Sobre comichão e um croissant de chocolate, António M. Pereira

Todas as manhãs, ao arrastar-se da cama para a casa de banho enquanto vai acordando, Miguel se convence de que dessa vez não irá aquecer a água do duche mais do que o estritamente necessário. Sofre de atopia, faz-lhe mal. No entanto, a sensação de água escaldante a fustigar-lhe a pele ferida das dobras dos braços e das pernas é um prazer difícil de recusar – um dos poucos que o dia lhe garante. Entra na banheira. «Não vou aquecer a água.» Imediatamente aponta o chuveiro ao braço e dispara um jacto de água a ferver. A pele seca e estalada transforma-se em ponto erógeno; ele estrebucha todo em pequenos espasmos, meio de gratificação, meio de dor. Findo o orgasmo cutâneo, afasta o chuveiro, reduz a temperatura. O braço está vermelho como se tivesse sofrido a queimadura que sofreu; ele passa-lhe um pouco de água fria por cima, mais por descarga de consciência que por esperança de atenuar o mal infligido. Arrelia-se: «isto à noite vai estar horrível… Por que é que eu faço isto?» A urgência dos impulsos do vício é tão difícil de compreender nos intervalos breves entre a satisfação de um e o despertar de outro. «Cinco ou dez segundos de prazer para depois passar mal o resto do dia…», continua, mas logo a seguir corrige o desânimo com uma postura superior de resignação trágica: «Enfim, é uma boa metáfora para a vida.» E começa então a tomar o duche.

Para certas pessoas, tudo o que é ruim é uma boa metáfora para a vida.

O resto do dia pouco tinha a acrescentar.  Distraía-se como podia, abandonava-se ao passar do tempo. Durante a tarde via um filme, dormia a sesta, via outro filme ou lia… Quando o dia começava a soçobrar e o calor a dar tréguas, esgueirava-se à garrafeira para ver o que ainda estava próprio para consumo – era uma daquelas garrafeiras de casa de gente que não bebe, construídas à base de prendas de natal e aniversário que ficavam esquecidas para sempre… ou até alguém da geração mais nova descobrir na universidade as maravilhas da ebriedade. Aquela garrafeira constituía um dos pontos altos dos seus raros regressos a casa – quem sabe que tesouros perdidos não iria encontrar naquele armário vetado ao esquecimento. Escolhia uma garrafa (geralmente whisky; os licores, com os seus ingredientes exóticos e perecíveis, não inspiravam confiança), despejava um pouco numa caneca e ia sentar-se no terraço, a contemplar o arvoredo do cabeço que delimitava o vale da sua aldeia, antes que os pais chegassem do trabalho. Por vezes, quando o seu pai não precisava do carro, Miguel conduzia até Abrantes, dava uma volta pelo centro, subia ao castelo, bebia uma cerveja e um café no bar que aí havia, voltava a descer…

Assim se iam desenrolando as primeiras semanas das férias de Agosto. Subjacente a esta placidez rotineira, sempre a mesma secura, sempre a mesma sensação de comichão, por dentro e por fora – nas articulações dos dedos, nas dobras dos braços e das pernas, nas pálpebras, na alma. Quando passava pelos campos de eucaliptos que circundavam o vale, pensava: «também dentro de mim alguém plantou um eucaliptal que me suga a água toda… terei sido eu a plantá-lo?»

No fundo, faltava-lhe um sentido, uma direcção qualquer; um objecto para onde canalizar as suas energias, em função do qual pudesse pôr em movimento a sua vontade. Tinha adiado ao máximo a data do seu regresso ao exílio bucólico do lar (vagos exames de recurso, melhorias redundantes, etc.), na esperança de que algo lhe surgisse – alguma coisa que desse sentido ao absurdo que foi esse ano em Lisboa: um acumular de experiências falhadas e desilusões. As fantasias que se tinham cristalizado na sua ideia sobre o que seria a vida de um universitário na capital – aventuras boémias prenhes de poesia; tertúlias intelectuais epifânicas; momentos de indulgência na devassidão e na promiscuidade, aos quais se seguiria a descoberta do amor… –, tinha-as, afinal, vivido um pouco, mas sempre aquém das expectativas, sempre com a consciência de estar a esforçar a sua imaginação a compensar liricamente o que afinal era tão só degredo físico e moral. Por isso ansiava pelo surgimento de uma derradeira revelação final, à luz da qual toda essa tragicomédia seria vista como algo necessário: um caminho tortuoso que conduziria por fim à recompensa dos bem-aventurados, ou então, no mínimo, um conjunto de degraus íngremes numa aprendizagem valiosa. No fundo, conservava ainda uma visão da vida demasiado romântica: compunha-a como se de um arranjo musical se tratasse – compassos certos, sequências rítmicas organizadas e frases dissonantes que surgiam intencionalmente em função do acorde tónico no qual se haveriam de resolver. Mas esse acorde nunca chegara a soar, e Miguel escorrera-se por fim de Lisboa para Abrantes sem resoluções, sem esclarecimentos e sem paz de espírito.

