Texto de Mariana Coelho.
O Museu Colecção Berardo inaugurou no passado Outubro a exposição temporária Quel Amour!?, que, vinda do Musée d’Art Moderne de Marseille, celebra o sentimento do amor em todas as suas formas e feitios.
Incluindo obras da exposição original, bem como outras já pertencentes ao Museu, Quel Amour!? apresenta-se como uma viagem multi-facetada e tematicamente diversa. De retratos, esculturas, pintura e colagens à utilização de materiais como o néon, a madeira ou o bambu, a fotografia e conteúdos audiovisuais, a exposição apresenta-nos artistas estrangeiros de origem africana, americana, e europeia – principalmente francesa e inglesa, mas incluindo também uma seleção de talento nacional, como João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, Gonçalo Pena, Paula Rego e Helena Almeida.
Aos variados estilos e correntes de cada artista alia-se a sua expressão pessoal do sentimento do amor, quer seja este físico, homossexual, à primeira vista, sexual, incondicional, degenerativo, familiar, sofredor, violento, dependente, maternal, jovem, obsceno, fetichizado, solitário, transversal a qualquer tempo, etnia, ou idade, ou ainda cúmplice do ódio. Quel Amour?! desperta em cada um que a visita interpretações distintas da mesma obra, ocorrendo, por vezes, várias interpretações à mesma pessoa. Os versos que as complementam ajudam à experiência múltipla da aclamação e reflexão sobre a pluralidade deste sentimento.
Quel Amour?! tem um pouco de tudo para todos, mas não pretende dar respostas certas a ninguém. Fomenta no seu visitante a sua sede de «amor ideal», ou da nossa versão desta idealidade, não tendo, apesar disso, receio de questionar ou de expor os seus lados mais apagados, escondidos, e menos bonitos. A presença de uma diversidade de obras e artistas oferece a cada um uma experiência desigual; contudo, a mensagem de um amor global e mais compassivo é comum a todos os que a visitam. De lá saímos não sabendo como explicar as particularidades de cada obra ou do sentimento do amor, mas com a consciência de que há sempre mais amor onde nunca pensámos haver, e de que o amor existe em mais modos do que aqueles por nós previstos. Dentro de nós, nos outros, entre todos – o amor.
Os Fazedores de Letras tiveram a oportunidade de se reunir com Diogo Montenegro, coordenador editorial da instituição, de maneira a discutir a sua experiência académica, a própria exposição, e as artes em Portugal.
Bem-vindo, Diogo, obrigada por aceitares o nosso convite. Queria-te pedir de início que nos falasses um pouco sobre o teu percurso académico.
Entrei em 2014 em Artes e Humanidades e nunca escolhi um percurso particularmente definido por majors ou minors. Fiz muitas unidades curriculares isoladas, não tanto segundo um currículo pré-definido. Ainda assim, acabei por me concentrar mais nas áreas da Literatura e da Arte, particularmente da Arte Contemporânea.
Como surgiu a oportunidade de fazeres parte dos quadros do Museu?
Durante a faculdade, tive a oportunidade de trabalhar para editoras e para chancelas, como revisor e, mais tarde, como tradutor. Foi uma sorte, e veio de conhecimentos meus de pessoas amigas, daquela pessoa que precisava de um «jeitinho» agora, o «isto é para amanhã e não temos mais ninguém» – portanto, assim foi. Fui construindo uma reputação, mais conhecimentos, mais gente no meio, e foi correndo bem, foi sempre correndo bem, e foi por aí que se começou. Depois, juntou-se o útil ao agradável, e a licenciatura acabou por ajudar a minha entrada aqui também. Neste momento, estou no mestrado em História da Arte (FLUL), o que também ajudou. E foi assim: um micro-clima de condições que prezou muito à Direção, à gente que me contratou. Foi um bocadinho sorte, fado, destino, qualquer coisa, não sei, porque tudo se alinhou e vim cá parar – isso é certo. Não sei muito bem como aconteceu, houve meia-dúzias de elementos que contribuíram para isso, não sei ao certo como aconteceu, mas cá estamos.
Que competências adquiridas durante o curso consideras que te possam ter ajudado a desempenhar estas funções?
Sinceramente, para as funções que desempenho agora, foram muito poucas. Eu tive muito poucas cadeiras sobre questões editoriais. Essa parte da minha formação foi sempre feita fora da faculdade. Acho que, no fundo, a faculdade acabou por, no meu raciocínio, a certo ponto, ajudar na capacidade crítica. Não quero cair nesse clichê, mas creio que a FLUL tem sido particularmente importante para, como dizia um dos melhores professores que tive, me «comprar» uma caixa de ferramentas decente. Foram ferramentas boas, duradouras, que servem para várias situações e que me ajudam a interpretar e a perceber, a fazer sentido das coisas.. É uma coisa em que penso frequentemente: em que é que aqueles três anos me valeram. Valeram por isso, e não tanto por algum conhecimento específico sobre determinadas situações. Obviamente que o tenho, e obviamente que a faculdade ajudou muito nesse aspecto. Mas acho que foi mais uma questão de metodologia.
