo com voz tremida.
-Tu não. Por favor. Tu sabes o que aconteceu. Por favor.- responde o Comediante desesperado e com as lágrimas iminentes no canto dos olhos castanhos escuros.
-Sai…-termina o chefe.
O Comediante, destroçado com a situação, amargurado com todos os que, em tempos, se riram com ele, sai do escritório e corre para casa. Corre como já não corria há anos. Até desajeitado para quem o vê na rua a correr até ao Destino. Enquanto corre, enxaguado em lágrimas de pura raiva, volta a cair. Desta vez estava a pedir para que isso acontecesse. Fica estendido na rua e olha para o céu repleto de nuvens que cobriam toda a cidade. Chora. Chora. Chora. Sabe a culpa que tem na situação. Sabe que, apesar de inocente no que concerne ao escândalo, teve culpa em muitas outras coisas. Parecia até que o escândalo fora a forma que a Vida tivera para o castigar. Enquanto estava estendido no chão, vê a Morte a passar. Levanta-se e corre atrás dela. A distância que percorre parece não ser encurtada nem pela maior velocidade que ele possa empregar na corrida. Como aquele sensação de correr em sonhos. Não desiste. Continua a correr. Corre pela Morte.
Nota que, de tanto correr, chega a casa rápido. Entra. A Morte está à sua porta, como se, negando todo o sentido metafórico presente no estilo, estivesse à sua espera.
-Entremos- disse Ela.
O Comediante abre a porta, tremendo, não de medo mas de nervos. A porta abre-se.
-Podemos falar?- questionou a Morte.
-Sim.
Senta-se no cadeirão perto da televisão antiga e deixa o sofá para a Morte. Ao menos que Ela esteja confortável.
Revoltado com a Vida e consigo, o Comediante, vocaliza a primeira de muitas questões que tem.
-Porque estás aqui? Não tens de me convencer de nada. Há anos que penso em ti.
-Não estou aqui para o convencer, mas sim para falar consigo. Pressinto que possa ter umas quantas questões para mim.
-Porque veio por mim?
-Como lhe disse, foi você quem me invocou.
-Aparece a toda gente? Como está aqui e agora?
-Se no dia seguinte ninguém morrer, sabe que desapareci. Acho que não é esse o género de questões que me quer fazer.
-Sabes quando vão as pessoas morrer? Ao certo? Eu, por exemplo.
-Quando você souber a resposta já não lhe irá interessar. Será óbvio.- disse a Morte, manifestando um esboço de sorriso.
-Vejo que tem sentido de humor.
-Não quero desiludir o Comediante.
Olhando para baixo, sentindo o cabelo nos olhos de tão grande que já está, engole a seco e enfrenta a Morte olhos nos olhos.
-Há muito que não sou o Comediante e acho que sabes disso. Se o fosse não estavas aqui.
-Provavelmente. Será que isso importa agora?
-Pois, talvez não.
-Já tenho pouco tempo, pretende dizer algo mais hoje?
-Como assim “hoje”?
-Amanhã estarei de volta. Estou sempre por perto, nem que seja apenas na vossa incrível mente.
E desaparece. Como o ar.
Desta vez, ao que parece, o Comediante soube lidar com a visita e com a despedida breve. Ou, por sua vez, estaria apenas demasiado cansado para sequer ter uma reação coerente com o que estava a viver. A necessidade de falar com alguém, um amigo, um familiar, um vizinho, era crescente mas não seria de todo saciada, já que ele deixara de ter com quem falar a partir do momento em que ninguém acreditou nele. No momento em que, talvez pela sórdida vontade humana de assistir à desgraça alheia, o público decide nem sequer ouvir o que o seu adorado Comediante tem a dizer e os seus amigos, estranhamente, fazem o mesmo. Ele estava sozinho. Ele era sozinho. Diga-se, no entanto e de passagem, que o Comediante nunca teve muitos amigos, contrariamente ao que as festas a que ia aparentavam. Era um ser isolado e com um dom que o punha à parte de todos, não fisicamente como é aliás óbvio se remetermos a momentos do seu distante passado, mas sim emocionalmente. Nunca se entregou nem nunca se quis entregar. Era distante na sua vida pessoal. Os seus amigos eram aqueles que pagavam o bilhete e faziam daquela hora e meia uma enchente de risos que compunha o ego do Comediante. Era muito amado mas pouco amável. E talvez por isso, neste momento em que mais precisava, não tem absolutamente ninguém a quem ligar. Podia até ligar mas sem resposta. Ninguém atenderia. Ninguém. E o seu ego neste momento estava decomposto.