Agora, flutuava à deriva. Nada parecia entusiasmá-lo ou despertar-lhe o mínimo interesse. Pensava no ano lectivo seguinte como quem boceja. «Depressão?», chegava, às vezes, a interrogar-se. Mas não conseguia encarar com seriedade essa ideia. Por um lado, não achava que o seu estado fosse assim tão grave; ao mesmo tempo, o seu orgulho não lhe admitia que a complexidade de sensações e pensamentos que o seu estado anímico lhe provocava pudesse ser reduzida a uma patologia tão estandardizada. «Que cliché, achar-me deprimido! Tão à pseudo-poeta decadentista…», ironizava para consigo, denunciando dessa forma o mesmo nervo pretensioso que apontava naqueles que criticava.

De resto, não estava assim tão apático como parecia. Por vezes, um pico súbito de energia sacudia-o sem causa aparente. Nesses momentos, sentia um desejo súbito de fazer não sabia bem o quê – levantava-se de repente, saía ao terraço, voltava para dentro, percorria os corredores, vasculhava as gavetas dos móveis velhos… Como um disparo de pistola, sentia o esticão da vontade manifestando-se. Só que não havia alvo à vista, nada que merecesse ele atirar nessa direcção; e o tiro acabava por redundar em estoiro de pólvora seca, cujo eco apenas o tornava mais consciente do vazio em seu redor. O fumo dissipava-se no ar, e ele voltava a sentar-se no sofá da sala, mais entediado que nunca. «É preciso acabar com este carburar em seco!» Urgia nutrir a vontade com um alimento qualquer… algo, alguém…

Num desses dias, aconteceu que Miguel teve uma epifania – embora não a que tão ansiosamente esperara algumas semanas antes. Enquanto se coçava, sentado no terraço, deu por si a pensar como tudo na vida se reduzia afinal a movimentos circulares como os que subjaziam à sua coceira. «Aparece a comichão, depois vem o esforço para acabar com ela, e depois um brevíssimo período de alívio até que outra comichão idêntica desponte, dessa vez com o agravo acrescido dos danos infligidos pela coçadeira anterior, e assim até ao infinito.» Assim era com tudo o que envolvesse ambições materiais, desejos de quaisquer tipos de experiências novas, e assim era com o amor («especialmente com o amor», sublinhava). Tudo isso se resumia a uma série de círculos viciosos, que podiam variar na dimensão do diâmetro – e alguns eram amplos o suficiente para que o destino de nações inteiras coubesse neles – mas mantinham sempre a mesma estrutura fundamental.

Este raciocínio foi como uma pomada de cortisona aplicada no seu espírito. Iluminado pela revelação dessa verdade universal, procurou aprimorar-se na arte da renúncia. Doravante, esse vazio que sentia devia ser tomado, não como condição doentia que era preciso curar, mas como um bem em si mesmo – ou, melhor, como o caminho para o verdadeiro Bem: a vitória sobre a Vontade. Pôs-se a investigar; assim que pôde usar o carro, foi até à biblioteca municipal e requisitou uma série de livros, quer filosóficos, quer místicos, que o pudessem guiar nessa sua nova direcção. Começou a ver com outros olhos a noção de apatia, e a considerar os apegos que por vezes ainda sentia ao quer quer seja como tentações do diabo (metafórico), fraquezas do lado corrupto da sua natureza humana. Quanto ao isolamento mais ou menos triste na sua aldeia durante o mês de Agosto, passaria a encará-lo como um retiro espiritual muito útil – um lugar privilegiado para lutar contra o que em si ainda era vulnerável aos apelos sedutores de uma Lisboa babilónica.