Sobre a exposição Quel Amour?! – será que nos podias falar um pouco dela?
A exposição é toda ideia do curador, do Eric Corne. Ele já é um curador activo do Museu há algum tempo, há vários anos. Antes de vir para Portugal, a exposição estava inserida no MP2018, que é uma associação francesa que foi criada para motivar a produção cultural nas áreas de Marselha e Provença, e é daí que vem o financiamento para este projecto. Este projecto foi desenhado para Marselha, e o Museu acabou por importá-lo. Não foi uma importação direta nem linear. O curador, e mesmo a directora artística, e também nós dentro do Museu promovemos um diálogo mais presente dentro aquilo que é o nosso contexto português, não só museológico mas também artístico, e no contexto da própria colecção do Museu. Temos muita coisa da colecção nesta exposição – coisas que obviamente não apareceram em Marselha. Temos também novos artistas portugueses que não estavam contemplados nem na nossa colecção, nem na colecção original, e temos um grande pluralismo, uma valência muito alargada de obras e de discursos, que é onde essas obras e discursos encontram um ponto em comum. É precisamente no amor. É uma exposição temática, e não propriamente uma exposição formal. É algo que vai ao encontro daquilo que o Museu tem procurado fazer. Algo que é visível também na exposição do Akomfrah, na exposição do Brodsky de 1968. Temos, portanto, temáticas-chave, temos temáticas-base e a partir daí cria-se um discurso. Esses discursos são realmente interessantes. A questão do amor, precisamente sobre o amor, mas particularmente focada na questão psicanalítica, numa questão mais literal, mais filosófica. Ele [Eric Corne] cita Aristóteles, cita Platão. As coisas aqui passam por se incorporar a perspectiva de quem visita o Museu. E é uma parte importante; a exposição não são só as obras. Não acredito nisso. Há uma influência curatorial e acho que tem sido desempenhada de maneira muito agradável.
A exposição nasceu em Marselha. Terá havido, de certa forma, alguma adaptação ao público português?
Não, creio que não. Cada vez tentamos mais acessibilizar a arte ao público português. Fazemo-lo com as folhas de sala, por exemplo: nós entregamos sempre folhas de sala aos visitantes, e há sempre um corpus literário à volta da exposição para o visitante não se sentir tão afastado deste mundo um bocadinho hermético, este mundo da arte contemporânea. Sinto que ainda há uma separação entre o público e o que temos tendência a designar por arte erudita, simplesmente porque não está acessível pelos canais habituais, os canais mais convencionais de comunicação a um público mais generalizado. Creio que temos de trabalhar mais nesse aspecto, temos de democratizar esta valência, este pólo da arte que se faz hoje em dia. Nós temos música e temos cinema, mesmo o cinema que se dizia «de culto», o cinema mais especializado, que começa a permear as estruturas mais institucionais dos Óscares, dos Globos de Ouro. Temos agora a Netflix que é uma expressão disso. Essa acessibilização está on going, é um work in progress.
Existem dois caminhos possíveis para percorrer a exposição. Qual a razão destas duas formas? Quais as suas diferenças?
Em Marselha, de facto, era isso que acontecia; acho que não passa com o mesmo sentido cá para Lisboa. Em Marselha, a ideia era mesmo essa: havia duas entradas da exposição e, consoante a entrada que se escolhesse, ia-se ter um percurso completamente diferente. Aqui também temos duas entradas, mas a questão é que uma está hierarquicamente à frente da outra. Nós, quando entramos no Museu, entramos pela 1, e a primeira parte da exposição está no 0. Basta descer umas escadinhas para chegar lá, e, portanto, é com essa que nos deparamos primeiro. Continuamos a poder escolher entre uma e a outra, mas a questão é que, neste caso, a exposição está dividida em 2 núcleos separados. Estão em sítios diferentes, há exposições entre uma e a outra, e, portanto, essa escolha é mais forçada do que terá sido em Marselha. De qualquer maneira, não te consigo dar uma interpretação sobre o percurso porque eu próprio não tenho uma interpretação formada. São tantas, mas tantas obras… e estão todas organizadas de uma maneira idiossincrática. Há partes que dizem respeito a um diálogo mais interno, sobre a própria colecção do Museu, e nessas incorporou-se obras da colecção, obviamente. Há também partes temáticas, há partes mais psicanalíticas, há partes mais filosóficas, e há partes mais – não gosto desta palavra – «étnicas». Há realmente um dos núcleos da exposição que se foca no amor não-ocidental, não eurocêntrico. A questão é que esta é uma exposição completamente polivalente. É uma exposição literalmente surpreendente, no sentido em que nunca se sabe quando se passa de uma sala para a outra e o que é que vem a seguir. Há demonstrações representativas do amor: umas mais literais, outras mais platónicas, umas mais chocantes, outras menos chocantes. Não me sinto capaz de fazer uma descrição total, ou uma interpretação do percurso da curadoria, porque é realmente uma coisa muito orgânica.