Deita-se no chão, resignado com o abandono de tudo, mesmo antes de ser abandonado por todos. As lágrimas que à bocado vertia estavam agora secas, prontas a serem retidas até não aguentar mais. Serve-se de cinco copos de whisky e bebe-os sentado no chão da sala, em frente ao sofá onde estivera sentada a sua única e, presumivelmente, última visitante de sua casa. Pelo menos até não ser mais visto.
Aquela terça-feira ia ainda no seu começo. Para azar do Comediante, era ainda cedo e teria, portanto, de se ocupar com algo para não entrar em total paranóia, ainda que tudo o que tinha acontecido parecesse ser uma Tragédia pronta a ser acabada e depois teatralizada para cidadãos analfabetos que, passados anos e anos, saberão a história de cor e mesmo assim, vão querer ouvi-la. Não por deter um rasgo particularmente fascinante mas porque está lá ao seu dispor. Existe e não é deles. O facto de não ser deles é o mais importante. Apenas vêem, ouvem, imaginam, talvez sintam, mas não vivem.
Decide então, apenas de modo a ocupar tempo, sair de casa para comprar o jornal e fazer algo que já não fazia há demasiado tempo. Saber o que se passa no Mundo. Espera na fila durante uns 2 minutos, à sua frente estavam duas velhotas já de cabelo grisalho e um jovem alto, de costas largas e ar de quem sabe o que lhe fica bem. O jovem compra o jornal, recebe o troco e sai da fila. O Comediante fixa o olhar nele. Algo de reconhecível lhe chama a atenção. Sim, aquele sinal enorme no braço não tem que enganar. À sua frente na fila (mas também na vida) esteve o seu antigo companheiro de “tour”, o mesmo companheiro que sabe perfeitamente o que aconteceu naquela devastadora noite e, no entanto, está calado para sua própria proteção.
Por uns efémeros segundos, o Comediante pensa em segui-lo, de modo a descobrir o que anda ele a fazer por estes dias. É certo que nunca mais se ouvira falar dele, até porque, olhando para trás, o Comediante percebe que o seu protegido não era assim tão bom, todavia, o estatuto de abrir um espetáculo do radioso Comediante era, na altura, um selo de qualidade imediato e irreversível. Se o Comediante acreditava nele, ele tinha de ser bom. Mesmo que não fosse. E, pelos vistos, não era. É certo que o próprio protegido foi alvo de controvérsia na epóca do escândalo mas apenas por ligação ao Comediante, quando, porém, devia ter sido muito mais culpado do que se assumira.
Desiste rapidamente da ideia incomportável de o seguir. O que aconteceria se fosse apanhado? A vergonha que não seria! Por outro lado deduz também que, mesmo se fosse apanhado, o que perderia? Já ninguém quer saber dele e, possivelmente, nem seria reconhecido por aquele que tinha escolhido um dia para ser o seu sucessor.
Segue-o. Como seria de esperar de algúem que já tinha emborcado cinco copos de whisky, o Comediante demonstra ser o pior agente secreto da sua cidade e arredores, ao ponto de ir contra pessoas desconhecidas por estar constantemente a olhar para o Jovem traidor. Pensou que teria sido útil trazer óculos de sol, não só para o estilo, mas porque o Sol estava forte e os seus olhos cansados. Muito andou o Comediante, até que chegou ao mesmo destino do perseguido. Nota que este entra num café, com ar suficientemente estranho para não ser demasiado frequentado, ao mesmo tempo que saca de umas notas em papel que levava no bolso de trás. O Comediante entra, disfarçadamente. Ou pelo menos tenta que assim seja. Senta-se e pede uma água. Repara que está um pequeno microfone ao fundo da sala e vê o Jovem lá por perto. Mas era tão cedo que seria impossível fazer uma ronda de stand-up. Ninguém estava ainda nessa onda. Só conta piadas antes das cinco quem ficou bêbado ao almoço.
