Entrevista: O «papel totalmente desconhecido» de D. Rodrigo Souza Coutinho na modernização científica de Portugal

Texto e Entrevista de Filipe Paiva Cardoso.

O afilhado do Marquês de Pombal foi quem decidiu enviar estudantes de Coimbra num tour pelos principais centros mineralógicos europeus para «beber» conhecimento e trazê-lo para o reino. Dois destes enviados acabariam por assumir papéis de relevo na Independência do Brasil.

Júnia Ferreira Furtado, professora titular de História Moderna da Universidade Federal de Minas Gerais, esteve na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa a convite do Centro de História no final de Fevereiro último para apresentar os resultados das suas mais recentes investigações.

A investigadora tem as atenções viradas para Dom Rodrigo de Souza Coutinho, afilhado do Marquês de Pombal, diplomata e político português que, assegura, desempenhou um papel determinante na modernização científica de Portugal e do Reino na passagem do séc. XVIII para o XIX.

«O que mais me chamou a atenção foi o facto, totalmente desconhecido, que coube a D. Rodrigo a sugestão e o projecto de enviar estudantes de Coimbra num tour pela Europa para realizar uma grande viagem focada nos estudos mineralógicos. A aposta na mineração foi dele», explicou-nos em entrevista a especialista em história do Brasil, cartografia e relação colonial.

Já com vários livros publicados, destacando-se Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito ou O Mapa que inventou o Brasil, que lhe valeu o prémio Clarival do Prado Valadares, em 2011, Júnia Furtado destaca como a permanência de D. Rodrigo no Piemonte, que coincidiu com o reinado de Vittorio Amadeo III e onde travou amizade com Carlos Napion, foi fundamental na modernização e melhor aproveitamento económico dos imensos recursos do império português. Foi dele, por exemplo, a ideia de patrocínio de uma viagem a três estudantes recém-formados em Coimbra pelos principais centros mineralógicos europeus, viagem que trouxe bastantes frutos para todo o Reino.

O artigo que veio apresentar à FLUL sobre a faceta científica de D. Rodrigo Souza Coutinho será publicado na íntegra num livro dedicado às ligações entre Turim e o Brasil já em fase final de edição. «Fui convidada pela Isabel Mota para participar num livro sobre as ligações entre Turim e o Brasil. Para o fazer, mergulhei nos papéis de D. Rodrigo e percebi que, apesar de se falar muito no seu lado político e económico, este seu lado científico estava por explorar», conta sobre o caminho que a trouxe até este artigo.

Surpreendida com o apetite pela modernidade que o diplomata português demonstra, a historiadora não hesita mesmo em rotulá-lo como o oráculo do futuro D. João VI. «D. Rodrigo, tal como D. Luís da Cunha, tem uma atitude muito proactiva, o que não acontece por acaso, pois ele admirava muito D. Luís, tendo levado as suas instruções políticas para o Brasil. Se este era conhecido como o Oráculo de D. João V, D. Rodrigo acabou por sê-lo para D. João VI», afiança.

A entrevista completa:

Como chegou até este lado mais científico de D. Rodrigo Souza Coutinho que veio dar a conhecer à FLUL? Que investigações a trouxeram até aqui?

Nos últimos anos, tenho trabalhado a história da ciência e, actualmente, estou a preparar um livro sobre José Vieira Couto, mineralogista, que depois da reforma da Universidade de Coimbra realizou uma viagem exploratória à Holanda, regressando depois a Minas Gerais para trabalhar como naturalista. Foi à conta deste trabalho que fui convidada pela Isabel Mota para contribuir para um livro sobre as ligações entre Turim e a Corte portuguesa. Lembrei-me então que dois brasileiros, Manuel Arruda da Câmara e José Bonifácio, e um português, Pedro Fragoso, realizaram uma viagem de estudos mineralógicos posterior à de Vieira Couto, e que um dos pontos de paragem foi Turim. Decidi mergulhar nos papéis de D. Rodrigo Souza Coutinho, o embaixador à época da viagem, e, ao analisar os mesmos, percebi que, tal como era comum na altura, também ele estava atento às novidades científicas que se iam desenvolvendo na Europa. Já existe muita coisa publicada sobre D. Rodrigo, mas a grande maioria é sobre o seu pensamento político e económico. E, na verdade, nunca se analisou este intercâmbio científico entre o Piemonte e Portugal suscitado por D. Rodrigo e por estes estudantes que embarcaram na viagem.

Esse lado científico de D. Rodrigo ficou por explorar por ser uma personagem com tantas facetas?