O foco da exposição era o amor. Ao participar na sua organização, conseguiste de algum modo entender se Portugal tem uma maneira distinta de ver o amor?
Eu acho que a conclusão que nós tiramos da exposição como está apresentada aqui tem mais que ver com a perspetiva do Eric, do curador, do que com qualquer outra coisa. Para a exposição é mais importante perceber a nossa perspetiva, o nosso contexto sobre o amor, do que a própria exposição. Não tenho acompanhado, mas temos um hashtag no Instagram que regista todas as fotografias que foram tiradas nesta exposição, e por aí podemos tirar algumas conclusões. Há meia dúzia de obras que as pessoas fotografam com mais frequência. A da Helena Almeida, por exemplo: talvez seja por ser a imagem escolhida para a comunicação e para o marketing da exposição. O Paramour, que é aquela lona enorme circular com as lâmpadas circulares que emula aquele emblema do Paramount, dos cinemas. E portanto aí talvez haja um intuito irónico qualquer. Mas, para entender a nossa perspetiva sobre o amor, importa mais observar quais são as incongruências entre aquilo que julgávamos que ia receber atenção e aquilo a que realmente se dá mais atenção. Esse reparo diz respeito a uma matriz valorativa, a uma matriz de convenção que diz bastante do que as emite, obviamente. Sei que a resposta da equipa do Museu foi muito positiva. Acho que exposição é suficiente ao mostrar perspectivas completamente opostas do amor. Acho que serve aos dois pólos, sejam eles quais forem, das perspectivas do amor.
Em que medida é que o falecimento da Helena Almeida influenciou a exposição?
Na verdade, não teve influência. Nós fizemos uma alteração à exposição, após a morte da Helena Almeida, que foi inserir a data de falecimento. A Helena já estava pensada, já estava considerada, já tinha aparecido em Marselha – se não estou em erro, era uma das obras que já vinha de lá. Apenas soubemos da sua morte no dia em que a notícia saiu no Público. Toda a gente saiu dos gabinetes, lá no Museu, e ficámos todas a olhar uns para os outros com cara de parvos. «Então, e agora?» Foi um bocadinho chocante, nesse aspecto, até porque era uma figura presente, proeminente no nosso contexto artístico. Ela era uma artista essencial na nossa percepção da arte portuguesa e mesmo na percepção da arte portuguesa lá fora. Portanto, foi uma tristeza, mas não influenciou muito – talvez tenha influenciado pela nostalgia, mas não influenciou a exposição no seu aspecto mais formal.
Por fim, tendo visto a exposição ganhar forma, o que gostaria que as pessoas tivessem em mente na sua visita?
Não sei se é num elemento da exposição que eu quero que as pessoas atentem; se calhar gostava que houvesse um reparo geral no trabalho que os museus fazem. Uma pessoa não tem noção da produção de uma exposição – ela ultrapassa qualquer expectativa. Os produtores têm uma trabalheira descomunal com as questões logísticas. Garantir os empréstimos das obras, muitas vezes regatear valores de empréstimo e de seguro. Há trinta mil imprevistos, trinta mil coisas que correm mal. Mas, ainda assim, nós, no dia da inauguração, tínhamos de facto as coisas todas prontas; estava tudo no sítio certo. E digo isto não só no sentido da produção, mas mesmo no sentido da imaginação. A quantidade de textos que foram produzidos, a coerência textual, interpretativa, e editorial… aquilo que uma exposição precisa de ter para ser uma boa exposição são coisas que ultrapassam quem não estiver no meio. Eu próprio vim para cá sem grande formação de exposições; nunca tinha trabalhado em questões expositivas ou curatoriais, por isso foi um mundo novo para mim. E sinto que é uma parte do trabalho que não é suficientemente apreciada. O trabalho de bastidores, aquilo que acontecesse para que uma exposição seja aqui incorporada. Por arrasto, também o esforço de acessibilização que houve, como transformar um conjunto de obras de arte numa história inteligível, tangível para o visitante comum, para a pessoa que não tenha formação sobre Arte. Como fazer que qualquer pessoa possa entrar no Museu e usufruir, e voltar para casa mais cheia do que antes? Acho que é uma parte da nossa cultura, e mesmo da nossa perspetiva sobre as artes, que falta muitas vezes. Temos muitas vezes uma ideia diletante sobre as artes e as humanidades – é algo, assim… um bocadinho prescindível. Trabalhar nas artes e na cultura em geral, enfim, não é um trabalho assim tão complicado como fazer derivadas ou primitivas, ou desenvolver inteligências artificiais. Contudo, é uma parte fulcral da sociedade como a conhecemos, e é uma parte fulcral do desenvolvimento dos nossos valores e da nossa perspetiva sobre o mundo. E cada exposição é um pequenos cosmos. A quantos mais cosmos tivermos acesso, melhor. Portanto, que se valorize quem trabalha nesse aspecto, para que estas coisas sejam tornadas acessíveis à sociedade.