Ao aproximar-se do microfone, o Jovem não profere uma única palavra. Olha apenas para os papéis que tem na mão e vai olhando para as cadeiras vazias. Está a fazer o que o Comediante lhe ensinara. Fazer comédia sem público é ainda mais solitário que escrever piadas e, com isso em vista, o Comediante, sempre antes da hora do espetáculo subia a palco com as cadeiras vazias, imaginando o público pronto a ser manuseado, enganado, fintado, entretido, e dizia as piadas na sua cabeça. Fica de certo modo nostálgico, este Comediante já sem piadas para imaginar na sua cabeça, ou sequer a motivação para o fazer. Fica a observar o seu antigo aprendiz com, por mais absurdo que possa parecer, algum orgulho, apesar da mágoa que guardava por aquela pessoa, que deixou o seu grande Mestre na penúria, apenas por não ter admitido o que fez.
O Jovem deixa o microfone e dirige-se para a porta por onde entrou.
O Comediante pergunta à empregada do bar a que horas terá início o “open- mic”, apontando para a porta que ficara semi-fechada, querendo fazer referência ao sujeito que se tinha ido embora agora mesmo.
-Por volta das dez e um quarto, talvez mais tarde. Sabe que este pessoal não chega a horas para nada.
-Este deve chegar- disse o Comediante, certo da pontualidade que tinha incutido ao seu antigo companheiro de comédia.
O Comediante levanta-se e olha fixamente para o microfone antes de retornar a casa. Faz lembrar-lhe os seus tempos de iniciante no Mundo do Humor. Deplorável porque, como é óbvio, no começo ninguém é bom mas, pensando nesses tempos, aqueles escassos sorrisos que ia arracando eram deliciosos. E, ao lembrar-se depois do nível que atingiu, tudo ganhava proporções lunáticas.
Sai do bar e retorna a casa.
Eram agora aproximadamente sete e vinte e a fome apertava. Durante todo o caminho pensou em como lhe saberia bem comer um bom cozido à portuguesa, mas esse mesmo prato ficaria apenas e só no seu pensamento porque cozinhar não é com ele e mandar vir faria com que o dinheiro para as garrafas de whisky escasseasse, ainda que baratas e com desconto. Como tal, abre o frigorífico, olha para tudo o que não tem e decide fazer ovos mexidos com salsichas, o mais perto de um cozido que a sua habilidade culinária permitia. Assim vivia há já anos e anos, sem uma única refeição dita “séria” ou elaborada com qualquer tipo de saber. Vivia à base de congelados e ovos mexidos, não admirava que estivesse tão mal fisicamente.
Enquanto preparava a sua iguaria digna de quem não sabe estrelar um ovo, lembrara-se que, durante todos aqueles anos em que vivera encarcerado no minúsculo apartamento arrendado, nunca ouvira música. Nunca deu uma chance ao seu gira-discos caro de iluminar com melodias belas a pequena sala, pelos vistos digna de receber a Morte. Com isso em mente, o Comediante vai à sua coleção prezada de vinis que nunca vendera, até quando precisava de dinheiro para se embebedar nas noites mais solitárias que o costume. Era das poucas paixões que tinha para além da Comédia, para além de fazer rir, para além de escrever algo tão genial no conforto da sua casa que o deixaria orgulhoso de si mesmo. É certo que não tocava nenhum instrumento e para cantar não detinha qualquer talento mas, ao remexer a coleção, lembra-se dos exatos momentos em que escrevera certa piada, com certa música de fundo, quase como a melodia de uma canção que não ouvimos há tanto tempo nos faz lembrar instataneamente a sua letra.
Retira o “Master and Everyone” de Bonnie “Prince” Billy e decide começar por ouvir “Wolf Among Wolves”. Sempre fora uma música que adorava. Limpa de forma desajeitada todo o pó que cobria aquele oneroso gira-discos e coloca o vinil no sítio onde pertence. A música começa.
Com todo o aparato, acaba por deixar os ovos queimar e decide jantar dois copos de whisky e pão do dia anterior com manteiga. Batem-lhe à porta. Certo de que será a Morte, aperalta-se minimamente e segue em direção à porta com prontidão. É o senhorio. O Comediante foi apanhado por algo que, naquele momento, lhe pareceu pior que a Morte. Um senhorio sedento de rendas atrasadas.
