Conto de José Maria Pinheiro de Souza Neto
I
Ao porto desce a embarcação entre chocalhos de um mar raso, na costa de maresia e pequenas inclinações, o barco lentamente se aproxima. Joga-se a corda, despede da âncora, se firma no ambiente costeiro. Antes do grande mergulho ao solo, o marinheiro desprende do mar. Encontrando cheiros, ar seco e ruídos incomuns. Pessoas aos gritos, vendendo, comprando, se despedindo e chegando como ele. Seus pés mareados demoram a compreender a dureza do chão. Ele não cai, mas caminha os primeiros passos lentamente. Pisa em corda bamba.
Eu recolho-me no caminho oposto. Desapareço dos gritos do porto, em direção ao mar. À solidão, uma roda da fortuna, um grande consolo, uma voz original, que me faz crer em mim, assombrar-me em espanto catártico. Encontro em mim a liberdade e me distancio do mundo para voltar diferente, talvez menos maduro, talvez menos confiante de um confinamento. E o pensamento surge.
Quando o homem confinado se encontra durante muito tempo tem a certeza de que suas ações são sempre produtos de suas reflexões, porque ele procurou prever tanto com medo de errar, de não ser sincero a si mesmo. Ainda que seja um sonho de mentira, ele procura a certeza de criar.
Depois de lançado ao mar onde me encarcerei, me jogo dentro de mim mesmo, num grande mergulho rumo a mim, ao cerne de meu pensamento. Um mergulhador em apneia, desço as camadas do mar à procura do solo onde posso achar algum tesouro antigo há tempos esquecido.
Descerei da zona Epipeslágica, ainda banhada pela relação da luz, e verei cardumes platinados de riqueza. A duzentos metros abaixo da superfície do mar entro na Mesopelágica, a mil metros na Batipelágica, a quatro mil metros na zona abissal encontro monstros e seres estranhos.
Enquanto restar oxigénio procuro fincar meus pés num solo.
E emerge como uma criança do ventre de tua mãe.
Ao som de gritos, ao som da violência, persegue, entre o incenso das Bacantes banhadas de sangue puro, o animal que relincha, um javali, um porco, o sacrificado. Uma correria verde e marrom, o tilintar das folhas quebrando, as sandálias sujas de grama, dança e drama, Dionísio.
Emerge como uma criança do ventre de tua mãe.
Chora frio e fome. Aprende a falar, aprende a andar, aprende a manejar um garfo e uma faca, depois saltarás para cozinhar, e quem sabe já estarás a plantar teus alimentos.
Como num rito foi possuído o Autor por personagens, e quanto mais escreve mais medo sente de perder-se, afogar-se na imensidão de um mar abissal. Afogar-se é não falar nada, é morrer no ostracismo, como se a vida não tivesse uma história.
Mas eu começo a me formar enquanto aconteço, e aos poucos me torno alguém. Uma pessoa tem um corpo e eu nunca o terei. Sou uma característica, depois virei a ter atributos, quem sabe uma alma, mas se não posso agir sem o Autor, eu teria alma? Sou aquele que fala agora, que te engana e te maravilha.
Eu, nasci do mar. Filho do mar, sou turvo.
E nascido do mar, e preso a um rio, um rio que é minha alma, um mar que é minha vida. Acampei num descampado canto. Uma folha em branco. Ficção e Vida, Amor e desejo, há uma linha que as une, uma em cada ponta, estirada a linha de lã que, de tão esticados certos momentos, por um único fio, um fio forte que inevitavelmente irá se romper. Esta ultima linha nunca se recomporá, e partirá quando partir o ultimo suspiro de um ser humano, e a alma leve se desprenderá do corpo para a jornada da verdade, aonde não mais se encontrará presente a necessidade.
Ainda estarei preso à matéria de uma página.
Me formo sempre preso à materialidade, e nesse forno como de um sopro surge a alma (pneuma à psique). Multiplico-me. Faculdades e aparências. Desejos e afecções. Sou capaz de pensar por mim. Acredito nisso e virão as minhas ações. Se todas as histórias são sobre abundância ou sobre a falta, serei escrito no amor, e escreverá sobre o amor quem me escreve.
