Foto de Claudina Diego
Seu João sentou-se sozinho na cadeira de uma pracinha, retirou de um estojo o cachimbo, as mãos trémulas acenderam o fósforo que pôs fogo no tabaco. Segurando o fornilho quente numa tarde de outono, pensou em silêncio.
Já uma vez desisti de meus sonhos.
Um dia, eu cresci até alcançar o topo da copa daquelas raízes vesgas à mostra. Provaram-se os galhos bravos, finos e quebradiços, caídos sem nunca alcançar o topo. Eu, será que caí? Ao falsear um abraço sem nunca ter alcançado, como caí?
Nesse começo, eu desisti de meus sonhos, sem meio não há fim. Mas o futuro avança. E como posso dizer que desisti de sonhos, quando o meu sonho é apenas uma bola de berlim?
O começo sem meio, oportunidades secas, de se fazer o mínimo, de ter o efeito de ação, de ter alguma resposta, de ser o possuidor desse silêncio. Esse silêncio surdo que emudece o meu grito, não há ouvidos, não há sombra, mas luz. E o chão é como céu infinito e sem borda. E se o chão fosse firme, se fosse eu caminharia, mas o chão é descoberto e as relvas perderam viço. A árvore de tronco torto que tanto desejei me apavora de desejar o mínimo e pecar por necessidade de ser.
Tu querias que tuas ações fossem consequências? Querias que tudo fosse clareza? Mas não há nada além do silêncio vivo. Tu és aquele que vive nessa solidão, e eu repito “não estás só!” Porque eu existo e respiro rarefeito de consequências respeitando o presente divino.
Finquei nos galhos finos e quebradiços, nasceram flores à minha volta. Angustiava-me o que chamam de oportunidade e se fazer tudo certo. Não adianta. Nada adianta, não sou senhor desse mundo. Não almejo e não desejo, apavoram-me frustações futuras, porque já experimentei quase todas. Meu corpo em que não mando, meu sonho em que não mando e minhas palavras que saem mudas como mudas de árvores que levaram tempo para florescer. Oportunidades quero me ver livre destas, quero parar de sonhar. Queria me contentar com vinho e pão, com cama e mesa, comigo e com eles. Queria amar, mas é difícil amar o que não se deseja, então oro que me torne amoroso, Deus, me faça amar o gratuito, me faça aproveitar e cuidar, me ensine a felicidade de nunca descansar no topo da árvore.
E se há uma técnica para se ter em cima sempre e se nela consiste não amar, leve-me para baixo. Se sofrer é etapa fundamental para distinguir o mau, me faça arderem as costas e me apoie nos prantos, me venha abraçar, chore do meu lado enquanto na minha ignorância não sei sofrer porque não soube amar. Eu, que quero transformar o mínimo no máximo e multiplicar um por um, ter muito, nascer e ser mil! Para amar-te novamente, mas não sei amar, pois não sei em que devo sustentar, devo ser sustentado por Ti? Sim, mas és tu que me sustentas e eu nada tenho a oferecer, sou areia e tu és o deserto, e os oceanos, ar que me faz respirar. Mas por que respiro?
Para amar basta a resposta da minha alma, eu que não sabia que amar tanto dói e não consigo mais prender a respiração, caminho a aprender a amar, essa disciplina que cresce o ódio. A mentira demoníaca, pois amar não cria nada além do amar. E amo mais, e grato mais, e descanso.
Se há ódio, eu digo há, mas de tudo, das partes minúsculas. É preciso ainda aprender a amar. Essa desesperada desesperança é alcatrão no meu sangue. Sangue negro, minha mentira! A verdade pulsa do meu coração, mas não a desejo, eu quero somente amar. Então me torne muito amoroso, mais amante para pedir tua ajuda e sozinho multiplicar as sementes e da copa enxergar a beleza que é amar.
Quero mostrar-lhe a Beleza, infelizmente como não a vejo, eu persigo e persigo para poder achar a minha beleza que te quero dar. Mas a Beleza não é minha, mas há de haver em mim, e há de ser ação, pois quando surge, surge bela, não longe de mim, mas em mim. Porém ela de mim não vem e nada posso criar, cabe a mim perseguir e rezar para nela repousar. Repito que quero mostrar-lhe a Beleza, a minha beleza, para descobrir que é nossa, para poder sentir que não é minha.
Quão difícil perseguir a Beleza quando nela estou ausente e fico feliz quando a encontro, ficando em mim de assombro. Será esta beleza em Ti que me faz querer perseguir? Ou é algo além, e que não convém, que torna belo o mais feio e que me faz ausente de mim? Ah, a Beleza está num segundo e numa eternidade que registra memória à criação. Não, não é imaginação, nem arroubos, nem segundos, nem esquecimento. É permanente e lembra que não é necessário esforço, nem idolatria, nem devoção não perene, pois como é bela Beleza que só amor sustenta e a paixão a memória aviva.
É belo viver! Reviver é não esquecer. Descobrir é descortinar-se a predeterminação, a verdadeira alegria que a outro não culmina e só me falta é esperar e continuar a lembrar que amar não é sina, mas maravilha de encontrar a Beleza e o Bem e que neles pressa não há, pois são naturais mesmo quando não nos convém.
Nós, humanos, somos quebradiços, sem raízes, sem pernas para se moverem ao fim de quilômetros de um grande percurso. E surgem pernas! É Milagre! Pois para quê a pressa, quando o belo se revela em quem o amor se faz, aproveite o vinho e alimente-se do pão. Descansa os ombros no marasmo do chão. E a sombra da copa deixa encobrir tua razão.