-Olá meu caro…por ventura, não terá nada para me entregar?- iniciou assim a conversa o senhorio, com um tom de brincadeira de modo a aligeirar o pedido ao qual vinha.
Hesitante, o Comediante pensa em mentir e convencer o senhorio a dar-lhe mais uns dias, contudo, com tantas visitas da Morte e outra para muito breve, resolveu ir buscar o parco dinheiro que tinha de parte.
-Sim, sim. Deixe-me só ir ali buscar-respondeu o Comediante com cara de quem não quer brincadeiras e muito menos pagar rendas.
Caminha de forma pesada até ao quarto e retira do colchão o dinheiro que lá tem depositado. Recoloca o colchão como estava e suspira.
Caminha para a porta e vê a Morte no seu sofá. O seu olhar, todavia, está apenas focado no senhorio que provavelmente não reagiria nada bem ao facto de ver uma mulher tão esbelta no sofá do Comediante, sabendo ele toda a história em que o seu inclino esteve envolvido. Mas, de forma surpreendente e aliviante para o Comediante, o senhorio está calmo e parece não ver ninguém no sofá. Olha para todo o lado e não vê ninguém. É claro, não foi que ele chamou a atenção da Morte. Ela estava ali só para ele.
Entrega o dinheiro e o senhorio faz cara feia porque aquele dinheiro não serve para pagar os meses em atraso.
-Daqui a uns dias pode vir cá bater outra vez, terei mais para lhe dar, se quiser- diz o Comediante como forma de o despachar. Fecha a porta.
Com tudo isto a acontecer em simultâneo, o Comediante nem disfrutou da música que escolhera para o acompanhar no jantar solitário.
-Já não bates à porta?
-A porta estava aberta- disse a Morte com a sua serenidade habitual.
-Tenho algumas perguntas para ti. Todavia, hoje sou eu que tenho alguma pressa. Vou a um “open-mic”.
-A proximidade com a Morte levou-te de novo aos palcos?
-Vou apenas ver.
-Que pena.
-Posso perguntar o que quero?- questionou o Comediante, um pouco nervoso.
-Certamente.
-Existe vida após a morte?
-Para os que cá ficam sim.
-E para os outros, aqueles que cá deixamos?
-Deixarás cá alguém? Apesar disso, mais tarde ou mais cedo saberás.
Desolado com a resposta, confrontado com a solidão que lhe tapara a vida, cala- se durante uns segundos. Pensa que nem o seu legado será reconhecido após a sua morte. Terá sido tudo em vão.
-Nós, os Mortais, temos durante toda a nossa vida a informação que morreremos um dia, isto é, temos sempre um medo…qual é o teu? Suponho que sejas eterna, já que todos os dias alguém morre.
-Saber que alguns de vós se preocupam mais com o que me é posterior e não anterior. Você foi um caso curioso de observar. Nunca tivera propriamente medo de morrer, achava-se Imortal e agora faz-me esse tipo de questão? Algo está a perturbá-lo?
Decidido a perguntar o que queria, ignora a questão da Morte e segue imediatamente para a próxima dúvida que lhe vem à cabeça.
-Porque morrem, por vezes tão jovens, aqueles sujeitos que, ao contrário de mim, foram encantadores durante a sua curta vida, foram amigos do próximo, amigos até do ambiente, vegetarianos e essa gente?
-Eu não mato ninguém. Sou apenas a situação que os contempla após deixarem de existir. Como poderia a Morte matar alguém?
Vencido pelo racícionio de alguém muito mais velho que ele, cala-se. Olha a Morte nos olhos.
– Como deve calcular o seu tempo está a acabar.
-Terás de ir embora agora?
-Sim, mas não falo disso.
-Se tu apareceste porque me ia suicidar, não basta eu não me suicidar para não te voltar a ver durante uns tempos?
-Não morreste e eu estou aqui. Evapora-se. Mais uma vez.
O Comediante olha para o relógio que tinha mesmo por cima da porta da cozinha e apressa-se para não chegar atrasado ao “espetáculo” que tanto anseia ver. Há anos que não frequenta qualquer tipo de contexto humoristíco, mas, se for honesto consigo próprio, há anos que não frequenta contexto algum. Vive por viver e todos os espaços que frequenta são meras paragens onde ninguém fica durante muito tempo.