E me metamorfosearei em vários, eu um marinho, marinheiro que pelas ondas é levado a um porto, sou ao mesmo tempo comunhão entre pensamento e autor, sou um pensamento, sou uma personagem, e que passa o tempo da leitura, começo a questionar-me quem sou eu, eu que sou algo que virá a ser, posso ter várias formas e aparências, mas serei sempre desejo, e o desejo que eu tenho, essa emoção, o sentimento que perpassa as peripécias, e assim andante adiante me perguntarei: quem sou eu?
II
As tesouras de onde surgiram?
São duas facas inteligentemente colocadas. Pensou o Alfaiate, que nunca havia pensando sobre o instrumento de trabalho anteriormente, enquanto que a ele a maior parte do tempo competia-lhe cortar, as costureiras juntavam os trapos. Assim se rasgavam as futuras vestes e assim se faziam os vestidos, trapos juntos por frágeis linhas.
Neste dia o Alfaiate se pôs a filosofar, estava ocioso, estava cansado das novas modas. Modas que não dependiam de seu gosto. Sobre a mesa de trabalho, colocou uma das mãos no queixo, e desenhou um vestido que almejava ser clássico, nesse vestido pôs todo o seu esforço, e assim já era tarde quando terminou o esquete. As costureiras foram embora, e ficou apenas ele com o tempo para juntar os trapos.
A lua subia, e o Alfaiate estava apaixonado, e o vestido estava pronto. Modelos vieram de todos os cantos do mundo para usá-lo, mas o vestido era feito por medida e nunca foi por ninguém usado.
Havia o Alfaiate criado uma monstruosidade que não coube em nenhuma compradora, explicando depois o Alfaiate, ante seu leito de morte, que era um vestido vermelho chamado amor, provocava desejos de usá-lo para serem admiradas, para serem adoradas, mas não para ser jogado fora depois de uma noite de gala.
Um poeta comprou aquele vestido anos depois, e deu-o à sua amada que inutilmente nele não coube.
III
Todos os dias as manhãs chuvosas amanheciam a terra, a terra era negra como jabuticabas, grossa e limpa. Todos os dias o galo não cantava, e pela a manhã o agricultor o acordava ao procurar seu pequeno almoço no galinheiro. O galo atrasado só cantava ao meio dia. Dois ovos depois estavam arando e neste primeiro dia, o dia que herdou a terra, o homem sentou-se na sombra de uma macieira.
Depois de muito arear a terra, comeu um fruto que havia herdado, depois de comer tudo, consumir até o último pedaço do que era para ser deglutido, cuspiu a semente e ela se plantou. Tão simples como um pensamento, natural como o tempo, o sustento que basta cuidar para não se acabar, não morrer, pensou. Esqueceu daquela semente.
Foi ao mercado ver o que dava mais dinheiro, plantaria batatas ou trigo, quando gostaria, e muito, de ter umas videiras. O que plantaria seria o que desse mais retorno, e o retorno que buscava era comida na mesa de seus futuros filhos. Ele que jovem pensava quando teria uma família, e que tendo herdado cedo a terra, ficou solitário e órfão, mas já jovem adulto.
Ele que não tinha irmãos, nem irmãs. Não via a hora de colher frutos. Mesmo enquanto não percebia que alguns já lhe eram dados, então impôs na terra a sua fome e vontade, era esquálido e fraco, e depois ficou mais forte pelo trabalho, e o desejo consumia-lhe os dias, e trabalhava na terra antes do galo cantar. Mesmo que o galo só cantasse meio dia, ele trabalhava o mais cedo que conseguia levantar e dormia o mais tarde que conseguia lembrar.
E naturalmente vinha a chuva, e o frio o permitia dormir aconchegado, e naturalmente ao meio dia era lembrado pelo galo para descansar. E foram passando o tempo, trabalho e trabalho, e estava próximo do carnaval, e aquele campo de trigo era um mar dourado, e com o tempo alguns girassóis foram também plantados.
Ele, o agricultor, se maravilhava com a beleza de seus campos, e via que o esforço trás recompensa. Sua fama na redondeza era de sucesso e rapidamente plantou mais flores, algumas margaridas na soleira da casa. Ele era feliz. E naquele primeiro ano fez seu inicio de vida, uma pequena reserva e uma esposa que esperava um filho.
Rapidamente passou o carnaval, pai, pensava que poderia depois de alguns anos finalmente dar vinhas. Primeiro reservou apenas um pedaço da cultura do trigo. O primeiro ano choveu muito, perdeu algumas videiras, colheu algum trigo, e nasceram mais dois filhos, o segundo ano deveria escolher qual caminho e tipo de agricultor seria.
