Inquérito preparado por Youri Paiva. Fotografia de Gérald Bloncourt, “Greve na Renault de Boulogne-Billancourt”.
Nos 50 anos do Maio de 68, lançámos um inquérito de quatro questões a quatro pessoas que estiveram, por essa altura, em França.
Responderam ao inquérito: Jorge Valadas, José Mário Branco, Manuel Villaverde Cabral e Tila Cascais.
- O que te levou a estar em França em 1968?
O “tu” embaraça uma pessoa com quase 80 anos… À parte isso, eu vivia então em Paris para onde tinha fugido em Novembro de 1963 para não ser preso pela PIDE, como foram, no mesmo dia 12, os meus camaradas de então, todos membros ou simpatizantes do PCP… Cheguei pelos meus meios a França no dia 14 e fiquei a viver e trabalhar em Paris até ao 25 de Abril. “Tempos difíceis”, como se diz no título do romance de Charles Dickens, mas altamente educativos e formativos!
- Quando falamos do Maio de 68, também falamos de pessoas que “estiveram” no Maio de 68. O que foi esse teu “estar” no Maio de 68?
Desde 1958 que eu estava formalmente mobilizado contra a ditadura salazarista e foi na sequência dessa militância que tive a sorte de fugir: vários dos meus camaradas dessa altura ficaram presos durante anos. Eu tinha ido à inspecção militar em Junho de 1960, altura em que fazia 20 anos, mas fiquei “livre” do serviço militar pois a guerra colonial só começou em Fevereiro do ano seguinte em Angola. Portanto, em Paris e a partir de certa altura fora de França também, continuei a “fazer política” até voltar para Portugal em 1974. Algures entre 1964 e 1965 saí do PCP e aderi ao grupo dissidente de inspiração “maoísta” (FAP/CMLP – Frente de Acção Popular/Comité Marxista-Leninista Português), do qual me vim a afastar em ’67 após o colapso da organização em Portugal – no “interior”, como então dizíamos – devido à prisão do líder, Francisco Martins Rodrigues, e vários camaradas. Nesse mesmo ano de ’67, com vários amigos e recém-conhecidos, iniciámos em Paris a publicação “stencil” de uma revista chamada Cadernos de Circunstância (CdeC), os quais tiveram um certo papel entre os grupos exilados e mesmo em Portugal até deixarem de ser publicados em 1970. Portanto, os “acontecimentos de Maio de ‘68” ocorreram, com a participação autónoma de todos os colaboradores do grupo dos CdeC, na mesma altura em que fazíamos a revista, a qual beneficiou em pleno do impacto intelectual e existencial do “Movimento”.
- Como sentiste o que estava a acontecer em França em relação à ditadura em Portugal?
O movimento de Maio de ’68 era internacionalista não só pelo seu espírito de solidariedade com as lutas pela libertação nacional como pela influência positiva que sofreu de várias insurgências, sobretudo de movimentos contra a guerra do Viet-Nam, desde os “campus universitários” norte-americanos, onde terá começado esta grande vaga libertária e emancipatória dos movimentos juvenis, até aos jovens do Japão. Portugal tinha também a sua guerra colonial e a grande maioria dos exilados tinha fugido para o estrangeiro precisamente por causa dessa guerra. Portugal teve historicamente um dos maiores, se não o maior, contingente do mundo de desertores e refractários à guerra colonial (cerca de 100.000 jovens segundo as próprias estatísticas militares). Basta dizer que os Portugueses forneceram, segundo os jornais da época, o segundo maior grupo nacional expulso de França devido à agitação. O internacionalismo era, além disso, um ingrediente natural das guerras de libertação colonial, do mesmo modo que a militância contra ditaduras europeias como a portuguesa e a espanhola, mas também como as dos países sob domínio soviético (Hungria, 1956; Praga, 1968, etc.), fazia parte da rebelião emancipatória que então varreu metade do mundo. O próprio conflito sino-soviético contribuiu para a erosão das ideologias totalitárias. Desse modo, “Maio de ’68” foi, simultaneamente, uma consequência dessa internacionalização da vida política e um promotor do cosmopolitismo futuro.
- O que é que o Maio de 68 nos deixa para hoje e para o futuro?
Essa consciência cosmopolita activa a que acabo de me referir constitui, sem dúvida, um dos principais legados do movimento francês de 1968. Mas não só. A marca porventura mais pregnante e duradoura do movimento internacional que teve por símbolo o “Maio de ‘68” é, desde o início, o anti-autoritarismo, do qual um autor como Herbert Marcuse fez, por assim dizer, o resumo: contra a autoridade familiar; contra os padrões da sexualidade castradora; contra o autoritarismo de género; contra o formato dogmático da escola; contra a autoridade patronal; contra o autoritarismo estatal… Contra, finalmente, as grandes potências que impunham – e não deixam de continuar a impor – a autoridade internacional. Ora, nenhuma dessas formas do autoritarismo deixou de ser afectada e, até certo ponto, substituída ou, pelo menos, ocultada em benefício de padrões mentais e comportamentais mais livres. “Maio de ‘68” foi e continua a simbolizar uma revolução cultural, antropológica, que não pretendeu assumir o poder político, pois este está inevitavelmente inquinado pelo autoritarismo. O mundo actual, tal como o conhecemos, sobretudo nos países que foram percorridos pela grande vaga anti-autoritária, é o resultado contraditório e desigual mas efectivo e global dos processos sociais desencadeados pelo Movimento de ’68 – mesmo e talvez sobretudo para quem não o viveu nem o recorda. Recordar Maio de ’68 é, em suma, conhecer de onde vimos e como viemos, o que não significa que saibamos para onde vamos…