(sem título), Hélder António Abreu Vitorino

Lx 10 junho de 2010 diante do espelho no
meu quarto os meus gestos perdem a singularidade habitual
o meu rosto lívido frágil refletindo-se é mesma
versão de mim próprio colada
em papel que não existe 11.50 a.m. odeio estes
de bata branca não quero ir com eles não deixo
que me ponham o colete de forças não quero
voltar para o hospício um sol cáustico esmaga-me
e faz-me doer já não sei o que sou ou o que sinto
já serei talvez a cinza daquilo que outros lugares
e paredes sombrias deixaram na minha vida
em rápido e contínuo trânsito pelos enfermeiros
apressados e burocráticos que me agarram e me
metem à força num quarto escuro sei que a minha
resistência só complicará tudo que passarei a
constituir um caso sério um inesperado problema doméstico
que será resolvido decerto pela administração
atempada de valiuns e friganors que me deixarão
inerte e dócil como é desejável 14. 05 p.m. o trânsito
está cortado no marquês o 112 foge do engarrafamento
no esplendor da tarde sobe em mim a
náusea deste dia com sol e ambulâncias velozes
ninguém compreenderá como me sinto e vou escrever
estas linhas num raro assomo de raiva e lucidez
a um tempo kierkegaard dizia que a
existência é um cão verde que passeia de trela pela
lua e que morde nos outros cães porque não são verdes
nem amam as pedras da lua como ele amava e
porque aquilo a que chamais de árvores vestem paletó
e chapéu de cetim ao domingo e são funcionários
aprumadíssimos do sol com quem trocam mails
ninguém pode estar certo de nada ninguém pode dizer isto ou aquilo
ou qualquer outra coisa assim como estas árvores ao sol
não seriam coisa nenhuma se não existísseis e insistísseis
em dizer que elas são mais que excrescências de sol deste
dia inútil agora posso entender a angústia de kierkegaard
porque só quem sofre pode entender outro sofredor
também kierk morreu viveu e amou os indivíduos que não ele

Hélder António Abreu Vitorino