“Só o amor, o ignorante amor, Islândia” ( quatro poemas de J. L. Borges)

Imagem: Mapa da Islândia, s. XVI, Casa da Cultura de Reykjavík.

 

À Islândia

Das regiões da terra formosa
que a minha carne e a sua sombra fatigaram
és a mais remota e a mais íntima,
Última Thule, Islândia dos navios,
do obstinado arado e do constante remo,
das redes marinheiras estiradas,
dessa curiosa luz de tarde imóvel
que o vago céu derrama desde a alba
e do vento que busca as perdidas
velas do viquingue. Terra sagrada
que foste a memória da Germânia
e resgataste a sua mitologia
de uma selva de ferro e do seu lodo
e do navio que os deuses temem,
lavrado com as unhas dos mortos.

Islândia, longamente te sonhei
desde aquela manhã em que o meu pai
deu ao rapaz que fui e não morreu
uma versão da Völsunga saga
que a minha penumbra agora decifra
com a ajuda do lento dicionário.
Quando o corpo se cansa do seu homem,
quando o fogo se apaga e é já cinza,
parece bem a resignada aprendizagem
de uma empresa infinita; eu escolhi
a da tua língua, esse latim do Norte
que abarcou as estepes e os mares
de um hemisfério e ressoou em Bizâncio
e nas margens virgens da América.

Sei que não a saberei, mas esperam-me
os eventuais dons da busca,
não o fruto sabiamente inalcançável.
O mesmo sentirão aqueles que indagam
os astros ou a série dos números…
Só o amor, o ignorante amor, Islândia.

 

Na Islândia a madrugada

Esta é a madrugada.
É anterior às suas mitologias e ao Cristo Branco.
Formará os lobos e a serpente
que é também o mar.
O tempo não a toca.
Formou os lobos e a serpente
que é também o mar.
Já viu partir o navio que lavraram
com unhas dos mortos.
É o cristal de sombra em que se olha
Deus, que não tem cara.
É mais pesada do que os seus mares
e mais alta do que o céu.
É um grande muro suspenso.
É a madrugada na Islândia.

 

Snorri Sturluson (1179 – 1241)

Tu que legaste uma mitologia
de gelo e de fogo à filial memória,
tu, que fixaste a violenta glória
da tua estirpe de aço e ousadia,
sentiste com assombro numa tarde
de espadas que a tua triste carne humana
tremia. Nessa tarde sem manhã
foi-te dado saber que eras cobarde.
Na noite da Islândia, a salgada
tempestade move o mar. Está cercada
a tua casa. Bebeste até às borras
a desonra inolvidável. Sobre
a tua pálida cabeça cai a espada
como no teu livro caiu tantas vezes.

 

Nostalgia do presente

Naquele preciso momento o homem disse a si próprio:
O que eu não daria para estar
ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de partilhar o agora
como se partilha a música
ou o sabor de uma fruta.
Naquele preciso momento
o homem estava junto a ela na Islândia.

[Ed. castelhana: Jorge Luis Borges, Poesía Completa, Lumen, Barcelona, 2011.]

*

Leiam aqui uma tradução do islandês antigo feita por alunos da faculdade.

Leiam aqui uma entrevista feita ao Prof. José Pedro Serra sobre o estudo do islandês antigo na FLUL.