Sim, é um homem com muitas facetas, com muito peso, ocupando por duas vezes cargos ministeriais. Quando está como Ministro de Estado, coloca em acção muitas das teorias e políticas que foi maturando. Fala-se muito do seu papel para a agricultura, de como defendeu que era importante desenvolvê-la em prol da economia do Reino, mas fala-se pouco de quais foram os produtos e as novidades científicas testadas em Turim e que foram remetidas para cá por D. Rodrigo. E o que pretendo é trabalhar mais essa faceta científica.

Rodrigo foi como que empurrado para fora do país, já que se esperava que assumisse um papel parecido ao de Marquês de Pombal quando o filho mais velho de D. José ascendesse ao trono. Mas com D. Maria viu-se enviado como representante de Portugal em Turim. Foi um revés que veio por bem?

O que aprendi com as minhas investigações a diplomatas no séc. XVIII foi que a diplomacia foi um locus importante para a formação política, científica e intelectual, e não é por acaso que vários ministros acabam por chegar desta carreira. Creio que foi uma sorte D. Rodrigo ir para o Piemonte precisamente num momento de grande efervescência. Pouco antes de chegar, tinha sido criada uma Academia de Ciências e uma de Agricultura, e ele envolve-se nestas redes, começa a estudar e encontra um ambiente extremamente propício, o tempo para se formar e escrever, transformando o que aprende em discursos e memórias que remete para o Reino durante muito tempo. Chega a reclamar com Portugal porque não tem respostas ou reacções sobre tudo o que vai enviando, mas acaba por ser ouvido, já no Ministério ligado ao príncipe regente, que o levará a um papel de destaque a partir daí.

Das investigações para este artigo, o que a surpreendeu mais?

O que mais me chamou a atenção foi o facto, totalmente desconhecido, que coube a D. Rodrigo a sugestão e o projecto de enviar estudantes de Coimbra num tour pela Europa para realizar uma grande viagem focada nos estudos mineralógicos, a aposta na mineração foi dele. Este projecto surgiu da ideia de replicar a viagem mineralógica com que o Piemonte avançou em 1786. D. Rodrigo alertou a Coroa para a necessidade de se fazer algo semelhante, o que vai acontecer a partir de 1790. Mas além da ideia da viagem, D. Rodrigo também envia as instruções organizadas no Piemonte e em Veneza sobre viagens semelhantes. Mas inovou sobre as mesmas. É que ao contrário destas, D. Rodrigo propõe que a viagem dê primazia inicial ao período dedicado à teoria, avançando só depois para um lado prático. Nas viagens italianas, este período de estudo acontecia apenas a meio do percurso e o que D. Rodrigo sugeriu foi que se devia arrancar por esta parte teórica e só depois avançar para viagens técnicas, no terreno, com visitas a mineralogistas, museus… e o que observamos nas instruções é exactamente isto: primeiro, um ano em Paris em formação, depois, dois anos em Freiburg, o grande centro universitário de mineração, e só depois destes três anos é que avançam para a parte mais prática. E não é por acaso que Turim é o primeiro local a que vão.

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Mas Turim nem estava inicialmente no roteiro…

Não, nem era uma região conhecida pela mineração. Mas a correspondência de D. Rodrigo a partir de 1786 chama a atenção para as transformações que lá estão a ocorrer neste campo e também no da engenharia militar, com recurso à pólvora para exploração salitre. Os estudantes acabam por ir a Turim e depois Pavia, para estudar com Alexandre Volta, já que a electricidade também era um ponto importante na altura. O Bonifácio e o Câmara de certeza que estiveram em Turim, o Fragoso já não tenho a certeza. O Bonifácio participou também numa viagem naturalista aos montes Eugâneos, onde vai observar a natureza nos seus diversos aspectos, e aprender a sistematizar os conhecimentos em memórias.

O próprio D. Rodrigo participou numa espécie de tour de formação prévia à chegada a Turim. Qual o peso desta viagem nas suas decisões e opções posteriores?

Antes de D. Rodrigo ser nomeado para Turim, D. Inocêncio chama o filho a Madrid, onde está como diplomata. Isto foi numa altura muito importante, a que precedeu ao Tratado de Santo Ildefonso, e, portanto, de grande actividade diplomática devido às guerras no Sul do Brasil. D. Inocêncio vai preparar o filho não só do ponto de vista intelectual, mas também como diplomata para melhor servir a Coroa. Esta viagem é aproveitada também para passar por Paris, onde está o seu tio, igualmente diplomata, onde contacta com a Corte e com o abade Raynal, que escrevia então a História das Duas Índias, e escreve um diário a relatar tudo o que observou. Neste, percebemos que D. Rodrigo é já uma pessoa muito interessada na modernidade, dedicando muita atenção a tudo o que foi descobrindo até chegar a Turim. Já em Turim, depara-se com o reinado de Vittorio Amadeo III, que promove uma série de transformações iluministas que ele vai então apreender.

E qual o objectivo ou com que «missão diplomática» chega D. Rodrigo a Turim?