Os investimentos nas videiras não deram lucro, poderia vender as sementes que tinha, mas descobriu que as de trigo haviam morrido. E todos os dias antes do galo cantar e depois de o bebe chorar trabalhava nas suas uvas. Passaram safras e anos até que uma primeira pomada foi bebida. Na velhice pode tomar o seu vinho.
Um dia já ancião, foi perguntado;
Sabemos desse teu sonho desvairado, de plantar uvas em solo muito molhado.
E dos anos que morreram todos os filhos, e do ano que tua mulher te desprezou
E não deixaste de todo o dia trabalhar, e não deixaste de fazer a fome parar
Como gritavam os filhos que vinham, como reclamava a mulher faminta?
Respondeu.
Vês meu filho, vês algum sorriso?
Porque de fato é a coragem que trabalha
Quando não houveram colheitas
E comíamos sem fartura
E se dormíamos com fome
E hoje estamos bebendo vinho.
Temos que lembrar da macieira que se plantou só.
E o galo cantou no meio dia, e o jovem chorava no leito do pai, agora era órfão, e tinha uma terra, e amanhã se levantaria para trabalhar.
IV
O espelho denuncia a sua nudez, perante ao espelho o corpo envelhecendo, o rosto limpo, um cristalino opaco. É opaco por causa, a noite foi fria, um banho quente resolve, e o espelho é opaco, não interessa o tamanho do espelho, mais a sua propriedade e o espelho opaco é inútil. E parou em frente ao espelho nú, esperou a humidade, esperou em pé, e em pé, continua encarando o espelho ter seu tempo de revelar-se.
A dor de não se enxergar, lembrou da ultima vez que viu o seu reflexo, após a carta enviada, não pediu repostas, não solicitou opinião, e a carta que não deveria ser enviada, foi sua fraqueza, e ficou assim entendida como não lida. O silencio é uma resposta, o silencio é uma opinião. E o silêncio emudeceu todas as boas expectativas e encarcerou todo o sentimento.
Ele não se enxergava, e a neblina do banho quente que embolava a visão, tinha cataratas na alma. E dor. A dor alastrava-se pelas costas, e no peito era mais forte, era constante. O silêncio da má iluminada casa de banho, fria e úmida. É aonde o eco de qualquer grunhido reverberará e ficará ciente por mais tempo que o desejado, faz querer gritar e o faz querer se calar.
Assim desenhou com os dedos uma careta de felicidade. E lentamente o espelho a deformava, ela sumia e ele era a si mesmo revelado. Não estava vestido, via-se a sua beleza, e via-se as suas imperfeições. Coisas que almejava esconder, coisas que tentava não demonstrar, tentou um sorriso, mas dos seus olhos saíram lagrimas, tentou um choro, mas no momento riu.
Fechou os olhos e estava ali ainda. E a cada pensamento que possuía o espelho de volta refletia. E admirou o amor, porque ele era dele assim como sua nudez.
V
Acordei e continuei o trabalho, acordar e continuar o trabalho de ontem. E assim fazer um pouco a cada dia, e fazer bem feito, é o que importa, devagar e sem pressa, a pressa é inimiga da perfeição, e para o artista os prazos sempre se estendem, mesmo para aqueles jovens e desconhecidos, em que a solidão e o não-reconhecimento convivem com a pobreza, é verdade que o prazer desemboca na eternidade de ações sem fim, e o instante eterno acaba por deformar a obra. E muito se pensou e muito se trabalhou, apenas para descobrir que poderia ter ficado melhor, esse prazer que não preenche é como uma pedra no sapato, que circularmente me perturba. Não é amor.
E assim acordei e trabalhei mais pouco pois sonhei com o amor, e sonhei com o amor que quero demonstrar, e sonhei com a beleza que minhas mãos podem delinear, sulcar, criar, se é que posso criar sem base no que já é belo por natureza, e sabendo que as naturezas das coisas são como a minha natureza, uma realidade autônoma de minha vontade.