Esse estado de espírito durava há uma semana, quando se deu um novo caso importante. Miguel tinha passado a tarde na cidade, no jardim do castelo, e conduzia agora de volta para casa. O dia não tinha tido nada de memorável: mais um dia tranquilo, revitalizante na sua solidão desprendida e contemplativa, vagamente melancólica. Até que, apanhado de surpresa, Miguel sentiu uma sacudidela violenta no espírito, à qual já não estava habituado. Ao início parecia um simples sinal de fome que o seu organismo lhe transmitia, mas depois percebeu que não era bem isso, mas uma ânsia mais particular, menos primária… e mais voraz. Uma ânsia tumultuosa, que o consumia e desesperava… e que era afinal apenas o desejo de um croissant com chocolate.

O caráter inusitado, e ao mesmo tempo tão específico, do objeto que o tinha tomado de assalto quase fez Miguel soltar uma gargalhada, mas isso não atenuava de modo algum a premência do desejo em questão. Desejava aquele croissant obsessivamente. Percebeu que não era fome, e não se podia dizer que a sensação se reduzisse a mera gulodice… O caso era que, como naquele momento nada mais almejava, a imagem do croissant crescia na sua mente sem obstáculos; despontava livre e pujante, como o único predador num pasto virgem repleto de caça. Miguel seria mesmo capaz de afirmar naquele preciso instante que nada mais importava: ele existia somente em função desse croissant imaginado.

Seguia viagem, e só conseguia pensar em dar meia volta e acelerar até à pastelaria mais próxima. Por fim, absteve-se de realizar essa pequena excentricidade, não devido ao triunfo da razão sobre a vontade (pelo menos no sentido em que principiara a entender esses dois conceitos) mas porque tinha consciência de que, se realmente levasse a cabo esse acto inaudito, estaria a criar expectativas tão altas que dificilmente qualquer bolo, nem que proveniente das melhores confeitarias, seria capaz de lhes corresponder; além disso, se por acaso entrasse numa pastelaria e constatasse que por acaso ela não tinha o objecto cobiçado – ou pior, se houvesse apenas daqueles de massa processada quase plástica e chocolate barato que se vendem ao molho nos supermercados…–, sentia que dificilmente suportaria a mágoa da desfeita.

Chegou a casa e arrependeu-se profundamente de não ter cedido.

Esse incidente psicológico desassossegou-o profundamente. Se era assim com um mísero bolo, como seria quando regressasse à capital, de aí a uma semana? Sentia que tinha voltado à estaca zero. Pior: a ideia de controlo, que julgava ter estado a cultivar ao longo dessa semana de estudo e meditação, surgiu-lhe então menos como uma conquista do desenvolvimento da sua capacidade de auto-domínio e mais como simples produto de uma ausência acidental de estímulos que pusessem à prova esse controlo. Controlo… mas qual controlo? Lembrou-se do seu ritual matutino com a água a escaldar, do qual em nenhum dia chegara a abdicar – não lhe tinha dado grande importância nos último tempos, mas não era isso uma solicitação da vontade tão viciosa como a que sentira nesse dia? E seriam essas solicitações de natureza distinta das outras, mais graves, que lhe vinham ocupando o pensamento e serviam de alvo a abater nos seus exercícios ascéticos? Percebeu então, com uma clareza brutal, que nada mudara, nada mudaria: voltaria para Lisboa, passaria por mais aventuras e desventuras, seria arrastado pela vontade para outros tantos ciclos de ilusão e desilusão…

Mas seria isso mau de todo? Haveria sequer a possibilidade de uma volta a dar? E valeria a pena lutar se a luta estivesse perdida à partida? Não estaria ele, ao tentar contrariar a sua natureza, a deixar-se enlear em mais uma ilusão justamente quando julgava livrar-se de todas ilusões?

Não sabia dar respostas definitivas a nenhuma dessas questões. Mas uma coisa tinha garantida: no dia seguinte voltaria a Abrantes, comeria um croissant. «Depois o resto logo se vê.» Sentiu comichão no braço; começou a coçar-se e, enquanto o fazia, sorriu.

 

António M. Pereira