Da Imprevisibilidade, n’O Tempo de Sua Graça, Rodrigo Furtado

Texto do Professor Doutor Rodrigo Furtado

Cruzam-se várias histórias n’O tempo de sua Graça (1960) do sueco Eyvind Johnson (1900-1976). Em primeiro lugar, a história da tempestade de fim de Quaresma que marcará para sempre o futuro das personagens: o de Perto, ou Joahnnes Lupigis, cuja vida constitui o fio condutor da narrativa; mas também todos os outros futuros das muitas outras personagens com quem Perto se cruza. Nenhuma vida acontece como se previra, nenhuma existência como se esperara. “Penso cada vez mais nas metamorfoses por que passei na minha vida”, diz Perto já quase no fim do romance (p. 459). E tem razão: esta é a história das muitas metamorfoses na vida de muitas pessoas, ao longo de cerca de trinta e cinco anos. Estas metamorfoses são marcadas pela mudança dos nomes de várias personagens e dos espaços da narrativa; e pela mudança da fisionomia trazida pelo tempo. Raramente essas metamorfoses resultam de um exercício de liberdade: as personagens são constantemente acossadas pelas acções de outras ou da natureza, que elas não controlam, não esperam ou nem sequer conhecem.

Esta é também a história de uma fagulha que a tempestade solta de uma lareira, e que uma mão sacode de um joelho. O amor ingénuo e não concretizado de Perto por Angila, com que o romance começa e termina, conduz toda a vida do protagonista e é porventura o seu elemento mais duradouro: “ainda é bela? Penso que nem mesmo com a idade poderá deixar de o ser. Para mim, será sempre igualmente bela […]. A sua beleza não desapareceu da minha memória com a passagem do tempo. […] Recordo continuamente a sua grande beleza” (p. 474). Com o amor de Perto, e muitas vezes contra ele, cruzam-se outros amores de vários homens pela mesma Angila, ou Angilperta, mais tarde chamada também Landoalda: os dois irmãos de Perto, Warnefrit e Conald, o marido traído de Landoalda, Gunderic, os amantes dela, o tagarela Radbert e o bastardo Ercanbald, ou ainda o jovem Agibertus, que narra parte da história.

E esta é também a história de uma giesta, de um portão que se alarga e encolhe, de um crucifixo precioso ou de um dedo da mão, que não se dobra e resiste à sujeição… quase até ao fim.

É também a história de uma viagem à Lua. Para lá das montanhas, fica a corte de Sua Graça, à vez sede do tirano e porto seguro, centro do saber e espaço que anula cada uma das personagens. Esta viagem à Lua é, como Perto recorda, semelhante à viagem de Faetonte a conduzir o carro do Sol: de facto, para lá da quimera de um mundo ideal, a corte de Sua Graça revela-se como o local da destruição do indivíduo. Aliás, Sua Graça anula todas as personagens: Bertoald e a sua família; o grosseiro Wanefrit, aparentemente domesticado depois de uma década de calabouço; o fustigado Conald, empurrado sem rumo para as frias terras do sul da Jutlândia; Angila/Landoalda, encarcerada no seu castelo nas margens do lago Lemano; e obviamente Perto/Johannes, forçado a colaborar no palácio de Sua Graça. Ninguém está onde espera estar; ninguém está onde quer. Tal como Faetonte mais não faz do que matar tudo à sua volta, a viagem à Lua tornar-se-á antes uma descida ao Submundo, onde apenas se sobrevive depois de um pacto com o diabo.

Também se cruzam vários narradores a contar a mesma história: o próprio Perto; Agibertus, convertido pela força das circunstâncias à vida intelectual depois de uma noite com Landoalda; um narrador omnisciente; e as várias personagens e os seus diálogos interiores. O mais extraordinário de todos estes diálogos é o de Wanefrit, no pátio da casa familiar, quando percebe ter perdido a mão prometida de Angisperta. Uma personagem tida como bruta, incapaz do mais frágil lampejo de inteligência ou subtileza, assoma-se ali com uma gigantesca força, atordoando o leitor e obrigando-o a rever toda a história sob as lentes da personagem: é inevitável que, depois disto, suspeitemos de tudo o que nos foi dito, como mais tarde, quando da libertação do mesmo Wanefrit, aparentemente metamorfoseado depois de dez anos nos calabouços.

