Texto de Jean Colette
Crédito da Imagem: Encyclopædia Britannica, Inc.
Anna Karénine de Léon Tolstoi. São várias as imagens e palavras que nos aparecem no (re)pensar uma imaginação criada em torno deste romance há muito ou pouco tempo. Entre elas, temos Kitty e Lévine, o casal que de alguma maneira nos provocou maior suspense e ansiedade.
Se o romance tem por título Anna Karénine, não é pela razão da personagem titular desempenhar um papel mais preponderante que o de Constantin Dmitrievitch Lévine, personagem que dirige uma grande propriedade no campo. É ele um homem sensível, amante dos grandes espaços verdes e igualmente apaixonado pelos ideais políticos e sociais longe do cliché vivido numa época de carácter austero. Lévine não tem nem a beleza de Vronski, nem o estatuto de Alexis Karénine, mas tem-se como homem discreto que torna necessário algum tempo para o descobrir plenamente.
Conhecemos claramente o seu grande amor, Kitty Stcherbazka, com a qual acaba por se casar mas não sem antes passar por uma perda de esperança, de desistência e de resiliência que os leitores notoriamente se lembram. Lévine é a ilustração perfeita da vitória da paciência sobre a intransigência.
Mas Lévine apaixonou-se sucessivamente pelas três irmãs Stcherbazki, a saber, Dolly e Natalie para além de Kitty. Sai, infelizmente, sem sucesso de qualquer tentativa de aproximação romântica com estas mulheres, para a felicidade de Kitty. Que devemos pensar nós, leitores, deste desenvolvimento? É Lévine realmente apaixonado por Kitty, ou estará ele apaixonado pelo que ela representa enquanto membro da família Stcherbazki?
Talvez nós tenhamos já passado pelo mesmo tipo de «engano» que nos permite apaixonar, mesmo que inconscientemente, por alguém que nos apoia os ideais sociais, políticos, culturais etc., sem nem sequer olhar para o outro em tanto que outro. Não sofremos todos nós um pouco deste problema? Não somos todos nós um pouco como Madame Bovary ou mesmo Claudine?
Quem se lembra dos primeiros romances de Claudine consegue relacionar o poder de ilusão que esta ingénua personagem passou para o seu mundo real com as nossas ilusões que ilustram a nossa realidade com todas as pessoas, espaços e acontecimentos nela envolvidos e que nos dão a verdade entorpecida pela qual nos movemos, manipulamos e esforçamos para fazer crer, buscando no outro – que por si só é uma nossa representação deturpada, uma verdade inalcançável.
Que sabemos nós da autora de Claudine? Escritora livre, mulher moderna, bissexual assumida, mundana influente… Colette é esta mulher profundamente curiosa que se tivesse podido ir para o campo da batalha da 1ª Guerra Mundial teria ido, mas não para lutar por ideais políticos; apesar de não ter sido uma mulher particularmente pacífica, não sabemos se ela tinha alguma opinião precisa acerca da guerra de 1914-1918. Sabemos apenas que há em Colette uma vontade imensa de tornar cada experiência na mais produtiva possível. Veja-se o caso proeminente da autora com Missy.
Num mundo onde vivemos entre o ser «Claudine» e sermos nós próprios (significando isso o que significar), a verdade é que agimos não sabemos bem como; se por impulsos, se por obrigações, se por vontade, se por fé… E se agimos de uma outra maneira, o que garante que agimos por sermos somente nós próprios? Ou nós próprios com todas as ilusões que nos tornam, bem…nós próprios? Deixando de parte conceitos e filosofias que nos saltam de imediato à mente, voltemos a atenção para escritores que, talvez mais do que próprios filósofos (nunca descartando o nível de Schopenhauer ou Nietzsche), tornaram a existência humana sinónimo do perdão ao homem dele e para ele mesmo por meio de frases que se interligam por sentimentos. Repare-se como Dostoiévsky tornou Alexei o ternurento homem que olhava integralmente Ivan e Dmitri Karamazov; ou como Victor Hugo tornou Jean Valjean o humilde homem por quem nos deixámos embalar. Quem menciona estes dois génios, também menciona Thomas Mann e aquele homem de Veneza que se assemelha a Ricardo Reis de José Saramago, à porta do hotel num dia nublado a olhar pela janela. O que todos eles têm em comum? Não são Claudines.
É difícil, para quem não conhece os mundos onde estes e outros vivem, não ser uma Claudine. É, para além do mais, uma afronta à sociedade ser-se propositadamente uma Claudine… ser-se um não-artista; um não-homem ou não-mulher que não pensa a realidade pura.
O homem a quem deixo hoje aqui o meu agradecimento é, ao lado de tantos outros que poderei ter a oportunidade de mais tarde revelar, um génio insolente que se esforçou de uma maneira original, não se entregar de corpo e alma à ilusão que comanda muitos de nós pela vida.
Honoré,
És tu um criador lento, não indiferente (característica mortal e desprezível que existe no ser humano) que levas o tempo e a linguagem que disciplina pelas palavras escolhidas entre inúmeras histórias. A pequena ou a grande história, realmente pouco importa. Contigo tudo é apaixonante; tu explicas e tomas o teu tempo para reconstituíres, essencialmente.
A reconstituição de uma nova linguagem que deste a conhecer tornou-se a potência do teu mundo real entre os leitores que te lêem, esquecendo-se deles próprios por momentos. Nisso eu reconheço uma grande conquista.
Pouco interessa a questão da posse material em comparação com a posse da história bem constituída a que honradamente deste a vida. É tal e qual as moedas ao lado do filósofo lendo que apesar de lindíssimas e verdadeiros monumentos históricos são efémeras comparadas com o tempo de vida da palavra.
Foste o artista que tu próprio representaste em 1830 quando escreveste Des Artistes e com o qual me despeço, ao relembrar a sua importância para o progresso da humanidade como artista dela e para ela própria; descartando em si lentamente, a Claudine que genialmente Colette se fez valer para dar ao mundo a sua fraqueza, e que tu trabalhaste para a fazer desvanecer:
Os reis comandam as nações por um tempo determinado, mas o artista comanda por séculos inteiros; ele muda a face das coisas; ele molda uma revolução; ele pesa sobre o globo que forma.
Gutenberg, Colombo, Schwartz, Descartes, Raphael, Voltaire, David…todos foram artistas porque criaram, aplicaram o pensar a uma nova produção das forças humanas, a uma combinação nova dos elementos da natureza, da física e da moral.
O artista é parte necessária de uma máquina imensa que conserva uma doutrina e que faz parte de um progresso que une toda a arte.[1]
[1] Balzac, Honoré de, «Le Chef d’ouvre inconnu», in L’Artiste (série 1, vol. 1), Paris, 1831, p. 278. Tradução minha.