Vai com a missão de comprar livros, conhecer modelos de ensino, maquetes de engenharia militar, e enviar tudo para o gabinete de Física Experimental da Ajuda. Começa a circular entre o grupo de intelectuais ligados às academias de Engenharia, de Ciências e de Agricultura de Turim e em 1786 entra em contacto com um jovem cadete, Carlos Napion, responsável pelo curso de metalurgia e docimástica, mas também mineralogista que estudava a pólvora e a fusão de metais e que vai liderar a tal viagem organizada no Piemonte pelas minas europeias. Ficam grandes amigos e D. Rodrigo identifica em Napion o protótipo ideal do naturalista, mineralogista e metalurgista que deveria ser modelo para Portugal se modernizar e transformar ao nível da manufactura, extraindo maiores benefícios económicos e estratégicos disso mesmo.

Apesar de todas as transformações em Turim, e até da sua formação individual, D. Rodrigo queixava-se de não ser ouvido. Seria pelo pouco relevo do Piemonte?

Não era Londres ou Paris, não… Mas, vendo as correspondências de outros diplomatas, esta nem sempre era muito marcada pela ciência, excepção de D. Luís da Cunha, da primeira metade do XVIII, que nas suas cartas fala muito de política e diplomacia, mas também dedica grande foco à componente científica. Estávamos no momento de formação da biblioteca joanina e de grande desenvolvimento do interesse pela cartografia. Já D. Rodrigo, tal como D. Luís, tem uma atitude muito proactiva, o que não acontece por acaso, pois ele admirava muito D. Luís, tendo levado as suas instruções políticas para o Brasil. Se este era conhecido como o Oráculo de D. João V, D. Rodrigo acabou por sê-lo para D. João VI.

Olhando para o Brasil mais em específico, duas personagens que participaram nesta viagem mineralógica acabarão por ser muito importantes para a independência. Até que ponto estas viagens e a exposição ao iluminismo no final do XVIII terá sido determinante para estes jovens?

O processo de independência no Brasil foi um pouco diferente. Houve momentos de contestação no final do XVIII, é certo, mas o que levou à independência foi um movimento muito específico, que implicou uma ruptura com Portugal, mas não com a Coroa, já que D. Pedro e a Casa de Bragança continuaram reinantes. É certo que eram personagens liberais, defendendo a flexibilização do pacto colonial, por exemplo, mas eram também o modelo do bom súbdito. Tanto Bonifácio como Câmara são bons súbditos, procuram obter mercês e compensações da Coroa pelo papel que vão desempenhando, mas, em alguns aspectos, defendem pontos radicais, como a abolição da escravatura por exemplo. A família de Câmara, já em 1820, acaba por integrar movimentos liberais em prol de uma Constituinte e de uma política mais democrática, mas não pela abolição. Bonifácio até teve dificuldades em aceitar que a independência era uma solução. Mas estes estudantes foram sobretudo importantes para a autonomia económica do Brasil, ao puxar pelo uso da ciência para dinamizar a economia da Coroa. Lógico que chegou um momento em que, à conta da intolerância das cortes em Portugal, Bonifácio acaba por adoptar o partido independentista, mas já numa fase muito posterior.

O que pretende ainda explorar neste filão científico?

Conto aprofundar mais esta investigação para dedicar um livro à faceta científica de D. Rodrigo e, posteriormente, dada a ligação deste aos naturalistas, avançar também com alguma coisa sobre a viagem mineralógica propriamente dita realizada por estes estudantes. Câmara e Bonifácio já foram abordados noutros textos, mas incidindo noutros seus aspectos, e talvez seja hora de resgatar os seus papéis como cientistas.

Termino puxando de uma afirmação sua. Sem pruridos assumiu que «não há verdade na história, só a visão do historiador». Como conjugar isto com o objectivo de reconstruir a história?

Não há verdade no sentido de que exista uma única verdade, e é por isso que a história vai mudando. O que existe sim é a verosimilhança, daí que estejamos continuamente a reescrever a história, considerando-a agora melhor que a que tínhamos antes, no início do séc. XX, por exemplo. Consideramos que hoje conseguimos mais verosimilhança que no passado. O Arruda da Câmara é um excelente exemplo: a sua historiografia é muito marcada pelo heroísmo, a ideia do cientista brilhante, um indivíduo único. Mas agora já conseguimos mostrar melhor as redes de conhecimento que o envolviam e de como acabava por estar inserido num movimento muito maior que o antes pensado.

Foi isso que procurou fazer através do seu livro sobre a Chica da Silva? Limpar a historiografia de ideias feitas?

Exactamente. Obter uma maior verosimilhança, evitar anacronismos e aproximarmo-nos cada vez mais da verdade.

 

O autor escreve de acordo com a nova grafia.

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