Texto de Tomás Ferreira.
Escrever um texto crítico sobre o trabalho de um amigo não é fácil, sobretudo se nos queremos furtar aos dois extremos em que a empresa de outro modo naufragaria: ser encomiástico e ser excessivamente exigente. Alguns reputá-lo-iam até de trabalho desonesto. Se é certo que na crítica se deve separar inteiramente do objecto criticado qualquer consideração pessoal, como ser-se amigo ou inimigo da pessoa cujo trabalho se critica, também é certo que nem sempre isso é possível – e talvez este seja um desses casos –, quanto mais não seja porque, se se é amigo íntimo de quem escreveu a obra, pode-se perceber melhor, à luz de conversas anteriores, certas alusões, certas inflexões e certos detalhes que, às vezes, podem ser da maior importância. No entanto, mesmo que não tenhamos esse privilégio, podíamos supor que o trabalho do verdadeiro e bom crítico também passa por se pôr numa dessas posições privilegiadas e ter a capacidade intuir o verdadeiro significado do que não é claro. Digo isto em jeito de introdução como apologia por vir agora comentar o primeiro livro do José Bernardo da Fonseca, ex-aluno de Estudos Gerais da FLUL e conhecido de muitos de nós, cujo percurso pessoal e artístico tenho acompanhado ao longo dos últimos cinco anos.
É de salientar que este é um primeiro livro – e um primeiro livro de poesia – e que por isso dificilmente se lhe pode pedir que seja perfeito ou que possa ser considerado a definitiva prova do seu autor, e ainda bem que assim é. De facto, este livro não é perfeito, muito longe disso: por vezes a expressão é confusa, o encadeamento dos versos pode parecer descuidado, a rima forçada, etc. Isto indica o longo caminho artístico que o Zé Bernardo ainda tem a percorrer, mas indica-o precisamente porque mostra que há um caminho a percorrer que vale a pena de ser percorrido. Mostra, no fundo, que há matéria no coração desta poesia, um sujeito que clama por expressar-se e que tem algo a dizer. Nisso não fui surpreendido por este livro, porque sempre me pareceu que o Zé Bernardo se filia em Oscar Wilde: a sua pessoa e a sua conversa são a verdadeira arte viva, enquanto a escrita é um reflexo, exuberante mas ainda assim apenas um reflexo. E, aqui e acolá, emergem imagens muito poderosas. No fundo, é como aprender a tocar piano ou começar a compor uma sonata. Primeiro há muito barulho, mas de quando em vez começam a surgir verdadeiras notas de uma melodia pessoal, de uma forma pessoal de fazer arte.
Falo de Oscar Wilde e isso lembra-me dois outros pontos. Tal como a escrita de Oscar Wilde, esta é uma escrita que não se leva demasiado a sério, que grita e chora mas também se ri na cara do leitor, no que é semelhante a, por exemplo, The Importance of Being Earnest, mas com o pathos de «The Ballad of Reading Gaol». Um segundo ponto tem a ver com o que Wilde dizia sobre sinceridade e arte. Para Wilde, a sinceridade é a morte da arte e não há nada mais corrosivo para a poesia do que ser sincera. Ora, podemo-nos perguntar se o presente livro enferma da wildeana «patologia da sinceridade». O que é certo é que, quando li o livro, pensei imediatamente para comigo que cada linha trazia qualquer coisa de um retrato. Diria que este é um livro ferido, que sangra abundantemente, mas não sei dizer, ainda que a sinceridade lá esteja evidente, se foi esta que o feriu de morte.
Mas alusões a Wilde não disfarçam outras figuras que ecoam na escrita do Zé Bernardo e, de facto, surgem-me três nomes que correspondem a outras tantas características dos poemas do meu amigo: Heinrich Heine (com música de Schumann), Shakespeare e António Aleixo. É opinião corrente que os poemas de Heine, quando lidos, não têm a mesma força que tem o Dichterliebe, Op. 48 de Schumann que usa os versos daquele poeta. Assim também a poesia do Zé Bernardo clama por um acompanhamento e, de facto, vários destes poemas nasceram como músicas para serem cantadas acompanhadas de um instrumento, e não lidas. Por exemplo, a emoção provocada pela leitura dos poemas «Leões e beduínos» e «Por um olhar lascivo» é pouca, mas ouvir o Zé Bernardo cantá-los no dia do lançamento do livro evocou uma resposta muito mais forte. Esta consideração leva-me a outra: tal como o fantasma do Hamlet sem Shakespeare para o representar, estas palavras podem ser como conchas vazias, se não forem preenchidas pela stimmung da presença de quem as diz. Por fim, uma alusão a António Aleixo, que vem ao encontro do que foi dito acima. Tal como ele, também o Zé Bernardo escreve e canta a despeito do mundo, do filistinismo e de todos nós e os seus versos têm, assumidamente, um cariz entre a poesia de fado e a poesia sardónica, irónica e mordaz de Aleixo e partilham uma dicção afim.
Tudo o que foi dito até agora foi no sentido de ajudar a ler a poesia de Zé Bernardo, a avaliá-la com justeza e a apreciá-la melhor. Quero terminar com a nota feliz de que o lançamento deste livro parece ir contra a corrente que dificulta o acesso dos novos autores ao mercado editorial. Que seja pois um sinal encorajador para todos quantos partilham a ambição de tocar com as suas palavras a comunidade. Leia-se Zé Bernardo e que venha mais! E que emerjam muitos mais novos poetas, pois bem precisamos de sangue novo na literatura, como na vida.