Procura vestir-se bem ou, pelo menos, dentro do aceitável, de forma a não ser demasiado óbvio que está naquele sítio totalmente à parte, embora tenha percebido que o café seria populado por gente que, esteticamente falando, estaria no seu patamar. Dito isto, sai de casa com a melhor camisa que ainda sobrevivia aos constantes maus cuidados de que era alvo, calças de ganga já velhas (como ele), casaco de pele gasto e sapatos dos quais ninguém daria conta. Não estava mal nem bem. Estava, como sempre.
Sai de casa ainda com tempo suficiente para não ter que ir a correr até ao destino. Passa pelo café do costume, já fechado e sem velho berrante.
À noite tudo ganha outra aspeto. Quase como se os caminhos mudassem, as ruas trocassem o seu nome e nos ludibriassem de próposito porque sabem que está escuro e o olho humano vai fracassar. A mudança de vida do Comediante foi assim mesmo, um grande engano do dia que resultou numa noite escura e sem ruas, sem calçada, sem luz, sem carros a passar e acima de tudo sem pessoas. Talvez se, por mero acaso como são sempre estas coisas, tivesse encontrado alguém ou alguém o tivesse encontrado a ele, a situação seria diferente, porém, o Comediante já tinha sido descoberto pelo Público, por aqueles que tanto lhe deram, por aqueles de quem ele tanto precisava (mas os quais também temia).
Chega, por fim, ao bar. Certamente aparenta ter outra vida durante a noite, até nem parece assim tão mau em relação ao que tinha sido presenciado mais cedo.
Pede um copo de whisky e senta-se numa mesa ainda distante de onde a ação principal se daria. São quase 22h15, de certo que estaria quase a apresentar- se ao público. Enquanto isso não acontecia, o Comediante ia olhando para todos os presentes na sala, na expectativa de encontrar algum conhecido de outros tempos, pessoal da Comédia.
Aí está ele. A sua fraca figura não mudara muito depois de tantos anos. Alto, magro, cabelo escuro, perna fininha e mãos desproporcionais, no entanto, tinha o seu charme por ser engraçadito e ter a capacidade de dizer umas piadolas interessantes de quando em vez.
Começa a sua rotina. Olha o público nos olhos como aliás manda a regra e tenta gesticular quanto baste o que vai dizendo para ganhar presença na pequena sala. O público ia-se rindo timidamente com ele.
No decorrer do “espetáculo”, o Comediante constata que algumas das piadas proferidas pelo Jovem lhe são demasiado familiares. Sim, não tem dúvidas, são da sua autoria. Eram daquelas piadas que nunca foram suficientemente boas para subir a palco mas, no entanto, pareciam ao Jovem suficientemente boas para serem ouvidas num bar desconhecido. Em tempos, o Comediante ficaria fulo e submerso em raiva mas os tempos agora eram outros. A única coisa que sentia era pena, compaixão e desprezo total, já não lhe importava. Perdeu o interesse. Estava ali para ver o seu antigo Escolhido e depara-se com as piadas que outrora escrevera mas nunca revelara a ninguém, sem ser ao seu companheiro de “tour”. No fundo, viu-se a si mesmo mas em deterioração. Viu- se a si.
Levanta-se, segue para a porta do bar e ali fica durante uns segundos a olhar para o Jovem. Numa das suas gesticulações bizarras, o Jovem reconhece o Comediante que ali se apresentava impávido e sem reação. Olham-se durante uns milésimos de segundo, as verdades sobresaem em cada uma daquelas mentes, o passado é recuperado em sinapses frenéticas e tudo para à sua volta. O público deixa de existir. As luzes estão neles os dois e o Comediante sai. A porta bate e o Jovem recupera o ritmo onde o deixou.
Desiludido consigo mesmo, percorre o caminho para casa de cabeça baixa.
Abre a porta do prédio e, ao ouvir o barulho do elevador, corre pelas escadas até à sua porta para não falar ao vizinho. Esta corrida é exatamente a mesma que o Homem tem contra a Morte. Ambos se vão encontrar mas de preferência mais tarde.
Abre a porta do seu apartamento e lá está a Morte no sofá.
-Creio que não vieste para jogar xadrez- disse o Comediante.
-Não.
Ambos se olharam nos olhos e acenaram com a cabeça. Dirijiu-se ao seu quarto, deitou-se e adormeceu.
No dia seguinte encontrou o vizinho.