Inquérito sobre o Maio de 68: José Mário Branco

Inquérito preparado por Youri Paiva. Fotografia de Gérald Bloncourt, “Greve na Renault de Boulogne-Billancourt”.

Nos 50 anos do Maio de 68, lançámos um inquérito de quatro questões a quatro pessoas que estiveram, por essa altura, em França.

Responderam ao inquérito: Jorge Valadas, José Mário Branco, Manuel Villaverde Cabral e Tila Cascais.

  1. O que te levou a estar em França em 1968?

Estive exilado em Paris entre Junho de 1963 e Abril de 1974, por me recusar (tal como milhares de outros jovens portugueses) a participar na guerra colonial.

  1. Quando falamos do Maio de 68, também falamos de pessoas que “estiveram” no Maio de 68. O que foi esse teu “estar” no Maio de 68?

Eu já era um pouco conhecido como cantor de canções. Fui convidado, tal como o Sérgio Godinho e o Luís Cília, por dois grupos de teatro independente (Théâtre Gérard Phillipe, de Saint-Denis, e Théâtre des Amandiers, de Nanterre) para ir com grupos de actores e outros músicos cantar em escolas, bairros e locais de trabalho ocupados pelos estudantes, os trabalhadores e os moradores. Isso foi possível, apesar de eu ter um emprego “normal” numa empresa de transportes que não fez greve, porque, a partir de certa altura, deixou de haver transportes e combustível, e assim eu tinha uma justificação para não comparecer no trabalho.

Além disso, tive várias experiências extraordinárias, seja nas manifestações do Quartier Latin, seja à porta da fábrica da Renault, seja na Sorbonne, ou ainda na Casa de Portugal (da Gulbenkian) na Cidade Universitária de Paris, que foi ocupada por estudantes e oposicionistas revolucionários portugueses.

  1. Como sentiste o que estava a acontecer em França em relação à ditadura em Portugal?

Este aspecto concretizou-se de duas formas:

  • Por um lado, ao cantar nos locais ocupados para um público sobretudo francês, pude participar na denúncia da ditadura portuguesa e no apoio aos povos das colónias portuguesas.
  • Por outro lado, a ocupação da Casa de Portugal na Cidade Universitária foi também um factor de denúncia da ditadura e de radicalização da emigração política portuguesa.

Quanto às tentativas de politização dos emigrantes económicos portugueses, sobretudo nos maiores bairros de lata (Champigny e Saint-Denis), não foram muito bem sucedidas porque a generalidade desses emigrantes estavam paralisados pelo medo de ficarem sem trabalho. 

  1. O que é que o Maio de 68 nos deixa para hoje e para o futuro?

Eu creio que o mais importante, ao olhar para o Maio de 68 francês, é perceber que se tratou, nos meios estudantis e intelectuais, de uma “festa libertária” – muito bonita certamente, mas que nunca chegou a gerar qualquer projecto político.

Já no caso dos trabalhadores, apesar de um grande esforço de controlo do PCF [Partido Comunista Francês] e dos seus sindicatos da CGT [Confederação Geral do Trabalho], o movimento foi muito radical e inicialmente muito espontâneo: greve geral com ocupação dos locais de trabalho. À porta das empresas, os piquetes tinham duas bandeiras sem símbolos partidários, uma vermelha e outra negra. Em toda a França essas greves com ocupação mobilizaram vários milhões de trabalhadores.

Mas, tal como no caso dos estudantes e dos intelectuais, esse movimento grevista não apresentou um projecto político próprio e foi dominado com alguma facilidade pelo PCF e pela CGT que o transformaram em simples reivindicações salariais. Estes fizeram, no início de Junho, com o primeiro-ministro Pompidou, um acordo para um aumento geral de 10% nos salários, e a partir daí fizeram o possível para desmobilizar a greve geral, dizendo que “já estava tudo resolvido”. Mesmo assim, para se perceber a força e a espontaneidade do movimento, em finais de Junho ainda havia mais de 2 milhões de trabalhadores a ocupar as empresas.

(Uma curiosidade: esse aumento de 10% nos salários concretizou-se de facto em toda a França, mas em meados de Setembro o custo de vida já tinha aumentado mais de 10%!).

Resumindo, acho que ficaram duas lições importantes para o futuro:

  • 1.º as vagas de fundo de luta pela liberdade e pela justiça podem surgir quando menos se espera; poucas semanas antes das grandes manifestações de Maio, um cronista do jornal Le Monde escrevia “La France est morose” (A França anda triste e taciturna).
  • 2.º este tipo de convulsões sociais, por muito espontâneas ou incontroláveis ou até violentas que possam ser, serão sempre episódicas quando não houver um projecto político de poder, ou seja, por mais fortes que pareçam, serão sempre convulsões que não se transformam em revoluções.