1.
Haverá por certo a solidão lírica de desertos rasos sem nuvens nem verdura no horizonte:
A renúncia iluminada dos santos
Ou o purgatório de segundo ato dos heróis de celuloide
Que antecede o regresso triunfal à pátria por vingar.
Depois há o ranço de fundo de armário
– Aquela perfídia que nos seduz a lançar olhares demorados à nossa volta em ruas amplas de gente,
Na esperança difusa de que os nossos olhos calhem a ir ao encontro de algum rosto familiar
Do qual nos esconderíamos em pânico de abominação, caso deveras o encontrássemos.
O Ranço não é solilóquio melodramático de Hamlet.
É esquecermo-nos das falas a meio de uma cena
E apercebermo-nos de que o outro ator abandonou o palco enquanto vasculhávamos os bolsos em
busca de uma cábula.
É a humidade enferrujar-nos a garganta, apodrecer-nos o hálito,
E darmos por nós a cometer crimes de capricho
Sem outro propósito que o de ver prolongada a nossa pena
Porque já não sabemos como se vive lá fora
E o ar fresco só nos faz mais conscientes do mofo que expiramos.
Não é ser abandonado.
É ter uma sombra maior que nós até no meio-dia
E por isso abandonar.
2.
O Ranço é
Perder a vergonha
Mas não a vergonha de a ter perdido.
O Ranço é
Extinto já o orgasmo opiáceo da esperança
Por dependência continuar a injetar-me de ilusão.
É manter pedaços bolorentos de um sonho antigo no fundo da algibeira
Para quando o tédio me apunhalar de fome
E eu não tiver o que comer.
António M. Pereira