Tudo isto se passa entre o Friul e Aquisgrano, entre 775-809, no tempo de Sua Graça, o rei dos Francos e dos Lombardos, mais tarde imperador romano, Carlos Magno. Johnson parte de um acontecimento histórico, a revolta falhada do duque de Friul, Rotgaud ou Radgaud, contra Carlos Magno, em 776. No contexto da expansão do domínio carolíngio, esta foi uma das várias tentativas de resistência ao rei franco, já depois da deposição do último rei lombardo, Desidério, em 774. A narrativa começa com a vida certamente banal dos Lupigis, uma família da baixa nobreza regional, primos do duque da região, que os visita amiúde. Vivem uma vida tão pacata quanto possível nas montanhas do Friul, com os seus escravos e terras e com as disfuncionalidades que adivinhamos em muitas famílias: três irmãos estão a entrar na idade adulta, alimentando rivalidades entre si, todos com perspectivas limitadas de futuro – o do meio acabará por estar destinado à guerra; o último, adivinha-se, a uma carreira eclesiástica. A tempestade chegará de forma imprevisível quando os três se apaixonam pela filha adolescente do duque, prometida vagamente ao primogénito; e, quase ao mesmo tempo, com a revolta de Rodgaud, em que a família Lupigis se verá envolvida. Ambas as coisas dividi-los-ão para sempre. Todas as personagens ver-se-ão enredadas numa teia de guerras, prisões, conspirações, falsas acusações, violações, desastres naturais e praticamente nunca momentos felizes.

O texto refere também figuras históricas como Alcuíno, Eginardo ou Paulo Diácono, mas Johnson nunca os coloca verdadeiramente como personagens. Claramente, a História não interessa a Johnson, nem tem de interessar, porque este não é um “livro de História”. O tempo escolhido, não sendo aleatório, é um cenário para os eternos temas do amor e do poder, entrelaçados com os dois tópicos maiores da liberdade do ser humano e da imprevisibilidade da vida. O mundo carolíngio revela-se um óptimo tubo de ensaio: Carlos Magno desenvolveu uma ideologia aparentemente bondosa de recuperação da unidade romana no ocidente, que trará consigo uma política de eliminação armada das resistências e de submissão de todos à vontade do governante e do seu entourage. O medievalista (ou classicista) acusará porventura a falta de um certo ambiente intelectual que procurou recuperar os clássicos, do denominado “renascimento carolíngio”, ou talvez até mais de referências ao esforço de compilação e cópia que caracterizará a cultura letrada da época. Mas, de facto, isso não importa para a narrativa. Para lá de uma linguagem que não recorda demasiado os textos medievais, Johnson abstém-se ainda de anacronismos tolos: não encontramos consciência de classe, potenciais revoltas de oprimidos ou reflexões sobre os defeitos das ditaduras e alternativas colectivistas.

A incessantemente repetida bondade do imperador é um refrão puramente mecânico, um címbalo que soa, como uma mnemónica que todos se esforçam por não esquecer: “o nosso bom e benevolente imperador”. Não deixa de ser irónico que Johannes acabe por vergar para se tornar adjunto de Eginardo, o famoso biógrafo de Carlos Magno: a colaboração torna-se o único caminho para sobreviver. Mas sem cobardia. A colaboração é o único caminho realmente disponível; não é uma escolha cínica e/ou livre. Em Carlos Magno espelham-se todas as tiranias aparentemente bondosas mas maldosas, aparentemente bem, mas mal-intencionadas de todos os tempos: todos os impérios se fazem à custa da vida e dos planos de cada indivíduo, quer seja ele inimigo, quer seja ele parte dos vencedores. Neste sentido, tanto podia ser Carlos Magno, como Hitler ou Estaline: Sua Graça e a sua vontade tornam-se a medida de todas as coisas e de todas as vidas.

A determinada altura, mesmo o resgate dos calabouços e o regresso à luz da corte  são antecedidos pelo pesadelo da catábase: “as suas correntes caíram sem se soltarem do muro. E sem que ninguém as desprendesse. Não se soltaram do seu pulso e tornozelo, mas esticaram-se. Não perderam o seu peso, mas teve forças para suportar e erguer. Ele levantou-se sob o ruído das correntes e caminhou em direcção ao Portão” (p. 431); um portão que não devolveu Johannes à liberdade, mas à corte de Sua Graça.

Este é um livro sobre uma Quaresma sem fim. Nem em Deus há verdadeira consolação: os Seus planos são insondáveis, como as personagens já sabem, e, se Ele desejar alguma felicidade, ela não é aquilo por que as pessoas anseiam, como elas acabam por aprender. Mesmo no fim, quando Sua Graça autoriza Perto a resgatar Angila, o resultado será apenas a morte: o romance termina com um epitáfio onde estão mortos quer a defunta quer o dedicante. Foi em 809: “foi, para mim, esse o ano em que a vida de Johannes Lupigis terminou de facto. Não a terrena, como sabemos, mas as esperanças e o amor terrenos foram-lhe retirados para sempre” (p. 522).

Eyvind Johnson venceu o Prémio Nobel da Literatura em 1974.