Acordei e trabalhei mais um dia, e mais um dia pôs-me a amar e mais um dia sobre o risco de pôr a obra perdida, um escultor sabe que não se concerta o que já foi quebrado, mas se recomeça. A pedra, o mármore, é duro e dá calos às mãos, e Pigmaleão transformou em carne, sonhando, se apaixonando. E assim é o artista que acorda todos os dias e trabalha.
Acordei e pus-me a trabalhar e a cada dia um novo desafio pois a rocha e a pedra não são capazes de amar de volta. A rocha é inerte e sem alma. Meu trabalho é tornar algo inanimado em algo com algum ânimo, é o trabalho de um artista, é o trabalho de um amante, mas não é o trabalho de um sedutor, porque a pedra não pode iludir-se, ela não se engana, mas desmorona caso feito algum erro, e porque como pedra vive o coração de alguns humanos. Sempre passivos, sempre não maleáveis, rijos e inabaláveis, que não permitem se moldar e não permitem perdoar.
E, o trabalho de hoje, foi arriscado, quase parto o braço, e caberia ser assim que se cria a Vênus de Milo, algum amor antigo de que ao longo do tempo se perderam as peças, as partes consumidas pelo vento, pela chuva, pelo ar, e se trabalhasse com Bronze, enferrujariam num ambiente salubre e salino. E assim deposito todo meu amor imperfeito e esforço numa pedra.
A pedra aos poucos ganha olhos, boca, mãos, mas não ganha sentimentos, ela é uma máscara de todo o meu amor, e assim consigo uma expressão que é meu espelho.
Um dia terminada, porque expressa quem sou, a pedra torna-se uma bela donzela, uma bailarina de Degas, uma cena cotidiana de simplicidade, um instante do meu prazer, um instante do meu trabalho, um instante de suor, um instante. Ela, a obra que enquanto se fez, foi prazer, e assim no prazer permaneceu.
No diário de notícias, a crítica da instalação: acharam a obra horrorosa, acharam-na de má expressão, e ficou no canto do museu para sempre admirada apenas por aqueles que têm o mesmo coração.
VI
Naquele mesmo museu, um quadro popular da renascença é a presença da sala rodeada de outros quadros, era capaz de terem quadros até no teto, mas não os víamos, mares de turistas, e tanta gente, e o quadro era guardado com grande cuidado, e não se podia chegar muito perto. Ali com tantas pessoas o admirando o quadro sorria um sorriso que só poderia ser falso.
Acostumou-se aos olhares, aos holofotes, aos falsos elogios, e assim achou que tudo era falso, porque os espectadores que não conheciam não saberiam a falsidade do quadro. Os olhos que admiram rejeitam, e é preciso tempo para se estudar o sorriso. Ninguém lhe parecia lhe dar o tempo que precisava para ser admirada.
As marcas do tempo eram escondidas pelas frequentes restaurações, e se a cor parecia encardida e sem luz, uma nova tinta revestia-lhe com uma tonicidade viva. Nunca sairá de seu cômodo, e nunca saiu de seu quarto. As pessoas faziam filas para verem o quadro que sorria enigmático.
VII
Metade homem, metade pássaro, é uma galinha que tanto tenta voar e que só consegue pular. E pula para cima, para tentar alcançar, e cai. Porque o que importa para o homem não é flutuar, mas voar, e voar é estar longe do chão e viajando com um destino. Sair de um aeroporto para outro. O homem pássaro podia se chamar Casanova. Era um marinheiro chamado Sorriso de Ouro, seu primeiro nome ninguém conhecia, para cada nova conquista se chamava diferente e para cada mulher esquecida no porto deixava um filho com nome de santo.
Goldsmile, Boccad’oro, Risotouro…
Seu amor era a independência e significava liberdade. De dia peixe, a noite homem, um boto encantado. Viajou sem ficar por mais de dois dias num solo, pelos sete cantos do mundo. E vendeu sua alma para o escorbuto.
Se era feio ou belo nunca poderá saber, se era extrovertido ou tímido, também não, pois era sempre uma figura que quando sorria brilhava. Brilhava pois não escolhia, ele era o escolhido, quando escolhia era no porto alguma moça que não perseverava na prole. E assim seus dentes de ouro escondiam a sua tristeza.
A sobrevivência e o trabalho o obrigavam a ser nómada, e a sua alma o obrigava a sofrer no whisky. Com o tempo sua pele tornou-se couro, e apenas tinha memórias de caricias. E tornou-se casto não a contragosto, mas porque conhecia a aparência do amor.