Mas se amar é uma maratona, tudo que faço é um grande engano. Mas eu não sou um engano. Eu sou o engano. Não engano ontológico, nem engano de vida, nem teleologia sem casuística. Sou o engano, as consequências das decisões, causa da alma ambiciosa que não leva em conta as limitações do corpo, que reclama! Como reclama!
Eu sou meu inimigo, portanto não sou Deus. E quando desperto e me vejo triste, seria eu só a tristeza e melancolia, as consequências da alma são respostas de um corpo insatisfeito. Porque quando penso que acordo, eu estou dormindo, e quando penso que durmo, eu estou em conflito. Então quem pode me aguentar se nem eu aguento os mesmos erros. Um corpo que na alma não confia e uma alma que se vê sempre confundida.
A alma e o corpo não se compreendem e tenho um trabalho a fazer, um caminho a percorrer com a força do meu corpo que anda na frente, num solo estreito e pedregoso. Minhas costas carregam o arado amarrado ao peito. Ao invés de lento e constante, eu corro quando a voz de minha Razão comanda da carruagem, eu sou o gado, é minha alma que me dirige, rege a Razão que perde sempre a confiança do corpo.
Alma administradora, masoquista me parece a minha vontade que me incomoda, Razão e Vontade, minha alma, porque não te alinhas? Pois na frente a terra é seca e as raízes e as pedras batem no arado machucando o cabo no meu peito e na minha cabeça eu uso uma viseira, tapa olhos, não tem olhar de soslaio, e enxergo só um futuro à frente. Pedras e lama.
Os lados são tapados, no meu pescoço junto com os braços a corda fina roça no couro, assa, arde. Meu o suor é acido. A carroça é pesada, e é de ouro maciço, me definindo promete muito, mas não consegue fazer o mínimo porque o corpo ainda escuta com dúvidas a voz que comanda. À frente, adiante, em frente, força!
Machuca o peito e enforca-me. Nesses momentos paro para respirar, enquanto o homem da carroça se estressa com o tempo. Nada prometi a você, eu digo como queria fazê-lo somar, é a voz que nunca vejo e que entre as partes prometeu dar vontade ao corpo.
Sinto a luz do sol que vem do céu e ela me refresca, e minha pele descasca. Porque a razão ensina e revela contra a presa da vontade impaciente, não sustenta a noite fria e imperdoável. O corpo desconfortável. A Vontade tenta ânimo, motiva a Razão:
“Vai que é preciso arar a terra, vai que é preciso sentar um dia, vai e poderás caminhar pelasmemórias de dor”
A Razão sustenta o argumento:
“Quanto lembrarás vendo para trás, agora tua frente, o quanto transformou, o chão é liso, foste tu que construíste. E a dor são só cicatrizes.”
Tantas promessas que a alma faz ao corpo, obriga a Razão a encontrar uma solução, mas limitada é a Razão subordinada ao tempo da revelação. Nada pode fazer senão dizer espera no tempo o que é para ser! Será o certo, obriga a Vontade, a ser. Pois é a Razão que iluminada repete:
“Estás te preparando somente. Prende corpo a contentar-se! Vontade, tenha menos desejos! Seja presente, pois sou apenas a Razão e quando souber algo não sou eu, nem o tempo que revelará se fui certa.”
Às vezes, nossa Vontade não é feita, mas não significa que a Razão não estava correta. O corpo reclama e a vontade fica desanimada, a Razão com dúvidas, e o que se deve fazer? Esperar somente o tempo revelar e se manter firme do que não é invenção, nem da razão, ou da vontade, nem surpresa do tempo. É preciso apenas a decisão de saber que não se deve confiar em você, se entregue no que é verdadeiramente amor. E então não poderás mentir a ti mesmo estando de olhos fechados, não escapando uma palavra. Não podes mentir. Mas podes sorrir quando te vêem, e podes ficar até sem sorrir se te disseres feliz.
Se te dizes feliz quem irá te duvidar?, e se te dizes mais feliz do que outro quem poderá discordar? Pois quem é feliz o é satisfeito do seu jeito e quem não é não consegue se escapar. Existe assim fora de ti como também dentro de ti a paz. Ela não sufoca as ações e nem é preguiçosa de paixões. Existe, sim, a paz e ela surge de ti e retorna a ti e se olhares para fora de modo a encontrar o que não espera, o que vem de fora em si, encontras que ela é sustentada por ti e a si é ela auxiliada por ti , mas em si ela não é somente tu.
Existe a paz, sim a felicidade e ela é assim: o que é.
O que é não vem a ser, o é presente, nem passado ou futuro, apenas é. É nas tuas limitações, é nas tuas eficientes ações e é no tempo morto que respiras sendo enquanto tu és. O que é tem poder de ser e tem o poder de transformar o ser. O que é foi elaborado no passado e foi fixado pro futuro. É, está sendo. O que é, apenas é o que você está perdendo.
O céu crepuscular do fim da tarde leva uma brisa, e o vento acaricia as orelhas vermelhas do velho Seu João, que fumava no mesmo ritmo lento seu cachimbo. Os troncos de fumaça ficavam mais finos e dissipavam-se no ar. Seu João limpou o cabo do cachimbo e a piteira usando a saia da camisa. Levantou-se após guardar seu cachimbo. Foi para casa andando.
No caminho comprou uma bola de berlim. Amanhã seu João voltaria, como todos os dias, para fumar seu cachimbo na praça, em silêncio.
José Maria Pinheiro de Souza Neto