Quando capitão, o marinheiro era velho. Sem cuidados, e já havia perdido a mobilidade, uma perna e uma mão. Falava de que nunca conheceu o amor, que nunca o havia visto, abraçado e tocado, que nunca o havia visto correr, ou saltar. Ele que já havia pescado a jubaarte, uma baleia azul, cachalote e lutado contra uma lula gigante. Mas nunca havia pescado uma mulher. Sua rede era larga.
Sentiu-se vendo o mar solitário, e cantava nos copos de aguardente canções de amor.
Nunca conhecerá nenhum filho, nem suas ações consequências, era o sonho de muitas mulheres, mas apenas isso, um velho que contava história de pescador.
VIII
Havia apenas uma pequena fresta que chamavam de janela, dois metros de distância do chão, que iluminava uma flecha por onde passavam as horas do dia, no chão salubre e áspero, pedras carcomidas e úmidas. Havia limo e era frio a maior parte do tempo. Na escuridão, o tempo passava por uma vela que durava um mês e era ascendida à noite, havia a dignidade de um lápis e papeis avulsos. As vezes escrevia poemas, as vezes escrevia cartas, as vezes escrevia memórias.
Um pingo de chuva agradecia no calor do verão, um pouco de luz escondia-se pela fresta que lhe acariciava um sorriso. E ali sem mobilidade, vestia-se com uma túnica, e ali sem muito por onde andar os grilhões limitavam-no à cama e à mesa. Havia comida, não muita, na hora da fome, mas era a sede que o importunava. Não havia água em abundância.
Se tomava banho era uma vez no mês, e já estava na terceira vela, e se tomava sol era por esse feixe que fazia a barba crescer sadia. É como amava, dando graças por estar vivo, e uma meditação que respirava a cada 50 segundos, alto e forte. Estava vivo.
Na noite escura, sentiu-se preenchido e passou a perceber que uma hora ou outra chega o alivio, e que ele não tem poder de dá-lo a si.
Quem era ele para dar presentes, quando o maior deles é dado de graça e por amor. A luz da vela no frio às vezes o aquecia, e regorjeava o prazer de parar, fechar os olhos e agradecer. Os sonhos existiram, e eram muitos distantes, um abraço era a brisa do outono.
Ali sozinho descobriu uma particularidade completa e universal. Pois sabia que tudo passa, e tem a hora de chegar, e que essa hora não compete aos homens. Se desejou morrer, e como desejou por um tempo entre a sua sujeira presa num balde, levantou.
Não tinha armas, mas ações, uma língua e palavras, e um dia por causa de uma amizade de um guarda escapuliu-se dali, não pela porta da frente, mas porque sentia frio, e foi-lhe dado um cobertor. O cobertor urinado aos poucos, prensado contra o ferro, o fez ceder. Escalou com a ajuda da mesa, e por causa da magreza passou pela fresta, pulou-a e caiu num rio. Era verão.
Acordei em algum país sozinho, depois de criar e orar, acordei. Na soleira da cama da embarcação, um presente: minha última ficção. Estamos chegando no porto, disse o Capitão Goldsmile, e assim guardei as cartas que escrevi, e não enviei, junto ao peito, e lembrei de meu bisavô, o agricultor.
E depois de admirar meio mundo, e depois de me ver no espelho, reclino-me na cama e imagino que caixa é aquela, antes de abrir, lanço-me ao convés, vejo o marinheiro que foragido agradece a vida, abaixo no porão, admiro a escultura que está para ser exposta noutro canto do mundo, estamos próximos a chegar no porto, vejo a terra aproximando. Recolho meus traços e respiro fundo, longa viagem, a maior que tive até ao momento.
O sino toca, é o da igrejinha perto do farol, num país que é estranho, seria de onde parti? Não lembro, sinto-me como estrangeiro em sua terra natal, um estrangeiro, e tudo isso faz parte de mim, ainda há a caixa que não esqueci na soleira da cama, pego-a com pressa, coloco entre os braços, e chegamos.
O grande navio de metal corta o mar e desliza entre as bacias para estacionar no porto.
…
O mar platino me guarda memórias e quando assim é a vida abruptamente nos perdemos no porto de uma metrópole, eu camuflado de gente, e o marinheiro indo cambaleante se torna dançante em terra firme.
Esta é a minha pátria.